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A literatura da América Latina é o tema dos ensaios de "Barroco e Modernidade"
A síndrome neobarroca
JOSELY VIANNA BAPTISTA
especial para a Folha
Onde estaria a originalidade histórica da modernidade latino-americana? Aquele momento de
ruptura em que, ao se projetar em
determinado passado, o presente
se atualiza, se reinventa?
Propondo-se rastrear os sintomas do que chama de "síndrome
barroca" na América, a ensaísta e
professora de letras Irlemar
Chiampi, em "Barroco e Modernidade", investiga os principais
momentos de reciclagem do barroco -visto como "encruzilhada
estética e cultural que originou o
moderno e o que dali em diante
chamamos de literatura".
Nem o barroco histórico (como
estilo literário dos Seiscentos, ligado à Contra-Reforma, à monarquia, e ferramenta de militância
eclesiástica), nem o conceito de
barroco como ocorrência
trans-histórica, (ao modo da
"constante artística" de Eugenio
D'Ors ou da "vontade de forma"
de Wölfflin), ocupam lugar central nesses ensaios. Irlemar
Chiampi pensa a relação barroco x
modernidade para além da habitual dicotomia que nutriu desde
sempre os debates acadêmicos sobre o barroco.
O percurso experimental da modernidade estética latino-americana, a relação entre a prática escritural do barroco americano e de
seu avatar pós-moderno, o neobarroco, é traçado por Irlemar
através da análise de autores como
Severo Sarduy, Alejo Carpentier,
Lezama Lima, Guimarães Rosa,
Lautréamont, Cabrera Infante e
Borges (incluindo, d'além-mar, o
espanhol-galego Julián Ríos, "afinado com a linhagem de nossa alta
modernidade") -com um recuo
estratégico, a modo de coda, ao
"Sermão da Sexagésima", de
Vieira, e à apologia de Gôngora
por Medrano.
A ancoragem do barroco na modernidade literária latino-americana de início se dá, conforme demonstra Irlemar, tímida e temático-ornamentalmente, pelas mãos
do poeta nicaraguense Rubén Darío, em pleno modernismo, no final do século 19 (correspondendo,
grosso modo, ao nosso simbolismo); depois, em poetas da vanguarda, como no Borges dos manifestos ultraístas dos anos 20,
também sem que surja o interesse
em reinterpretá-lo a partir de uma
visada americana.
O terceiro pólo de inserção se dá
principalmente com os cubanos
Lezama Lima e Carpentier, nas décadas de 50 e 60, momento em que
o barroco é reapropriado criticamente (note-se que em 1963, no
Brasil, Haroldo de Campos começava a dar à estampa os fragmentos barroquilíricos das "Galáxias"). A partir dos anos 70, na
chamada pós-modernidade, Irlemar destaca as obras de Sarduy
-também como teórico do
(neo)barroco- e Julián Ríos (em
75, por sinal, Paulo Leminski lançava o barrocodélico "Catatau").
Insuflado pela escritura moderna, e com "extrema consciência
da representação" (C. Buci-Glucksmann, "La Raison Baroque"), o barroco alcança, no processo de reapropriação, "legibilidade estética" e "legitimação histórica". Isso se evidencia na proposta moderna, vinculada à busca
da identidade cultural, na época
em que o léxico desfraldava sem
cessar os vocábulos "novo",
"experimental", "ruptura", e
que tem seu auge no boom dos
anos 60.
Mais tarde,
emergindo do
ceticismo causado pelo naufrágio do que
Lyotard denomina Grandes
Relatos (do
progresso, humanismo,
ciência, arte,
sujeito), o neobarroco se
configura na proposta pós-moderna, desconstruindo criticamente, entre outras, a ideologia do
consumo e da acumulação na modernidade crepuscular.
Sob os ventos tempestuosos do
paraíso, a razão se fratura. Contra
o centro, a estabilidade, a totalidade, o neobarroco opõe o excêntrico, a instabilidade, o fragmento.
Decepcionando os que deliram ao
ver nele resquícios de uma catoliquice renitente ou frivolidades ornamentais, desata a língua derrisória contra as ideologias segregatícias e xenófobas, pondo em cena
seu teatro de signos e fazendo um
"mimodrama dos tiques literários
modernos" (na tradição da "risotada" de Góngora, que, com a
obscuridade de sua poética, deixou desveladas as metáforas clássicas...). Mas em que encruzilhada
estaria, afinal, a estela de nossa diferença? Lezama Lima, autor de
"Paradiso", traz um aporte singular à questão.
Situando nosso começo nos
Seiscentos, elege a estética
barroca como
eixo do autêntico devir americano. O barroco seria um
legítimo começo por constituir "uma síntese hispano-incaica e
hispano-negróide". Ao barroco da Contra-Reforma, opõe o barroco como "arte da
contraconquista". A própria
América é vista por Lezama como
"era imaginária", configurada
quando uma cultura "evapora
imagens como revelação encarnada do absoluto".
Espécie de método ideogrâmico,
se me permitem a extravagância,
elevado à potência infinita da metáfora, a teoria das eras imaginárias pensa a imagem como a última das histórias possíveis e a história como uma "crônica poetizável de imagens", regida -no que
deixa claro o nariz torcido ao logos hegeliano- pelo "incondicionado poético", ou seja, aquilo
que o poético toma à história, desloca e reinventa. Lezama "americaniza" o barroco, que considera
nossa meta-história, nossa (outra)
modernidade permanente.
Com razão Irlemar Chiampi
conclui ser parcial e incompleto
todo debate sobre a modernidade
na América Latina que desconsidere o barroco. Nesta oportuna
coletânea de ensaios, cuja complexidade excede os limites de uma
resenha, a autora perfila elementos-chave da originalidade americana e, com isso, faz avançar o reexame de qualquer tentativa de se
fazer das Américas um modelo
mal-acabado e farsesco do projeto
das razões européias.
A OBRA
Barroco e Modernidade -
Irlemar Chiampi. Ed. Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio,
3.025, CEP 01401-000, SP, tel.
011/885-8388). 160 págs., R$
16,00.
Josely Vianna Baptista é poeta, autora de "Ar"
e "Corpografia" (Iluminuras).
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