São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2007

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LIVROS

Armadilhas da distorção

Reunião de entrevistas a David Silvester e ensaio de Gilles Deleuze reavivam relação conflituosa de Francis Bacon com a natureza da imagem

PAULO PASTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A publicação simultânea de dois livros sobre Francis Bacon (1909-92), além de chamar novamente a atenção para o trabalho do pintor irlandês, vai além da mera coincidência editorial e revela a singular relação dessas obras. Um dos livros ("Entrevistas com Francis Bacon", de David Silvester) é, na verdade, uma segunda edição aprimorada, com pequenas e certeiras modificações na tradução; o segundo é "Francis Bacon - Lógica da Sensação", de Gilles Deleuze.
A leitura deste último deixa claro que Deleuze, afora sua observação direta das pinturas de Bacon, se valeu também do livro de Silvester, que tomou, de certa forma, como um parâmetro, desenvolvendo de modo abrangente, assim potencializando, as questões postas nessas entrevistas -que, a meu ver, estão entre as mais interessantes e reveladoras já feitas com um pintor.
É raro que o encontro de um artista e de um crítico seja tão feliz quanto foi o de Bacon e Silvester. As nove entrevistas que formam o livro desenvolveram-se ao longo de quase 25 anos de conversas e amizade, sendo a primeira de 1962 e a nona, e última, de 1984-86.
Acompanhar esse longo curso permite ver que o pintor mais que aceita seu interlocutor -evolui com ele, no sentido de que também se move em reação aos seus movimentos.
Marcações certas e curiosas dessa interação seriam as várias ocasiões em que o artista toma como seus argumentos que, nas entrevistas anteriores, eram do entrevistador. Não menos curioso é verificar que Bacon volta e meia dirige perguntas a Silvester, invertendo a ordem das coisas -sinal de que o pintor se sentia livre e de que também se descobria dialeticamente nesse diálogo.
As questões mais centrais e recorrentes da pintura de Bacon aparecem já na primeira entrevista: sua relação conflituosa com a natureza da imagem e os meios de que procura se valer para expressá-la.
Parece ser de acordo geral que o que logo chama a atenção, em Bacon, é o seu modo muito peculiar de tratar a figura, em particular o caráter ao mesmo tempo grotesco e desconcertante de suas "viandas" (para usar a tradução de uma expressão de Deleuze), manifesto no angustiante ""cheiro de morte" destas, assim como em sua patente vontade de tocar diretamente "nosso sistema nervoso, e não só de contar uma história num longo discurso para o nosso cérebro", como diz Bacon.

Supra-realidade
Tudo indica que esse tratamento carrega o intuito de fazer que essa pintura da matéria, da carne e do corpo atinja também, simetricamente, o corpo de quem as vê.
Põe-se aí, então, a questão dos meios: como fazer isso?
Várias vezes, nas entrevistas, Bacon emprega a palavra "fato" para tentar descrever com maior precisão essa espécie de imagem que é ao mesmo tempo autônoma e reconhecível, distante da ilustração -uma imagem "cuja aparência é condicionada o mínimo possível pelos padrões aceitáveis do que é aparência", nas palavras de David Silvester.
Tal inflexão seria a condição básica para a imagem tornar-se um fato: algo como "ir mais longe com a imagem", tensionar a corda até destruí-la ou à sua aparência comum.
Transformá-la, enfim, desentranhando-a do real e dotando-a de uma supra-realidade antes insuspeita.
Só assim a imagem ficaria mais real, só assim o pintor poderia reconhecer-se nela. É essa distorção que Bacon vai chamar de arte, e não de ilustração.
Torna-se claro, então, que o pintor quer pintar figuras, mas não o quer fazer figurativamente. Conforme Deleuze, tudo se passaria como se ele buscasse "a figura na figuração": a figuração seria, então, a narrativa, a ilustração, e a figura, o fato, a deformação do real.
Salvo engano, nessa operação com a imagem se encontra o núcleo da maior parte das questões que a pintura de Bacon suscita. Mesmo procurando essa "imagem da imagem", ele se diz interessado apenas na aparência, e, quanto mais artificial esta, "mais parecida com a coisa" se tornaria.
Para entender melhor essas aporias, convém observar um pouco o que o próprio pintor diz dos processos que utiliza.
Um dado sem dúvida relevante nessa direção é o fato de Bacon sempre usar fotografias para fazer seus quadros. Ele gostava muito das fotos de Muybridge, de suas seqüências de movimentos com corpos nus. Apreciava igualmente alguns fotogramas dos filmes de Eisenstein e reproduções de um livro de medicina de K.C. Clark, sobre posições em radiografias. Sempre colecionou fotos de jornais e de seus amigos e pessoas próximas, preferindo retratá-los a partir dessas fotos a fazê-lo a partir do estudo do natural.

"Noção de aparência"
Sentia-se mais à vontade com as reproduções fotográficas, na presença delas, por assim dizer, do que diante do mundo real. Mesmo a famosa série dos papas gritando veio, como se sabe, de um conhecido trabalho de Velázquez, que Bacon conhecia somente por meio de reproduções, declarando jamais ter sentido vontade de ver o original.
Dizia achar as fotos mais interessantes do que as pinturas. Argüido a esse respeito, respondeu que a preferência se devia ao impacto que as fotos lhe causavam, tendo em vista a proximidade muito grande que elas teriam com o fato.
A "noção de aparência" seria o tempo todo assaltada pela fotografia e pelo filme, assalto esse provocado pela violência que as fotos carregariam. As fotos eram, assim, para Bacon, um recurso que repunha como repertório o mundo, substituindo a observação deste na grande maioria dos casos.
Sobre isso, porém, ele nunca quis falar muito. Ao que parece, nunca esse fator constitutivo de seu trabalho como pintor figurativo constituiu, para ele, uma questão.
Conforme se torna claro na entrevista de número cinco, na qual mais se demora sobre esses problemas, sua luta principal se travava com a pintura abstrata. É nessa relação que, principalmente, ele trata de conceituar seu próprio trabalho, mais do que em pensá-lo como produção do figurativo a partir de uma matriz já tão... abstrata: a foto.

Ilustração da ilustração
Hoje conhecemos o trabalho de pintores de uma geração mais jovem que a de Bacon, como Gerald Richter e Luc Tuymans (para citar apenas dois), que também têm com a foto uma relação produtiva. Também eles partem somente da foto para construir a figuração, embora para eles a foto, ressalvadas as particularidades individuais, seja já um emblema, a máscara em relação ao real.
Digamos que todo aquele sentimento de fim de mundo que está em Bacon se encontra também nesses pintores, mas já de modo diferente: tomando a foto como um primeiro, eles falam de um mundo que se acabou, da impossibilidade de fazer a figura a partir dele, na medida em que repor a foto no lugar da observação equivale a reconhecer a impossibilidade de olhá-lo.
Assim, no caso deles, o sentimento de impotência, de ausência perante a vida, estaria já no próprio uso da fotografia.
Bacon, entretanto, parte de outro lugar. A ele, o que interessa, como já se disse aqui, é retirar da foto seu caráter ilustrativo para, deformando-a, arrancar de sua literalidade um real antes insuspeitado.
Em seu livro, Deleuze vai situar esse processo e dar-lhe desdobramentos e abrangência verdadeiramente novos. Não parece, entretanto, muito empenhado em considerar também seus limites.
De minha parte, até onde posso entender e sem nenhuma pretensão a contestações filosóficas, nesse processo residem tanto a grandeza quanto a relativamente marcada limitação de Bacon.
A referida distorção, que nele é momento constitutivo, corre também às vezes o risco de tornar-se ilustração na medida em que traz uma carga retórica maior do que pode suportar. Se uma tal comparação me é permitida, lembrei-me, ao ler suas entrevistas e rever suas pinturas, da fábula do Sol e do vento.
Os dois disputam quanto a saber qual deles conseguiria mais rapidamente arrancar o paletó de um homem que caminhava. O vento soprou forte.
Quanto mais forte soprava, mais o homem se agarrava ao seu paletó. Já o Sol, imóvel, pôs a vibrar toda a sua intensidade e calor, fazendo o homem tirar bem depressa o seu paletó.
Tudo indica que a imagem deformada de Bacon, em seu esforço de descolar-se da ilustração, equivale a esse paletó que o vento procura arrancar: quanto mais se esforça por retirá-la, mais esta se cola ao corpo.
Torna-se assim, se não estiver enganado, algo como a ilustração da vontade de fugir de uma idéia de ilustração.


PAULO PASTA é artista plástico.

ENTREVISTAS COM FRANCIS BACON
Autor: David Silvester
Tradução: Maria Teresa R. Costa
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/ 11/ 3218-1444)
Quanto: R$ 49 (208 págs.)


FRANCIS BACON - LÓGICA DA SENSAÇÃO
Autor: Gilles Deleuze
Tradução: Roberto Machado (coord.)
Editora: Zahar (tel. 0/xx/21/ 2108-0808)
Quanto: R$ 34 (184 págs.)


NA INTERNET - A íntegra deste texto pode ser lida em www.folha.com.br/072481


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