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LIVROS
Armadilhas da distorção
Reunião de entrevistas a
David Silvester e ensaio de
Gilles Deleuze reavivam relação conflituosa de Francis Bacon
com a natureza da imagem
PAULO PASTA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A publicação simultânea de dois livros
sobre Francis Bacon (1909-92), além
de chamar novamente a atenção para o trabalho do pintor irlandês, vai além
da mera coincidência editorial
e revela a singular relação dessas obras. Um dos livros ("Entrevistas com Francis Bacon",
de David Silvester) é, na verdade, uma segunda edição aprimorada, com pequenas e certeiras modificações na tradução; o segundo é "Francis Bacon - Lógica da Sensação", de
Gilles Deleuze.
A leitura deste último deixa
claro que Deleuze, afora sua
observação direta das pinturas
de Bacon, se valeu também do
livro de Silvester, que tomou,
de certa forma, como um parâmetro, desenvolvendo de modo abrangente, assim potencializando, as questões postas
nessas entrevistas -que, a meu
ver, estão entre as mais interessantes e reveladoras já feitas
com um pintor.
É raro que o encontro de um
artista e de um crítico seja tão
feliz quanto foi o de Bacon e
Silvester. As nove entrevistas
que formam o livro desenvolveram-se ao longo de quase 25
anos de conversas e amizade,
sendo a primeira de 1962 e a
nona, e última, de 1984-86.
Acompanhar esse longo curso permite ver que o pintor
mais que aceita seu interlocutor -evolui com ele, no sentido
de que também se move em
reação aos seus movimentos.
Marcações certas e curiosas
dessa interação seriam as várias ocasiões em que o artista
toma como seus argumentos
que, nas entrevistas anteriores,
eram do entrevistador. Não
menos curioso é verificar que
Bacon volta e meia dirige perguntas a Silvester, invertendo a
ordem das coisas -sinal de que
o pintor se sentia livre e de que
também se descobria dialeticamente nesse diálogo.
As questões mais centrais e
recorrentes da pintura de Bacon aparecem já na primeira
entrevista: sua relação conflituosa com a natureza da imagem e os meios de que procura
se valer para expressá-la.
Parece ser de acordo geral
que o que logo chama a atenção, em Bacon, é o seu modo
muito peculiar de tratar a figura, em particular o caráter ao
mesmo tempo grotesco e desconcertante de suas "viandas"
(para usar a tradução de uma
expressão de Deleuze), manifesto no angustiante ""cheiro
de morte" destas, assim como
em sua patente vontade de tocar diretamente "nosso sistema nervoso, e não só de contar
uma história num longo discurso para o nosso cérebro",
como diz Bacon.
Supra-realidade
Tudo indica que esse tratamento carrega o intuito de fazer que essa pintura da matéria,
da carne e do corpo atinja também, simetricamente, o corpo
de quem as vê.
Põe-se aí, então, a questão
dos meios: como fazer isso?
Várias vezes, nas entrevistas,
Bacon emprega a palavra "fato"
para tentar descrever com
maior precisão essa espécie de
imagem que é ao mesmo tempo
autônoma e reconhecível, distante da ilustração -uma imagem "cuja aparência é condicionada o mínimo possível pelos padrões aceitáveis do que é
aparência", nas palavras de David Silvester.
Tal inflexão seria a condição
básica para a imagem tornar-se
um fato: algo como "ir mais longe com a imagem", tensionar a
corda até destruí-la ou à sua
aparência comum.
Transformá-la, enfim, desentranhando-a do real e dotando-a de uma supra-realidade antes insuspeita.
Só assim a imagem ficaria
mais real, só assim o pintor poderia reconhecer-se nela. É essa distorção que Bacon vai chamar de arte, e não de ilustração.
Torna-se claro, então, que o
pintor quer pintar figuras, mas
não o quer fazer figurativamente. Conforme Deleuze, tudo se
passaria como se ele buscasse
"a figura na figuração": a figuração seria, então, a narrativa, a
ilustração, e a figura, o fato, a
deformação do real.
Salvo engano, nessa operação com a imagem se encontra
o núcleo da maior parte das
questões que a pintura de Bacon suscita. Mesmo procurando essa "imagem da imagem",
ele se diz interessado apenas na
aparência, e, quanto mais artificial esta, "mais parecida com a
coisa" se tornaria.
Para entender melhor essas
aporias, convém observar um
pouco o que o próprio pintor
diz dos processos que utiliza.
Um dado sem dúvida relevante nessa direção é o fato de
Bacon sempre usar fotografias
para fazer seus quadros. Ele
gostava muito das fotos de
Muybridge, de suas seqüências
de movimentos com corpos
nus. Apreciava igualmente alguns fotogramas dos filmes de
Eisenstein e reproduções de
um livro de medicina de K.C.
Clark, sobre posições em radiografias. Sempre colecionou fotos de jornais e de seus amigos e
pessoas próximas, preferindo
retratá-los a partir dessas fotos
a fazê-lo a partir do estudo do
natural.
"Noção de aparência"
Sentia-se mais à vontade
com as reproduções fotográficas, na presença delas, por assim dizer, do que diante do
mundo real. Mesmo a famosa
série dos papas gritando veio,
como se sabe, de um conhecido
trabalho de Velázquez, que Bacon conhecia somente por
meio de reproduções, declarando jamais ter sentido vontade de ver o original.
Dizia achar as fotos mais interessantes do que as pinturas.
Argüido a esse respeito, respondeu que a preferência se devia ao impacto que as fotos lhe
causavam, tendo em vista a
proximidade muito grande que
elas teriam com o fato.
A "noção de aparência" seria
o tempo todo assaltada pela fotografia e pelo filme, assalto esse provocado pela violência que
as fotos carregariam. As fotos
eram, assim, para Bacon, um
recurso que repunha como repertório o mundo, substituindo
a observação deste na grande
maioria dos casos.
Sobre isso, porém, ele nunca
quis falar muito. Ao que parece,
nunca esse fator constitutivo
de seu trabalho como pintor figurativo constituiu, para ele,
uma questão.
Conforme se torna claro na
entrevista de número cinco, na
qual mais se demora sobre esses problemas, sua luta principal se travava com a pintura
abstrata. É nessa relação que,
principalmente, ele trata de
conceituar seu próprio trabalho, mais do que em pensá-lo
como produção do figurativo a
partir de uma matriz já tão...
abstrata: a foto.
Ilustração da ilustração
Hoje conhecemos o trabalho
de pintores de uma geração
mais jovem que a de Bacon, como Gerald Richter e Luc Tuymans (para citar apenas dois),
que também têm com a foto
uma relação produtiva. Também eles partem somente da
foto para construir a figuração,
embora para eles a foto, ressalvadas as particularidades individuais, seja já um emblema, a
máscara em relação ao real.
Digamos que todo aquele
sentimento de fim de mundo
que está em Bacon se encontra
também nesses pintores, mas
já de modo diferente: tomando
a foto como um primeiro, eles
falam de um mundo que se acabou, da impossibilidade de fazer a figura a partir dele, na medida em que repor a foto no lugar da observação equivale a reconhecer a impossibilidade de
olhá-lo.
Assim, no caso deles, o sentimento de impotência, de ausência perante a vida, estaria já
no próprio uso da fotografia.
Bacon, entretanto, parte de
outro lugar. A ele, o que interessa, como já se disse aqui, é retirar da foto seu caráter ilustrativo para, deformando-a, arrancar de sua literalidade um real
antes insuspeitado.
Em seu livro, Deleuze vai situar esse processo e dar-lhe
desdobramentos e abrangência
verdadeiramente novos. Não
parece, entretanto, muito empenhado em considerar também seus limites.
De minha parte, até onde
posso entender e sem nenhuma pretensão a contestações filosóficas, nesse processo residem tanto a grandeza quanto a
relativamente marcada limitação de Bacon.
A referida distorção, que nele
é momento constitutivo, corre
também às vezes o risco de tornar-se ilustração na medida em
que traz uma carga retórica
maior do que pode suportar. Se
uma tal comparação me é permitida, lembrei-me, ao ler suas
entrevistas e rever suas pinturas, da fábula do Sol e do vento.
Os dois disputam quanto a
saber qual deles conseguiria
mais rapidamente arrancar o
paletó de um homem que caminhava. O vento soprou forte.
Quanto mais forte soprava,
mais o homem se agarrava ao
seu paletó. Já o Sol, imóvel, pôs
a vibrar toda a sua intensidade
e calor, fazendo o homem tirar
bem depressa o seu paletó.
Tudo indica que a imagem
deformada de Bacon, em seu
esforço de descolar-se da ilustração, equivale a esse paletó
que o vento procura arrancar:
quanto mais se esforça por retirá-la, mais esta se cola ao corpo.
Torna-se assim, se não estiver
enganado, algo como a ilustração da vontade de fugir de uma
idéia de ilustração.
PAULO PASTA é artista plástico.
ENTREVISTAS COM FRANCIS BACON
Autor: David Silvester
Tradução: Maria Teresa R. Costa
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/ 11/
3218-1444)
Quanto: R$ 49 (208 págs.)
FRANCIS BACON - LÓGICA DA SENSAÇÃO
Autor: Gilles Deleuze
Tradução: Roberto Machado (coord.)
Editora: Zahar (tel. 0/xx/21/ 2108-0808)
Quanto: R$ 34 (184 págs.)
NA INTERNET - A íntegra deste texto pode ser lida em www.folha.com.br/072481
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