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A cor da igualdade
Contra
"Quem somos nós 0para dividir as crianças em duas categorias raciais?",
indaga Peter Fry
MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO
Um dos principais
antropólogos em
atividade no Brasil,
o inglês Peter Fry é
um dos signatários
do manifesto contra a adoção
do sistema de cotas nas universidades brasileiras.
Com uma rica experiência de
pesquisa na África e também
no Brasil, para onde veio na década de 70, Fry é crítico da forma como a colonização, especialmente a anglo-saxã, tratou
a questão das raças, o que teria
gerado grandes equívocos e
tragédias -os genocídios em
Ruanda seriam um exemplo
extremo.
Em "A Persistência da Raça"
(Civilização Brasileira), que
lançou em 2005, Fry aponta
uma evolução positiva na representação do negro na nossa
sociedade. Em entrevista à Folha, diz que vê com temor a introdução do conceito de raças
nas leis e critica o fato de que
não se combate o racismo com
campanhas ou nas escolas.
FOLHA - O sr. é contra a adoção do
sistema de cotas?
PETER FRY - Eu tenho sérias dúvidas...
FOLHA - Uma das críticas que se faz
à adoção é de que isso significaria
importar modelos de outros países
com experiências diversas.
FRY - Nunca achei isso muito
importante. É um falso argumento. Tudo no mundo se distribui, acho que é um argumento pseudonacionalista, não é
importante. Também não acho
importante o argumento da
qualidade de ensino.
FOLHA - Em que sentido?
FRY - O vestibular já exclui
muita gente. Colocar mais algumas pessoas não fará diferença.
É uma falsa questão. Seria perfeitamente possível que nós,
professores das universidades
brasileiras, tivéssemos 20% a
mais de alunos. Não afetaria a
qualidade de ensino, pois damos aulas a pouca gente na graduação. Não é essa a grande
questão em relação às cotas.
FOLHA - Qual é a grande questão?
FRY - É o que isso significa para
a visão que você tem de nacionalidade, só isso. Não acho
ruim o Brasil nunca ter mencionado raça em suas constituições. Todo mundo diz que depois da escravidão não se falou
de negros... E, onde se falou e se
discriminou, isso foi bom? Chegam quase a dizer que na África
do Sul foi melhor. Isso é uma visão muito curta.
FOLHA - O fato de a questão estar
sendo politizada é ruim?
FRY - Não, acho absolutamente positivo. Senão esses manifestos seriam votados no Congresso sem nenhum debate. O
Senado aprovou tudo sem nenhuma discussão. Acho mais
importante para o destino do
Brasil discutir essa questão do
que debater a venda de armas,
por exemplo.
FOLHA - O que você acha dos dois
projetos de lei em discussão?
FRY - Tudo o que penso está no
manifesto. Acho que está bem
redigido. A grande discussão é
sobre o que se deve fazer.
Acho que os ativistas negros
têm toda a razão de se preocupar com a questão do racismo.
As desigualdades são um assunto grave. Se nós tivermos
muita sorte nessa discussão,
poderemos até provocar uma
discussão mais séria ainda sobre a desigualdade em todos os
seus sentidos, e não apenas a
questão da cor. É muito difícil
falar criticamente sobre cotas,
porque logo surgem acusações
de racismo e privilégios. Esse é
um argumento muito perigoso.
Significa simplificar o assunto,
e acaba sendo uma forma de calar posições contrárias.
FOLHA - Trata-se de um argumento autoritário?
FRY - É um truque de argumentação, é sempre assim na
política. Não acho estranho que
isso aconteça, mas as pessoas a
favor das cotas vão fazer tudo
para que isso aconteça. Mas
acho que as pessoas em geral
têm de levar mais a sério essa
questão. Vou dar um exemplo.
Topei recentemente com
crianças de uma escola e pensei: Quem somos nós para dividir essas crianças em duas categorias raciais? Isso não faz sentido. Quem, em sã consciência,
pode pensar que essa é uma
maneira de resolver qualquer
questão? Fiquei assustado.
Racismo existe em toda parte, não há nenhum lugar que seja livre dessa praga. Sempre
achei que o Brasil poderia resolver essa questão de outra
maneira, sem colocar raças na
letra da lei, que acho um imenso perigo.
Nunca houve uma campanha
anti-racista no Brasil com a
mesma qualidade da campanha
contra a Aids. Ninguém está
produzindo material escolar
para falar que nós somos todos
iguais. Toda a ênfase agora cai
sobre a diferença, sobre a suposta diferença. Deveríamos
estar falando sobre as semelhanças. Também é possível
atacar essa questão nas escolas
sem nomear raças.
Ao invés de resolver a questão do acesso das massas às
universidades, fala-se em dividir racialmente. Dizer que vamos resolver tudo com uma lei,
que não custa nada, sobre 500
anos de representações negativas, é ingenuidade.
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