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Sociedade
UMA MEGERA REDIMIDA
A feminista Germaine Greer reabilita o papel que Ann Hathaway teve na vida de seu marido, William Shakespeare
MIN WILD
O que temos em
"Shakespeare's
Wife" [A Mulher
de Shakespeare,
Bloomsbury, 406
págs., 20, R$ 79], de Germaine
Greer? Biografia? História social? Por um breve e assustador
momento, a impressão é de que
se trata de um romance, como
sugere a imagem da capa, que
mostra o corpo de uma mulher
vestindo roupas da Era Tudor
[dinastia inglesa dos séculos 15
e 16] e ostentando mãos cuidadosamente tratadas.
Os elogios que enfeitam a capa são enganosos, como o prova a afirmação, desastrosamente imprecisa, de que esse livro é
diferente porque, nas discussões anteriores do casamento
de Shakespeare [1564-1616],
"os historiadores sociais evitaram se envolver no campo dos
estudos shakespearianos, e os
especialistas em Shakespeare
optaram por não tratar de
questões de história social".
A ampla bibliografia oferecida por Greer oferece muitos
exemplos em contrário.
Virtualmente nada se sabe
sobre Ann Hathaway, que se
tornou Ann Shakespeare em
novembro de 1582. Na verdade,
pouco se sabe sobre o próprio
William Shakespeare.
Greer está consciente dos
perigos. Seu alvo são os "bardólatras", especialmente Stephen
Greenblatt, com o recente
"Will in the World" [trocadilho
entre "vontade" e o apelido para William -Will no Mundo],
mas abarcando todos os demais estudiosos que retrataram Ann como uma camponesa manipuladora e analfabeta
que usou de artimanhas para
forçar o jovem e inocente Will
-oito anos mais novo que ela-
a um casamento sem amor e
posteriormente se tornou fonte de perpétuos embaraços para o marido.
Dada a falta de provas diretas
quanto à personalidade de
Ann, como se pode realizar a
tarefa de alterar a percepção
sobre ela? Um texto polêmico,
pesado e persuasivo talvez funcione, e boa parte do livro é um
exercício de retórica, termo
que não emprego aqui pejorativamente, mas como Shakespeare o compreenderia: escrever para convencer.
Mas as diferenças entre os
argumentos de Greer e os dos
estudiosos que ela denuncia
como bardólatras podem facilmente perder a substância.
Essa tendência é exemplificada quando Greer argumenta
que Ann talvez não fosse necessariamente analfabeta: William poderia tê-la ensinado a
ler. Afinal, aponta, "dada a ausência de qualquer prova absoluta em contrário", Ann poderia até ser cega.
Discreta e alfabetizada
A falha que Greer identifica
no trabalho de outros estudiosos (o fato de que "presumem
aquilo que precisa ser provado") não deixa de estar presente em seu livro. Uma das suposições audaciosas da escritora é
a de que "Ann, pelo menos, foi
fiel aos votos matrimoniais".
Quanto a isso o terreno talvez possa ser considerado mais
firme, pois alega posteriormente que "traço algum de escândalo" surgiu envolvendo o nome
de Ann, "o que, dados os indícios oferecidos pelos registros
sobreviventes do tribunal matrimonial, é por si só notável".
Mas isso não representaria
simplesmente uma prova por
ausência de prova? Como enquadraríamos, nesse caso, os
vícios secretos?
A questão central seria determinar se a prova negativa pode
ser transformada em positiva.
Pode, e Greer realiza a tarefa
de maneira triunfante.
Todos os leitores deste livro
saem vencedores porque recebemos, por meio de um trabalho bem documentado e fundamentado de recuperação histórica, um quadro vívido e cuidadoso da existência precária,
turbulenta e laboriosa de mulheres como Ann Shakespeare
e das disputas cívicas, tumultos, pragas e incêndios da Stratford em que ela passou sua vida.
Greer criou, dessa maneira,
uma espécie de estrutura probabilística, construída por referência a arquivos locais, especialmente o arquivo do Shakespeare Birthplace Trust e muitas outras fontes: cartas da época, peças, contos, baladas e trabalhos históricos secundários.
Além disso, seu exame dos
poemas e peças de Shakespeare
que são relevantes para a história que narra é tanto aguçado
quanto espirituoso e não recorre a paralelos estúpidos entre
vida e obra.
A Ann de Greer é paciente,
astuta, alfabetizada, capaz, discreta, sensata e não só mantém
o lar e a família de Shakespeare
como é de fato uma verdadeira
cônjuge para ele e, ocasionalmente, merecedora de seu
amor irrestrito.
De fato, é perfeitamente admissível perguntar: por que ele
não poderia tê-la amado e cortejado? "Até que ponto é difícil
acreditar que Shakespeare, aos
18 anos, estivesse tão enamorado de uma mulher de 26 que
decidiu seduzi-la e por fim a
conquistou?"
Mulher de negócios
Se a empreitada a que Greer
se propôs é perigosa, devemos
também reconhecer que é admirável, ao eliminar camadas
acumuladas de fofocas antiquadas, muitas vezes misóginas.
Há uma dose forte de provocação: Shakespeare talvez tivesse sífilis; Ann, uma mulher
de negócios bem-sucedida em
Stratford, talvez tenha financiado a fundamental edição
"First Folio", após a morte do
marido; ou, o que pode ser mais
difícil de engolir, depois do casamento Shakespeare pode ter
passado um período em casa fazendo trabalhos manuais.
Ann, pelo menos neste livro,
é uma mulher diferente -e, de
fato, muito mais plausível- do
que a "Ann Hathaway" que nos
acostumamos a ver como uma
velha harpia malvestida que seduziu o adorável Will e o impediu de se divertir em uma praia
galesa com Gwyneth Paltrow.
A íntegra deste texto saiu no "Independent".
Tradução de Paulo Migliacci.
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