São Paulo, domingo, 09 de julho de 2006

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A cor da igualdade

Contra

"Quem somos nós 0para dividir as crianças em duas categorias raciais?", indaga Peter Fry

MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO

Um dos principais antropólogos em atividade no Brasil, o inglês Peter Fry é um dos signatários do manifesto contra a adoção do sistema de cotas nas universidades brasileiras.
Com uma rica experiência de pesquisa na África e também no Brasil, para onde veio na década de 70, Fry é crítico da forma como a colonização, especialmente a anglo-saxã, tratou a questão das raças, o que teria gerado grandes equívocos e tragédias -os genocídios em Ruanda seriam um exemplo extremo.
Em "A Persistência da Raça" (Civilização Brasileira), que lançou em 2005, Fry aponta uma evolução positiva na representação do negro na nossa sociedade. Em entrevista à Folha, diz que vê com temor a introdução do conceito de raças nas leis e critica o fato de que não se combate o racismo com campanhas ou nas escolas.

 

FOLHA - O sr. é contra a adoção do sistema de cotas?
PETER FRY -
Eu tenho sérias dúvidas...

FOLHA - Uma das críticas que se faz à adoção é de que isso significaria importar modelos de outros países com experiências diversas.
FRY -
Nunca achei isso muito importante. É um falso argumento. Tudo no mundo se distribui, acho que é um argumento pseudonacionalista, não é importante. Também não acho importante o argumento da qualidade de ensino.

FOLHA - Em que sentido?
FRY -
O vestibular já exclui muita gente. Colocar mais algumas pessoas não fará diferença. É uma falsa questão. Seria perfeitamente possível que nós, professores das universidades brasileiras, tivéssemos 20% a mais de alunos. Não afetaria a qualidade de ensino, pois damos aulas a pouca gente na graduação. Não é essa a grande questão em relação às cotas.

FOLHA - Qual é a grande questão?
FRY -
É o que isso significa para a visão que você tem de nacionalidade, só isso. Não acho ruim o Brasil nunca ter mencionado raça em suas constituições. Todo mundo diz que depois da escravidão não se falou de negros... E, onde se falou e se discriminou, isso foi bom? Chegam quase a dizer que na África do Sul foi melhor. Isso é uma visão muito curta.

FOLHA - O fato de a questão estar sendo politizada é ruim?
FRY -
Não, acho absolutamente positivo. Senão esses manifestos seriam votados no Congresso sem nenhum debate. O Senado aprovou tudo sem nenhuma discussão. Acho mais importante para o destino do Brasil discutir essa questão do que debater a venda de armas, por exemplo.

FOLHA - O que você acha dos dois projetos de lei em discussão?
FRY -
Tudo o que penso está no manifesto. Acho que está bem redigido. A grande discussão é sobre o que se deve fazer. Acho que os ativistas negros têm toda a razão de se preocupar com a questão do racismo. As desigualdades são um assunto grave. Se nós tivermos muita sorte nessa discussão, poderemos até provocar uma discussão mais séria ainda sobre a desigualdade em todos os seus sentidos, e não apenas a questão da cor. É muito difícil falar criticamente sobre cotas, porque logo surgem acusações de racismo e privilégios. Esse é um argumento muito perigoso. Significa simplificar o assunto, e acaba sendo uma forma de calar posições contrárias.

FOLHA - Trata-se de um argumento autoritário?
FRY -
É um truque de argumentação, é sempre assim na política. Não acho estranho que isso aconteça, mas as pessoas a favor das cotas vão fazer tudo para que isso aconteça. Mas acho que as pessoas em geral têm de levar mais a sério essa questão. Vou dar um exemplo.
Topei recentemente com crianças de uma escola e pensei: Quem somos nós para dividir essas crianças em duas categorias raciais? Isso não faz sentido. Quem, em sã consciência, pode pensar que essa é uma maneira de resolver qualquer questão? Fiquei assustado.
Racismo existe em toda parte, não há nenhum lugar que seja livre dessa praga. Sempre achei que o Brasil poderia resolver essa questão de outra maneira, sem colocar raças na letra da lei, que acho um imenso perigo.
Nunca houve uma campanha anti-racista no Brasil com a mesma qualidade da campanha contra a Aids. Ninguém está produzindo material escolar para falar que nós somos todos iguais. Toda a ênfase agora cai sobre a diferença, sobre a suposta diferença. Deveríamos estar falando sobre as semelhanças. Também é possível atacar essa questão nas escolas sem nomear raças.
Ao invés de resolver a questão do acesso das massas às universidades, fala-se em dividir racialmente. Dizer que vamos resolver tudo com uma lei, que não custa nada, sobre 500 anos de representações negativas, é ingenuidade.


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