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São Paulo, domingo, 09 de março de 2003

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PONTO DE FUGA

O diabo, provavelmente

Divulgação
Cena do filme "Gangues de Nova York", dirigido por Martin Scorsese


Jorge Coli
especial para a Folha

A tensão entre o produtor e o diretor resultou num parto doloroso e num filme mais curto do que o previsto. Não importa: encontra-se nas telas de cinema uma obra essencial. "Gangues de Nova York" é muito complexo e é preciso tempo para que ele se decante. Só depois as análises poderão alcançar sua verdadeira medida.
O filme faz História, História das multidões e dos esquecidos, História da violência e da corrupção, História dos antros mais escuros e imundos, dos ódios de raça e de clãs. História da guerra que é carnificina e não heroísmo. História que expõe a democracia como simulacro. O filme pega pelo avesso os velhos mitos enérgicos americanos. Opõe-se à saga do western e das planícies desejadas (a América, diz o cartaz, nasceu nas ruas), criando uma épica semelhante à dos grandes romances históricos que puseram em cena forças coletivas. Por destacados que sejam os protagonistas, eles terminam incorporando-se nas tramas dos movimentos gerais.
A História dos homens, no entanto, mostra-se, no universo de Scorsese, como o fluxo móvel diante de um fundamento sagrado e eterno. Como Robert Bresson, Scorsese é obcecado pela presença do mal no mundo, pela dificuldade de alcançar o divino, mesmo quando se age em nome dele. Num gesto simbólico, a Bíblia é atirada às águas. Os personagens mostram no corpo as marcas do martírio. Simpáticos ou não, eles se irmanam na mesma dificuldade em chegar à salvação.

Deus - Cameron Diaz encarna uma punguista, versão feminina do "Pickpocket" de Robert Bresson. Bresson é uma das chaves mais indispensáveis para o cinema de Scorsese. Ambos possuem em comum um catolicismo inquieto, que pensa em termos metafísicos e se angustia diante da inevitável imanência do mal entre os homens.
Scorsese acrescenta uma preocupação com o tempo histórico e com a política. "Kundun" havia procedido, em modo mais suave, com frieza aterradora, a esses cruzamentos. "Gangues de Nova York" insiste em figuras paternas, não psicanalíticas, mas bíblicas: Abraão prestes a sacrificar Isaac, Deus Pai que deixa crucificar seu filho. Retoma a figura do traidor, cuja dimensão desesperadora foi exposta em "A Última Tentação de Cristo".

Superstar - No palácio de Sully, em Paris, ocorreu uma curiosa exposição: "Corpus Christi - As Representações do Cristo em Fotografia - 1855-2002". Ela foi concebida pelo Museu de Israel (Jerusalém). Imagens fotográficas, reconstituindo episódios dos evangelhos, são muito antigas. No início, as fotos tinham uma função piedosa ou técnica: as primeiras destinavam-se aos fiéis; as segundas, aos pintores, que se serviam delas como modelos. Se algumas vezes, como nas fotografias de Julia Margareth Cameron, a espiritualidade foi alcançada, mais frequentemente e, por vezes, mesmo sem intenção, o realismo acentuava os aspectos eróticos e sadomasoquistas das cenas. Logo, um desvio intencional se impõe pela heresia e pelo satanismo, com mulheres nuas crucificadas, com efeitos obscenos que empregam o choque pornográfico.
Mas há também uma identificação entre a infelicidade humana e o sofrimento, como em apelo à fraternidade. É assim com os cinco grandes painéis de Rauf Mamedov (fotógrafo nascido no Azerbaijão, em 1956). Juntos, eles compõem uma Santa Ceia, inspirada em Leonardo, onde Jesus e os apóstolos são representados por mongolóides. Outras vezes, a associação com a Paixão de Cristo se impõe quando a foto evoca, por acaso, cenas religiosas consagradas pela pintura; entre elas encontram-se instantâneos de guerra e a exposição do "Che" Guevara assassinado. A mostra é perturbadora, causou escândalo, porque atinge antigas e veneráveis convenções visuais.

Paperback - Morte e ressurreição em Nova York: "Tell No One", de Harlan Coben (Dell Publishing), é um thriller assombroso. Seu enredo, que surpreende, é vazado num sentido certeiro da narração e carrega angústias cegas, culpas, remorsos e redenções.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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