São Paulo, domingo, 9 de agosto de 1998

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Jürgen Habermas escreve sobre o filósofo alemão, autor de "Eros e Civilização"
O centenário de Marcuse e os ritmos diversos da filosofia e da política

JÜRGEN HABERMAS
especial para a Folha

Quando da morte de Sophie, sua primeira mulher, Herbert Marcuse escreveu a Horkheimer e Pollock (3 de maio de 1951): "É falsa a idéia de que a morte faz parte da vida, e deveríamos levar Horkheimer bem mais a sério quando diz que só com a abolição da morte os homens serão realmente livres e felizes". A vida eterna já aqui sobre a Terra -Marcuse se apropriou por um viés vitalista dessa idéia pouco protestante, derivada de Condorcet. Ainda não chegamos a este ponto, apesar dos avanços da tecnologia genética. De outro modo, Marcuse estaria aqui para constatar a curiosa coincidência de seu centésimo aniversário com uma outra comemoração: "1898 - 1968 - 1998" foi o moto de um recente encontro em Gênova, dedicado à memória de Marcuse.
Lá estavam os admiradores acadêmicos do filósofo, mas o verdadeiro foco de interesse passional correu por conta do duplo papel do mentor quando da rebelião estudantil. Como se a coincidência de datas fizesse mais por Marcuse do que a memória de sua obra filosófica.
A baixa cotação de escritos antes publicados em grandes tiragens é muitas vezes mero sintoma do esgotamento de uma influência demasiado marcante. Foi o que aconteceu a Adorno: sua obra, entretanto, segue sendo um desafio para o presente -e com justiça. Até mesmo os trabalhos de Horkheimer preservam, no contexto da escola que inspiraram, o mesmo interesse de antes. Mas, no caso de Herbert Marcuse, o perfil de autor acadêmico recua diante do papel histórico de mentor e exemplo político.
Estamos familiarizados com as oscilações na acolhida de filósofos de maior ou menor estatura. Mas a repercussão de posições políticas, mais presas a seu contexto histórico do que as obras filosóficas, conhece ritmos diferentes, de menor fôlego. No caso de Marcuse, parece ter-se produzido um curto-circuito entre os ritmos da obra e do personagem político. O peso do pensamento filosófico foi arrastado pela maré de desvalorização do engajamento político. Seria demasiado fácil apresentar-se como porta-voz de um à custa do outro. E aí mora, se não estou enganado, o perigo de uma dupla distorção óptica -tanto no que diz respeito ao engajamento quanto em relação à filosofia.
Em comparação com os outros membros do círculo próximo a Horkheimer, Marcuse era certamente o de temperamento mais político. Participou em 1918 de um conselho de soldados ("Soldatenrat") berlinense e 60 anos mais tarde ainda falava com decepção sobre o "fracasso da revolução alemã, que meus amigos e eu presenciamos (...) quando do assassinato de Karl (Liebknecht) e Rosa (Luxemburg)". Durante a Segunda Guerra Mundial, Marcuse trabalhou na seção política do Office of Strategic Services (Escritório de Serviços Estratégicos), preparando análises do campo inimigo e assim contribuindo à sua maneira para a luta contra o regime que o expulsara da Alemanha.
No começo dos anos 60, o movimento pelos direitos civis nos EUA o trouxe de volta à política; pouco depois, participou da oposição à Guerra do Vietnã e, por fim, tornou-se influência maior nos movimentos estudantis dos dois lados do Atlântico. Entretanto, esse ativismo intermitente não deve nos impedir de ver que Marcuse, ainda em comparação com Horkheimer e Adorno, foi uma figura eminentemente acadêmica -daquele tipo que segue as regras do ofício e escreve livros eruditos.
Heidegger o familiarizou com os temas e os padrões da filosofia contemporânea. Marcuse, o primeiro "Heideggermarxist", redige sua tese de doutorado em estilo convencional e, por volta de 1930, publica trabalhos em revistas acadêmicas de renome. É Marcuse, e não Adorno, quem assume o papel de filósofo quando Horkheimer transfere o Instituto para Nova York -chega mesmo a escrever um comentário escolar ao ensaio "Teoria Tradicional e Teoria Crítica".
Em 1941, com um estudo histórico-sistemático sobre o surgimento da teoria social a partir da filosofia hegeliana, Marcuse conquista o devido reconhecimento também entre seus pares: "Razão e Revolução" suporta qualquer comparação com o famoso "De Hegel a Nietzsche", de Karl Löwith. Mesmo "Eros e Civilização", seu livro mais radical e em certo sentido mais "pessoal", é apresentado por Marcuse como contribuição a uma discussão acadêmica.
"O Homem Unidimensional" é sua obra mais conhecida, mas decerto não a melhor; publicado em 1964, o livro termina, ainda em tom pessimista, com uma citação de Benjamin: "Tão-só em nome dos desesperançados nos foi dada a esperança" -isto é, sem aquela "conexão com a práxis" ("Praxisbezug") que os estudantes logo criariam.
No prefácio a "Razão e Revolução", Marcuse justifica o interesse de um estudo sobre Hegel, afirmando que "o surgimento do fascismo exige imperiosamente uma nova interpretação da filosofia hegeliana". Do mesmo modo, se for verdade que a obra de Marcuse se formou à sombra da vida política de outrora, então as transformações sofridas desde então pela história contemporânea devem nos forçar a uma nova leitura de sua obra: trata-se menos de ler sua filosofia "a uma nova luz" do que de pôr à prova nossos juízos prévios sobre o papel político do autor.
A cuidadosa documentação que Wolfgang Kraushaar há pouco reuniu sobre "A Escola de Frankfurt e o Movimento Estudantil" ("Die Frankfurter Schule und die Studentbewegung") permite, a partir do caso da República Federal da Alemanha, examinar as posições de Marcuse no calor do movimento de 1968.
Pontos importantes se encontram já no discurso de Marcuse em 22 de maio de 1966, diante de um congresso sobre o Vietnã promovido pelo SDS na Universidade de Frankfurt. Marcuse parte do "contraste entre a riqueza social, o progresso técnico e o domínio da natureza, por um lado, e, por outro, a utilização de todas essas forças para a perpetuação da luta pela existência em nível nacional e internacional (...) a despeito de toda pobreza e miséria". Hoje em dia, com o fim da corrida armamentista entre as superpotências, a "utilização destrutiva da riqueza acumulada" é certamente menos evidente que nos dias da Guerra do Vietnã. Mas a era do capitalismo globalizado, que em certa medida faz com que índices de desemprego e valores de ações subam no mesmo ritmo, confirma por outra via a denúncia marcusiana de "uma união fatal entre produtividade e destrutividade".
Marcuse percebeu que as atuais relações de produção mais liberam que entravam as forças produtivas. Questiona então o modelo produtivista de emancipação social. Muito antes do Clube de Roma, ele se bate contra "a deplorável concepção de produtividade progressista, para o qual a natureza está ali, grátis, pronta para ser pilhada". Nesse meio tempo, o movimento ecológico trouxe esse tema à consciência de todos. Marcuse procurava distinguir o socialismo do capitalismo "não tanto pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas, mas sim em seu redirecionamento, pré-condição para a abolição do trabalho, a autonomia das necessidades e o apaziguamento da luta pela existência".
Também a tese do "fim da sociedade do trabalho" está hoje na boca de todos: é patente que proporções crescentes da população economicamente ativa são "supérfluas" do ponto de vista da reprodução da sociedade. Uma pesquisa ampla mostrou que, nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o produto social inteiro é criado por 20% da população em condições de trabalho.
Também a avaliação marcusiana dos potenciais de protesto está longe de ser irrealista. Ele não via na União Soviética um contrapeso ao Ocidente capitalista; tampouco partilhava da opinião de que a miséria e a resistência das massas exploradas representassem todos os interesses gerais da sociedade. Nos EUA já se esboçava então uma outra configuração de maioria e minoria. A uma maioria integrada se opunham minorias marginalizadas sem poder de ameaça efetiva. É por isso que Marcuse deposita sua esperança na sensibilidade moral de jovens, intelectuais, mulheres, grupos religiosos etc.
As forças motrizes morais devem acorrer em auxílio dos interesses materiais dos humilhados e ofendidos: "Uma das coisas que aprendi (...) é que moral e ética não são mera superestrutura ou mera ideologia". Como bom idealista, Marcuse fala da "solidariedade da razão e do sentimento". Desde que os sociólogos vêm constatando a transformação das orientações valorativas ("Wertorientierungen"), cada vez menos materiais e mais "pós-materiais", também essa visão marcusiana ganha em plausibilidade.
Claro está que esses argumentos não bastam para explicar o grande eco que Marcuse teve junto ao público estudantil. Foram os impulsos de uma filosofia vitalista de matizes freudianos que lhe garantiram ressonância junto à geração do pós-guerra. Marcado ele mesmo pelos movimentos juvenis da virada do século, Marcuse teve faro para o caráter de contestação cultural do movimento estudantil, para o ímpeto peculiar da revolta e para a auto-imagem dos rebeldes: "Essa oposição é simultaneamente uma revolta sexual, moral, intelectual e política. Nesse sentido, é uma revolta total, voltada contra o sistema como um todo".
De resto, esta última afirmação deixa entrever como essa descrição existencialista é um convite a ligar a revolta juvenil ao conceito histórico-filosófico de "inversão do todo", isto é, com o conceito de revolução. Marcuse jamais chegou a confundir a revolta com uma revolução; mas atribuiu a ela o papel de fagulha inicial. Ele sugere a seus ouvintes que se considerem como parte de um futuro movimento revolucionário. Contraprova disso são suas declarações ambíguas quanto à questão da violência.
Ainda em junho de 1967 ele toma distância da facção liberal da SDS, numa observação dirigida contra Knut Nevermann: "De modo algum identifiquei humanidade com não-violência. Pelo contrário, falei de situações em que é do interesse da humanidade recorrer à violência". Essa tendência é reforçada pela visão racionalista-autoritária ("vernunftautoritär") e elitista da filosofia, que Marcuse herdou, como outros companheiros de geração, do currículo politicamente questionável do ensino secundário alemão -Hannah Arendt, por exemplo, não está muito longe disso.
A ilusória identificação da juventude rebelde com uma vanguarda revolucionária explica parcialmente a atual maré baixa da obra filosófica de Marcuse. O passo em falso de então dificulta hoje a tarefa de dissociar retrospectivamente a produção acadêmica daquele momento político, daquele contexto histórico que o próprio Marcuse promovera à condição de critério de verdade. Não é a primeira vez que uma filosofia soçobra contra aquela mesma história que ela antes elevara a "criterium veri et falsi".
Mas este veredicto contém um tom sardônico imerecido. Não faz jus ao conteúdo de verdade das análises de Marcuse. Ele captou a imbricação entre a produtividade do progresso econômico e a destrutividade de suas consequências sociais por meio de conceitos invocatórios e totalizantes -isto é, por meio de conceitos que nos soam estranhos hoje. Apresentou seus diagnósticos por meio da imagem de uma sociedade totalitária fechada porque acreditava ter que introduzir um vocabulário capaz de abrir olhos embaciados para fenômenos desapercebidos, apresentando estes mesmos fenômenos a uma contraluz nua e crua.
Tudo isso mudou. Não há leitor de jornal que se engane sobre
a imbricação entre produtividade e destrutividade. Nossos governos se enredaram numa corrida de desregulamentação que, na última década, levou a uma obscena desigualdade social e a dramáticas diferenças de renda, à deterioração das infra-estruturas culturais, ao desemprego crescente e à marginalização de uma população miserável cada vez maior. Não precisamos de uma nova linguagem para reconhecer tudo isso, uma vez que já não nos imaginamos em uma "sociedade da abundância".
Também a situação cultural se modificou. O pós-modernismo desarmou a auto-imagem da modernidade. Já não se sabe se a concepção democrática de uma sociedade que se auto-regula politicamente pela vontade e pela consciência de seus cidadãos é uma simpática idéia fora de moda ou uma perigosa utopia. Em conjunto com uma antropologia pessimista, o neoliberalismo nos acostuma dia após dia a uma situação mundial em que desigualdade e exclusão passam por fatos naturais.
Ao longo dos dois últimos séculos, nossas constituições haviam incorporado uma perspectiva bastante diversa. Precisaremos talvez de uma linguagem renovada para que, contra a mera adequação a imperativos funcionais, essa visão normativa das coisas não caia de vez em esquecimento?



Tradução de Samuel Titan Jr..



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