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São Paulo, domingo, 09 de março de 2003

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O HERÓI POR CONTRASTE DE CAETÉS

por Luis Bueno

A história da publicação de "Caetés", romance de estréia de Graciliano Ramos, é uma passagem curiosa da história da literatura brasileira. Em 1929 o escritor alagoano se tornara conhecido nos meios literários do Rio de Janeiro pela divulgação dos famosos relatórios que escreveu dando contas de sua atuação como prefeito de Palmeira dos Índios. Em 1931 o poeta Augusto Frederico Schmidt fundou uma editora e, já na contracapa de seu primeiro lançamento -"Oscarina", de Marques Rebelo-, anunciava a publicação de "Os Caetés", romance de Graciliano Ramos. No entanto o público teve que esperar até a segunda quinzena de dezembro de 1933 para poder lê-lo. Alguns acusaram Schmidt, que estava em terreno político oposto ao de Graciliano, de retardar sua publicação. Outros dizem que, na desorganização que era a Schmidt Editora, os originais ficaram desaparecidos por mais de um ano. Seja qual tenha sido a causa do atraso na publicação, no final de 1933, depois dos lançamentos de "Cacau", de Jorge Amado, e "Os Corumbas", de Amando Fontes, o público e a crítica esperavam outra coisa de um homem de esquerda como Graciliano Ramos. O crítico pernambucano Aderbal Jurema sintetizou bem a decepção causada por "Caetés", considerando-o "um livro somente humano", "completamente alheio à desigualdade de classes na sociedade e fora da órbita da literatura revolucionária do momento".

Apurada técnica narrativa
É claro que isso não significa que o romance tenha sido considerado ruim, e Jorge Amado, no auge de seu prestígio literário, chegou a dizer que considerava "Caetés" a melhor de todas as estréias daquele início de década. Mas se percebe uma tendência de "Caetés" ter sido subvalorizado desde seu lançamento, o que depois se intensificou, à medida que Graciliano foi lançando livros fantásticos, que acabaram fazendo sombra àquele romance de estréia. E "Caetés" é um livro admirável e merecedor de leitura por mais de um motivo. Em primeiro lugar porque o texto único de Graciliano Ramos já está lá -aliás, já estava em alguns artigos que, ainda adolescente, o escritor publicara. Em segundo lugar, pela apurada técnica narrativa. Antonio Candido notou o quanto "Caetés" ainda se liga ao pós-naturalismo, àquela altura bastante decadente. Mas Graciliano faz desvios em relação ao modelo naturalista que dão a seu romance um feitio especial. O mais evidente desses desvios é a opção pelo narrador em primeira pessoa, que o naturalismo evitava. Com esse deslocamento, o romance se constrói com um olho no espaço coletivo da pequena Palmeira dos Índios, com sua galeria de tipos curiosos, e outro no caso individual de João Valério, o protagonista da história, visto, por assim dizer, de dentro.

Papel ambíguo
Em terceiro lugar, porque essa constituição narrativa permite a "Caetés" ter uma riqueza temática que poucos romances brasileiros de seu tempo tinham. Note-se, nesse sentido, que a figura de João Valério representa a problematização, em alto grau de complexidade, do ambíguo papel do intelectual naquele momento em que o país passava por fortes transformações. Alguns críticos viram um sinal de grandeza de caráter nas inclinações intelectuais desse medíocre guarda-livros que colabora no jornal editado pelo padre da cidade e que durante cinco anos luta para concluir um romance sobre os índios caetés sem nunca conseguir sair do segundo capítulo. Mas é possível ver muito menos do que isso. João Valério, que numa rápida passagem nos informa ter tido algumas posses, sente-se inferiorizado na posição subalterna que ocupa -ainda que participe da vida social da cidade. Não tendo mais nada, nem dinheiro nem talento, qual o caminho que lhe resta para buscar algum tipo de prestígio social? Tornar-se respeitável pela atividade intelectual. Assim, quando pensa no livro, tudo o que lhe vem à mente é a imagem de sua exposição nas livrarias e as palavras que se diriam a seu respeito. Diante das dificuldades que tem pela completa ignorância sobre o assunto que escolheu, facilmente desiste, adiando seu trabalho e, portanto, sua glória. Não é à toa que sua vocação literária desaparece sem deixar vestígios assim que, por um golpe do destino, acaba se tornando sócio da casa comercial em que trabalhava. O prestígio social chegou e basta: não é preciso buscar derivativos na literatura. Nem mesmo Luísa, a mulher do patrão, por quem se apaixonara, desperta-lhe interesse.

Dupla estreiteza
Dessa forma, João Valério completa, por contraste, a trajetória de fracasso dos heróis posteriores de Graciliano, Paulo Honório, Luís da Silva e Fabiano. Afinal ele é o único que consegue o que deseja -que vence.
Mas essa vitória só é possível porque, no fundo, nada o separa dos valores da comunidade em que vive.
Na dupla estreiteza -pessoal e do meio-, tornar-se proprietário compensa a queda social anterior e ponto final. Haverá mesmo vitória nisso?
"Caetés" tem importância no conjunto da ficção de Graciliano Ramos também como demonstração do beco sem saída que a ação isolada representa nos livros desse grande romancista.


Luis Bueno é professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Paraná.


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