São Paulo, domingo, 09 de abril de 2006

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ESPETÁCULO DE CLOWNS

Divulgação
Lílian Lemmertz, Lélia Abramo e Eva Wilma (as três do centro, a partir da esq.) em cena da montagem de "Esperando Godot" dirigida por Antunes Filho


O diretor Antunes Filho discute sua encenação de "Esperando Godot", em 1977, e diz que déficit cultural dificulta montagens das peças do dramaturgo no Brasil

CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Encarar as angústias de "Esperando Godot", em 1977, tendo por pano de fundo a ditadura militar brasileira e a transição do moderno ao pós-moderno, foi experiência decisiva para as rupturas que afastaram Antunes Filho do teatro convencional a partir de "Macunaíma" (1978).
Na empreitada beckettiana, Antunes inovou ao escalar um elenco exclusivamente feminino -proposta, segundo ele, de Eva Wilma, que contratou o diretor, produziu o espetáculo e atuou ao lado de Lélia Abramo, Lílian Lemmertz, Maria Yuma e Vera Lyma.


O sentimento em Beckett é uma máquina, que vem depois da palavra; até ele, geralmente se dava o contrário


Na entrevista a seguir, Antunes comenta seu "Godot" e as dificuldades para uma maior difusão do repertório de Beckett nos palcos brasileiros. O diretor do CPT [Centro de Pesquisa Teatral], atualmente ocupado com o desafio de encenar o romance monumental "A Pedra do Reino", de Ariano Suassuna -que deve estrear no início do segundo semestre-, deixa escapar o desejo de encenar algum outro texto do dramaturgo irlandês: "Lá adiante talvez eu faça uma outra experiência, não sei o que, mas tenho vontade".
 

Folha - Por que no Brasil não há uma tradição de repertório beckettiano?
Antunes Filho -
Primeiramente é um problema cultural: para entender Beckett, precisa-se de um embasamento, essa questão toda do modernismo e pós-modernismo etc.
Por outro lado é o problema técnico da classe teatral, a questão da expressão do ator. Quando se interpreta Beckett, as pessoas vão com o sentimento, já entram sofrendo. E não é nada disso, é um jogo de palavras. Jogue palavras, procure se divertir, o ritmo é importante, é uma espécie de "clownerie" um com o outro, porque um precisa do outro, uma espécie de "O Gordo e o Magro".
O ator, quando faz Beckett, começa pela angústia e faz uma meleca de sentimentos. Tá errado. Tem que ficar no jogo, animar um ao outro e depois perguntar: "Por que estou fazendo isso?"; aí vem o sentimento. A turma coloca um romantismo antes. Não tem romantismo em Beckett, pode ter ainda em Kafka. É uma máquina, o sentimento em Beckett vem depois da palavra. Até ele, geralmente se dava o contrário.
Por essa somatória é que não se faz muito Beckett. O público mais velho, que viveu a ditadura, talvez reconheça alguma coisa do Beckett. Talvez agora, com a descrença geral dos políticos, o naufrágio do Congresso, comece a existir uma necessidade de fazer Beckett de novo.

Folha - O que representa para o sr. a obra de Beckett?
Antunes Filho -
Sempre estabeleço um paralelo entre Beckett e Kafka. Kafka aceita as leis, discorda, mas aceita as leis. Há uma certa religiosidade, um certo pecado original a ser pago. Beckett quer inventar, mas também existe no lado ateu do Beckett algo religioso, e, se nega, ele tem um lado religioso -a negação. Como ele nega, sofre mais.
Se fosse simplesmente ateu, seria ótimo, mas seus personagens negam o tempo todo. É tudo uma desolação, não há o que fazer mais, então o que eles fazem, se não há mais nada o que fazer? Falar, falar, falar. Eles gostam de jogar para continuar o jogo. É uma maneira de querer esquecer a própria angústia.

Folha - Que recordações o sr. guarda da sua montagem de 1977?
Antunes Filho -
Quando eu fiz o meu "Godot", fui muito condicionado por toda essa discussão da decadência do Ocidente, de que não há mais civilização, de que Auschwitz foi um inferno, Adorno, Walter Benjamin, a questão do teatro do absurdo, de que nada mais tem sentido...
Coloquei Hitler falando durante o espetáculo, que situei no pós-Holocausto, para poder dizer que foi lá que começou uma grande ruptura com o modernismo e se iniciou o pós-moderno. Foi lá que começou a suspeita de tudo, da hegemonia de certos valores. Também pensei na ditadura brasileira... Tudo isso é a mesma porcaria, Auschwitz, ditadura, é a mesma coisa, "é uma Tróia só", como diz Ariano Suassuna.
Mas o que me encafifa muito no "Godot" é que no primeiro ato não tem nenhuma folha, no segundo ato existem três, quatro folhas na árvore [posta no meio da cena]. O que quer dizer isso? É terrível, é absurdo, não queremos mais... Mas queremos, se eu falo é porque ainda quero alguma coisa. É uma coisa da "vontade" de Schopenhauer... Seguramos a vida.
A própria árvore, esquálida, terrível, não tem mais sentido, mas está agarrando a vida de uma maneira ou de outra. As personagens falam, falam, falam que nem as três folhinhas da árvore. A negação iconoclasta já é uma afirmação, tem um lado afirmativo. Há uma esperança, pelo menos a esperança na palavra, e posso dar um sentido místico à palavra, um sentido teológico.

Folha - "Esperando Godot" foi, juntamente com "Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?" (1978), uma de suas últimas peças antes da ruptura com o teatro comercial e de partir para o experimentalismo de "Macunaíma" e para a construção de seu CPT. Já estavam ali, de certo modo, as marcas da inovação que se afirmaria depois?
Antunes Filho -
Estava ali a minha angústia, eu me olhava no espelho também e dizia "não tem sentido", eu também estava vivendo o problema do absurdo, eu estava de Kafka e Beckett ao mesmo tempo, às vezes acreditando no pecado original, às vezes acreditando em alguma coisa lá fora pra poder ter sentido a vida, entendeu? Vontade e representação, como diria Schopenhauer, ou o "herói de si mesmo" do Nietzsche, essa coisa de me refugiar na arte, como o Beckett se refugiou, como o Kafka se refugiou, chegar à eternidade por meio da arte. Beckett foi uma passagem [para mim].


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