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ESPETÁCULO DE CLOWNS
Divulgação
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Lílian Lemmertz, Lélia Abramo e Eva Wilma (as três do centro, a partir da esq.) em cena da montagem de "Esperando Godot" dirigida por Antunes Filho |
O diretor Antunes Filho discute sua encenação de "Esperando Godot", em 1977,
e diz que déficit cultural dificulta montagens das peças do dramaturgo no Brasil
CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Encarar as angústias de "Esperando Godot", em 1977, tendo
por pano de fundo a ditadura
militar brasileira e a transição
do moderno ao pós-moderno, foi
experiência decisiva para as rupturas que afastaram Antunes Filho do
teatro convencional a partir de "Macunaíma" (1978).
Na empreitada beckettiana, Antunes inovou ao escalar um elenco exclusivamente feminino -proposta,
segundo ele, de Eva Wilma, que contratou o diretor, produziu o espetáculo e atuou ao lado de Lélia Abramo, Lílian Lemmertz, Maria Yuma e
Vera Lyma.
O sentimento em Beckett é uma máquina, que vem depois da palavra;
até ele, geralmente se dava o contrário
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Na entrevista a seguir, Antunes comenta seu "Godot" e as dificuldades
para uma maior difusão do repertório de Beckett nos palcos brasileiros.
O diretor do CPT [Centro de Pesquisa Teatral], atualmente ocupado
com o desafio de encenar o romance
monumental "A Pedra do Reino",
de Ariano Suassuna -que deve estrear no início do segundo semestre-, deixa escapar o desejo de encenar algum outro texto do dramaturgo irlandês: "Lá adiante talvez eu
faça uma outra experiência, não sei o
que, mas tenho vontade".
Folha - Por que no Brasil não há uma
tradição de repertório beckettiano?
Antunes Filho - Primeiramente é
um problema cultural: para entender Beckett, precisa-se de um embasamento, essa questão toda do modernismo e pós-modernismo etc.
Por outro lado é o problema técnico da classe teatral, a questão da expressão do ator. Quando se interpreta Beckett, as pessoas vão com o sentimento, já entram sofrendo. E não é
nada disso, é um jogo de palavras.
Jogue palavras, procure se divertir, o
ritmo é importante, é uma espécie
de "clownerie" um com o outro,
porque um precisa do outro, uma
espécie de "O Gordo e o Magro".
O ator, quando faz Beckett, começa pela angústia e faz uma meleca de
sentimentos. Tá errado. Tem que ficar no jogo, animar um ao outro e
depois perguntar: "Por que estou fazendo isso?"; aí vem o sentimento. A
turma coloca um romantismo antes.
Não tem romantismo em Beckett,
pode ter ainda em Kafka. É uma máquina, o sentimento em Beckett vem
depois da palavra. Até ele, geralmente se dava o contrário.
Por essa somatória é que não se faz
muito Beckett. O público mais velho, que viveu a ditadura, talvez reconheça alguma coisa do Beckett.
Talvez agora, com a descrença geral
dos políticos, o naufrágio do Congresso, comece a existir uma necessidade de fazer Beckett de novo.
Folha - O que representa para o sr. a
obra de Beckett?
Antunes Filho - Sempre estabeleço
um paralelo entre Beckett e Kafka.
Kafka aceita as leis, discorda, mas
aceita as leis. Há uma certa religiosidade, um certo pecado original a ser
pago. Beckett quer inventar, mas
também existe no lado ateu do Beckett algo religioso, e, se nega, ele tem
um lado religioso -a negação. Como ele nega, sofre mais.
Se fosse simplesmente ateu, seria
ótimo, mas seus personagens negam
o tempo todo. É tudo uma desolação, não há o que fazer mais, então o
que eles fazem, se não há mais nada
o que fazer? Falar, falar, falar. Eles
gostam de jogar para continuar o jogo. É uma maneira de querer esquecer a própria angústia.
Folha - Que recordações o sr. guarda
da sua montagem de 1977?
Antunes Filho - Quando eu fiz o
meu "Godot", fui muito condicionado por toda essa discussão da decadência do Ocidente, de que não há
mais civilização, de que Auschwitz
foi um inferno, Adorno, Walter Benjamin, a questão do teatro do absurdo, de que nada mais tem sentido...
Coloquei Hitler falando durante o
espetáculo, que situei no pós-Holocausto, para poder dizer que foi lá
que começou uma grande ruptura
com o modernismo e se iniciou o
pós-moderno. Foi lá que começou a
suspeita de tudo, da hegemonia de
certos valores. Também pensei na
ditadura brasileira... Tudo isso é a
mesma porcaria, Auschwitz, ditadura, é a mesma coisa, "é uma Tróia
só", como diz Ariano Suassuna.
Mas o que me encafifa muito no
"Godot" é que no primeiro ato não
tem nenhuma folha, no segundo ato
existem três, quatro folhas na árvore
[posta no meio da cena]. O que quer
dizer isso? É terrível, é absurdo, não
queremos mais... Mas queremos, se
eu falo é porque ainda quero alguma
coisa. É uma coisa da "vontade" de
Schopenhauer... Seguramos a vida.
A própria árvore, esquálida, terrível, não tem mais sentido, mas está
agarrando a vida de uma maneira ou
de outra. As personagens falam, falam, falam que nem as três folhinhas
da árvore. A negação iconoclasta já é
uma afirmação, tem um lado afirmativo. Há uma esperança, pelo menos a esperança na palavra, e posso
dar um sentido místico à palavra,
um sentido teológico.
Folha - "Esperando Godot" foi, juntamente com "Quem Tem Medo de
Virgínia Woolf?" (1978), uma de suas
últimas peças antes da ruptura com o
teatro comercial e de partir para o experimentalismo de "Macunaíma" e
para a construção de seu CPT. Já estavam ali, de certo modo, as marcas da
inovação que se afirmaria depois?
Antunes Filho - Estava ali a minha
angústia, eu me olhava no espelho
também e dizia "não tem sentido",
eu também estava vivendo o problema do absurdo, eu estava de Kafka e
Beckett ao mesmo tempo, às vezes
acreditando no pecado original, às
vezes acreditando em alguma coisa
lá fora pra poder ter sentido a vida,
entendeu? Vontade e representação,
como diria Schopenhauer, ou o "herói de si mesmo" do Nietzsche, essa
coisa de me refugiar na arte, como o
Beckett se refugiou, como o Kafka se
refugiou, chegar à eternidade por
meio da arte. Beckett foi uma passagem [para mim].
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