São Paulo, domingo, 9 de agosto de 1998

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A literatura da América Latina é o tema dos ensaios de "Barroco e Modernidade"
A síndrome neobarroca

JOSELY VIANNA BAPTISTA
especial para a Folha

Onde estaria a originalidade histórica da modernidade latino-americana? Aquele momento de ruptura em que, ao se projetar em determinado passado, o presente se atualiza, se reinventa?
Propondo-se rastrear os sintomas do que chama de "síndrome barroca" na América, a ensaísta e professora de letras Irlemar Chiampi, em "Barroco e Modernidade", investiga os principais momentos de reciclagem do barroco -visto como "encruzilhada estética e cultural que originou o moderno e o que dali em diante chamamos de literatura".
Nem o barroco histórico (como estilo literário dos Seiscentos, ligado à Contra-Reforma, à monarquia, e ferramenta de militância eclesiástica), nem o conceito de barroco como ocorrência trans-histórica, (ao modo da "constante artística" de Eugenio D'Ors ou da "vontade de forma" de Wölfflin), ocupam lugar central nesses ensaios. Irlemar Chiampi pensa a relação barroco x modernidade para além da habitual dicotomia que nutriu desde sempre os debates acadêmicos sobre o barroco.
O percurso experimental da modernidade estética latino-americana, a relação entre a prática escritural do barroco americano e de seu avatar pós-moderno, o neobarroco, é traçado por Irlemar através da análise de autores como Severo Sarduy, Alejo Carpentier, Lezama Lima, Guimarães Rosa, Lautréamont, Cabrera Infante e Borges (incluindo, d'além-mar, o espanhol-galego Julián Ríos, "afinado com a linhagem de nossa alta modernidade") -com um recuo estratégico, a modo de coda, ao "Sermão da Sexagésima", de Vieira, e à apologia de Gôngora por Medrano.
A ancoragem do barroco na modernidade literária latino-americana de início se dá, conforme demonstra Irlemar, tímida e temático-ornamentalmente, pelas mãos do poeta nicaraguense Rubén Darío, em pleno modernismo, no final do século 19 (correspondendo, grosso modo, ao nosso simbolismo); depois, em poetas da vanguarda, como no Borges dos manifestos ultraístas dos anos 20, também sem que surja o interesse em reinterpretá-lo a partir de uma visada americana.
O terceiro pólo de inserção se dá principalmente com os cubanos Lezama Lima e Carpentier, nas décadas de 50 e 60, momento em que o barroco é reapropriado criticamente (note-se que em 1963, no Brasil, Haroldo de Campos começava a dar à estampa os fragmentos barroquilíricos das "Galáxias"). A partir dos anos 70, na chamada pós-modernidade, Irlemar destaca as obras de Sarduy -também como teórico do (neo)barroco- e Julián Ríos (em 75, por sinal, Paulo Leminski lançava o barrocodélico "Catatau").
Insuflado pela escritura moderna, e com "extrema consciência da representação" (C. Buci-Glucksmann, "La Raison Baroque"), o barroco alcança, no processo de reapropriação, "legibilidade estética" e "legitimação histórica". Isso se evidencia na proposta moderna, vinculada à busca da identidade cultural, na época em que o léxico desfraldava sem cessar os vocábulos "novo", "experimental", "ruptura", e que tem seu auge no boom dos anos 60.
Mais tarde, emergindo do ceticismo causado pelo naufrágio do que Lyotard denomina Grandes Relatos (do progresso, humanismo, ciência, arte, sujeito), o neobarroco se configura na proposta pós-moderna, desconstruindo criticamente, entre outras, a ideologia do consumo e da acumulação na modernidade crepuscular.
Sob os ventos tempestuosos do paraíso, a razão se fratura. Contra o centro, a estabilidade, a totalidade, o neobarroco opõe o excêntrico, a instabilidade, o fragmento. Decepcionando os que deliram ao ver nele resquícios de uma catoliquice renitente ou frivolidades ornamentais, desata a língua derrisória contra as ideologias segregatícias e xenófobas, pondo em cena seu teatro de signos e fazendo um "mimodrama dos tiques literários modernos" (na tradição da "risotada" de Góngora, que, com a obscuridade de sua poética, deixou desveladas as metáforas clássicas...). Mas em que encruzilhada estaria, afinal, a estela de nossa diferença? Lezama Lima, autor de "Paradiso", traz um aporte singular à questão.
Situando nosso começo nos Seiscentos, elege a estética barroca como eixo do autêntico devir americano. O barroco seria um legítimo começo por constituir "uma síntese hispano-incaica e hispano-negróide". Ao barroco da Contra-Reforma, opõe o barroco como "arte da contraconquista". A própria América é vista por Lezama como "era imaginária", configurada quando uma cultura "evapora imagens como revelação encarnada do absoluto".
Espécie de método ideogrâmico, se me permitem a extravagância, elevado à potência infinita da metáfora, a teoria das eras imaginárias pensa a imagem como a última das histórias possíveis e a história como uma "crônica poetizável de imagens", regida -no que deixa claro o nariz torcido ao logos hegeliano- pelo "incondicionado poético", ou seja, aquilo que o poético toma à história, desloca e reinventa. Lezama "americaniza" o barroco, que considera nossa meta-história, nossa (outra) modernidade permanente.
Com razão Irlemar Chiampi conclui ser parcial e incompleto todo debate sobre a modernidade na América Latina que desconsidere o barroco. Nesta oportuna coletânea de ensaios, cuja complexidade excede os limites de uma resenha, a autora perfila elementos-chave da originalidade americana e, com isso, faz avançar o reexame de qualquer tentativa de se fazer das Américas um modelo mal-acabado e farsesco do projeto das razões européias.

A OBRA
Barroco e Modernidade - Irlemar Chiampi. Ed. Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 011/885-8388). 160 págs., R$ 16,00.


Josely Vianna Baptista é poeta, autora de "Ar" e "Corpografia" (Iluminuras).



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