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São Paulo, domingo, 09 de março de 2003

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VIDAS SECAS OU A ATROFIA DA PALAVRA

Divulgação
Cena de "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos


por João Cezar de Castro Rocha

Num ensaio de 1943, Otto Maria Carpeaux propôs uma leitura surpreendente do livro publicado apenas cinco anos antes: "Não é o sertão o culpado; "Vidas Secas" é o seu romance relativamente mais sereno, relativamente mais otimista. O culpado é -superficialmente visto, numa primeira aproximação- a cidade". A oposição entre meio rural e meio urbano nada tem de nova. E parece mais interessante pensar que a cidade surge como a reserva de utopia em "Vidas Secas". Na projeção de Sinha Vitória e Fabiano, no parágrafo que encerra o romance, "andavam para o Sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias".

Dimensão utópica
Entretanto caracterizar "Vidas Secas" pela serenidade e pelo otimismo constitui um achado que merece ser desenvolvido. Afinal, superficialmente visto, o romance começa com uma "mudança" (título do primeiro capítulo) e termina numa "fuga" (título do último capítulo). Nomes diversos para o mesmo destino de retirantes em busca da sobrevivência. Os 13 capítulos do livro emolduram as ações transcorridas entre duas secas, ou seja, o termômetro das vidas severinas de Fabiano, Sinha Vitória, os dois filhos, a cachorra Baleia e o papagaio -"mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco". Otimismo e serenidade?
A observação de Carpeaux exige que se recupere a dimensão utópica disseminada por Graciliano Ramos em pequenos gestos de seus personagens. "Utopia" pode ser uma palavra excessiva para o estilo só-lâmina de Graciliano. Mas o princípio esperança, esse não foi abandonado por Fabiano, até diante da iminência de nova estiagem: "Seria necessário mudar-se? Apesar de saber que era necessário, agarrou-se a esperanças frágeis. Talvez a seca não viesse, talvez chovesse".
Sinha Vitória aprendeu a lição e, outra vez na estrada, resolveu acreditar que "talvez esse lugar para onde iam fosse melhor do que os outros onde tinham estado". Embora infundada, a esperança retorna nos momentos mais adversos, alimentando uma crença relativamente serena que não se confunde com fatalismo, pois a esperança surge no fim do romance na possibilidade de superação de limites. Uma possibilidade frágil, já se viu. Mas muito distante da leitura consagrada, sintetizada por Álvaro Lins: "O final do livro é uma retirada, como o princípio fora uma chegada, dentro de uma fatalidade que o romance sugere (...)".
Porém, como descobrir em "Vidas Secas" um texto em alguma medida otimista? De um lado, a resposta se encontra no princípio esperança. De outro, na extraordinária investigação linguística e epistemológica que confere unidade ao romance. Esse é um ponto fundamental. A interpretação dominante estabeleceu padrão oposto, mais uma vez expresso por Álvaro Lins: "(...) a novela, tendo sido articulada em quadros, os seus capítulos, assim independentes, não se articulam formalmente com bastante firmeza e segurança".
Ora, Graciliano não pretendia representar pobres retirantes; o que, numa abordagem tradicional, demandaria uma narrativa estruturada através de ações continuadas dos personagens. Pelo contrário, Graciliano esforçou-se por apresentar a pobreza em suas consequências mais graves: a atrofia da linguagem e a anemia do pensamento.
A dificuldade no controle da linguagem e o consequente embaraço na ordenação do pensamento são os verdadeiros protagonistas de "Vidas Secas". No primeiro capítulo, a sobrevivência da família é assegurada com a morte do papagaio: "A fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida". Os sinais de diálogo eram igualmente escassos: "Depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas". Em todos os capítulos, observações semelhantes retornam obsessivamente, estruturando a narrativa em torno da relação entre palavras raras e pensamento inarticulado.
O menino mais velho ficara intrigado com a palavra "inferno", o que irritara sua mãe. Depois de um castigo que considerou injusto, buscou aconselhar-se com Baleia: "Tinha um vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, e Baleia respondia com o rabo, com a língua". O filho mais velho aprendera com o pai, que "às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos -exclamações, onomatopéias".
Com tais recursos linguísticos, o pensamento pode se tornar tão hostil quanto o clima. O menino mais novo queria impressionar seu irmão e a cachorra. Fracassou, "fez tenção de entender-se com alguém, mas ignorava o que pretendia dizer. A égua alazã e o bode misturavam-se, ele e o pai misturavam-se também". O filho mais novo aprendera com a mãe, que enfrentava idêntica dificuldade para expressar o desejo por uma cama de gente como a de Seu Tomás da bolandeira: "Isto lhe sugeriu duas imagens quase simultâneas, que se confundiram e neutralizaram".
A arquitetura de "Vidas Secas" revela-se toda no capítulo "Inverno", sétimo do conjunto de 13 capítulos. Reunida a família em torno do fogo, palavras atravessavam o ambiente. Tratava-se da "conversa dos pais. Não era propriamente conversa: eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências".
Ora, essa arquitetura sutil se completa no último capítulo, "Fuga", simétrico invertido do primeiro, "Mudança". Nesse, os retirantes mudavam-se de uma fazenda a outra, mas em nada alteravam sua condição de "quase uma rês na fazenda alheia". Rês, res: coisa, apenas. Naquele, ao contrário, os viventes buscavam fugir do círculo perverso, imaginando um lugar, "uma terra desconhecida", a cidade grande.
E como fazê-lo? Através do controle inesperado da linguagem. Nesse capítulo, "Fuga", os personagens deixam de trocar palavras: eles realmente dialogam. "Sinha Vitória precisava falar. (...) Chegou-se a Fabiano, amparou-o e amparou-se". Nas páginas finais, Graciliano semeia diversas vezes a palavra decisiva: conversa. É através da linguagem que os viventes se fortalecem. E, pela primeira vez no romance, Fabiano "mostrou os dentes sujos num riso infantil". Riso de quem era in-fans, de quem pouco falava e quase nada escutava. Agora, "as palavras de Sinha Vitória encantavam-no. Iriam para diante (...)".
A linguagem transformou "quatro sombras" numa família. E quem sabe no capítulo que não foi escrito os dois meninos recebessem nomes próprios.

João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj).


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