UOL


São Paulo, domingo, 09 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O crítico Benedito Nunes fala da experiência subjetiva na obra de Graciliano e o aproxima de Guimarães Rosa e Camus

NO LIMITE DA TRANSCENDÊNCIA

da Redação

Embora nunca tenha dedicado um estudo específico à obra de Graciliano Ramos, como o fez por exemplo com Clarice Lispector, o crítico Benedito Nunes, 74, vem há décadas cultivando uma reflexão relativamente secreta sobre o autor de "Infância". Suas idéias devem em breve se transformar em livro, cujo foco central seria o aspecto autobiográfico e a "linguagem em estado nascente", que, segundo Nunes, são a substância da literatura do escritor alagoano.
"Graciliano é um escritor atualíssimo, porque está muito afinado com a tônica do pensamento contemporâneo, que não vê saídas e experimenta o vivido cada vez mais como absurdo", diz Benedito Nunes nesta entrevista feita por telefone, de sua casa em Belém (PA). (MAURÍCIO SANTANA DIAS)

O sr. disse que considera "Infância" talvez a melhor obra de Graciliano. Gostaria de saber por quê.
Esse livro tem uma saudável mistura de ficção com rememoração, em que é difícil distinguir uma da outra. A aliança que se forma entre esses dois registros é excelente. Quando você lê "Memórias do Cárcere", já sabe de antemão que se trata de um livro memorialístico. Em "Infância" as coisas se fundem tão fortemente que se trata de uma reinvenção da memória. Acho isso estupendo.

Em que esse livro se distingue do outros, em termos de linguagem?
Essa é uma questão fundamental em Graciliano. Ele mesmo, comentando certos livros seus, como "Angústia", achava-os ruins por serem "mal escritos". A desconfiança com a própria obra fez com que ele se aprofundasse cada vez mais na depuração da linguagem, sobretudo sintática. Esse franciscanismo voluntário da escrita, quando se encontra com a memória, se expande para o mundo.
Se a gente fosse comparar Graciliano com o outro grande autor do século 20, Guimarães Rosa, poderíamos dizer que este está muito mais para o mito, e aquele, para o mundo secularizado.

Uma literatura sem transcendência?
Talvez uma transcendência por outros caminhos, pelo humano mesmo. Como no caso de Fabiano e da cachorra Baleia [personagens de "Vidas Secas"", um dos poucos exemplos da literatura -junto com Tolstói- que põem o animal em primeiro plano. O olhar de Baleia é compassivo, cheio de humanidade. Aí há uma visão transcendente, mítica. Pouquíssimos escritores conseguiram alcançar isso. Enfim, Graciliano é um daqueles raríssimos autores que ficam no limite da transcendência, sem chegar a entrar no sobrenatural. Eu diria que essa é a dimensão filosófica de sua obra.

Como o sr. vê o pessimismo na obra dele?
Acho que o pessimismo se manifesta mais claramente em "São Bernardo", naquele personagem terrível que é Paulo Honório, e em Madalena, que termina se matando. O pessimismo aí se expressa como niilismo, experiência do nada.

Em "Memórias do Cárcere" o narrador chega muitas vezes à abjeção completa, que lembra o "homem do subsolo" de Dostoiévski.
É o "homem do subterrâneo" e é também o "Sísifo" de Camus, o homem do absurdo. Nesse sentido Graciliano é um escritor atualíssimo, porque está muito afinado com a tônica do pensamento contemporâneo, que não vê saídas e experimenta o vivido cada vez mais como absurdo. Acho que Camus, Sartre, Heidegger continuam sendo nossos "maîtres à penser". Hoje é difícil encontrar pensadores desse porte -ou talvez estejam aparecendo e a gente não os conheça ainda.

Outro aspecto forte em Graciliano é que, apesar do pessimismo, ele de alguma forma sempre acenava com a possibilidade de uma utopia social, embora a negasse todo o tempo. Como o sr. vê esse duplo movimento?
Essa é a marca do escritor autêntico, admirável. Mesmo filiado ao Partido Comunista, ele nunca aceitou as regras do realismo socialista nem as imposições do zdanovismo [doutrina de Andrei Zdanov, ministro da Cultura da URSS que pregava o realismo socialista". O escritor autêntico nunca pode ser um ideólogo, a ideologia morre na pena dele. Quando escreve, ele faz um aprofundamento de si mesmo, numa experiência que está sempre aquém de ideologias. Isso se vê bem em todos os grandes, Graciliano, Guimarães Rosa, Clarice Lispector.

A chamada "geração de 30", ou do "romance nordestino", empacotou muitos escritores sob o rótulo de "regionalistas". Em que medida se poderia falar de Graciliano como autor regionalista?
Há uma coisa muito marcante na literatura brasileira que não vemos nas outras: o uso de geração como critério literário (os homens de 30, de 45 etc.). Assim o conceito de geração serve não só de bitola periodológica, mas também para definir um aspecto da visão do mundo, da forma romanesca, de modo que se colocam no mesmo saco o José Lins do Rego, a Rachel de Queirós, o Graciliano Ramos, Jorge Amado, Amando Fontes e outros. Mas mesmo José Lins, que é o mais regionalista de todos esses, tem suas exceções -"Fogo Morto", por exemplo, é um grande romance. Graciliano foi mais regionalista -ou provincianista- naquele primeiro romance, "Caetés".
No entanto é preciso distinguir entre região e regionalismo. Há certos romances que são profundamente ligados ao solo e à terra e nem por isso são regionalistas. É o caso de "Vidas Secas", em que a região está lá, mas não há regionalismo.

O sr. já disse certa vez que Graciliano e João Cabral deram o golpe mais duro no regionalismo.
É verdade. Aliás, o João Cabral percebeu essa afinidade e a expressou naquele belo poema ao Graciliano. Os dois têm essa linguagem seca, espinhosa, que fere. São ambos ferinos.

O que mudou na linguagem literária desde Graciliano? O sr. acha que a "tendência Graciliano", de escassez, predominou sobre a "tendência Guimarães Rosa", de excesso? Essas duas linhas de força tiveram continuidade?
Eles ainda são certamente dois modelos fortes na nossa literatura, que se alternam e entremesclam. Em primeiro lugar, ambos são inimitáveis. Quem tentou imitar um ou outro caiu na caricatura ou no ridículo. Embora os estilos sejam muito diferentes, um mais para fora, outro mais para dentro, os dois são autênticas forças-linguagem. O Guimarães é excepcional pelo trançado do dentro e do fora, pela dimensão mítica etc. O Graciliano também tem isso, mas de maneira muito contida, sem o arroubo de tomar o idioma nas mãos e revirá-lo do avesso. A obsessão de Graciliano era pelo corte. Cortar, cortar, cortar. Essa economia verbal, o desejo de extirpar a "matéria gordurosa", como ele mesmo dizia, era a meu ver também uma precaução que ele tinha diante do naturalismo e do romantismo das gerações anteriores, que carregavam em descrições e adjetivos.

Por outro lado ele adorava Eça de Queirós, que era de um excesso verbal impressionante.
Mas o Eça também tinha aquele aspecto ferino, satírico, que encantava o Graciliano. O Eça era tão satírico que até hoje os portugueses não o engolem. O retrato que ele fez de Portugal é uma coisa arrasadora, com as suas figuras acacianas. Por outro lado o Graciliano tem momentos de grande compunção, de pausas contemplativas. Nisso "Vidas Secas" também é uma obra extraordinária: na contenção da linguagem, sem mudanças estruturais, com a mesma sintaxe da língua portuguesa comum, porém depurada, o livro chega a provocar no leitor uma empatia e uma introjeção magníficas. É o que Rosa também faz, especialmente naqueles contos do "Corpo de Baile", sobretudo no primeiro, "Campos Gerais". Aí se poderia dizer que os dois trabalham com a linguagem em estado nascente.

E Graciliano atinge esse efeito em "Infância"?
Em "Infância" também há isso, na inter-relação entre o ficcional e o não-ficcional que se transforma numa escrita poética. Aí também você vê a linguagem em estado nascente. Ainda bem que nós temos esses escritores, o que é um certo consolo diante da atual vulgaridade. Mas a verdade é que os bons escritores sempre foram poucos, de contar nos dedos.


Texto Anterior: Memórias de um militante stalinista
Próximo Texto: Todas as coisas à sua vez [Abecedário]
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.