São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2007

Texto Anterior | Índice

Sociedade

UMA MEGERA REDIMIDA

A feminista Germaine Greer reabilita o papel que Ann Hathaway teve na vida de seu marido, William Shakespeare

MIN WILD

O que temos em "Shakespeare's Wife" [A Mulher de Shakespeare, Bloomsbury, 406 págs., 20, R$ 79], de Germaine Greer? Biografia? História social? Por um breve e assustador momento, a impressão é de que se trata de um romance, como sugere a imagem da capa, que mostra o corpo de uma mulher vestindo roupas da Era Tudor [dinastia inglesa dos séculos 15 e 16] e ostentando mãos cuidadosamente tratadas.
Os elogios que enfeitam a capa são enganosos, como o prova a afirmação, desastrosamente imprecisa, de que esse livro é diferente porque, nas discussões anteriores do casamento de Shakespeare [1564-1616], "os historiadores sociais evitaram se envolver no campo dos estudos shakespearianos, e os especialistas em Shakespeare optaram por não tratar de questões de história social".
A ampla bibliografia oferecida por Greer oferece muitos exemplos em contrário. Virtualmente nada se sabe sobre Ann Hathaway, que se tornou Ann Shakespeare em novembro de 1582. Na verdade, pouco se sabe sobre o próprio William Shakespeare.
Greer está consciente dos perigos. Seu alvo são os "bardólatras", especialmente Stephen Greenblatt, com o recente "Will in the World" [trocadilho entre "vontade" e o apelido para William -Will no Mundo], mas abarcando todos os demais estudiosos que retrataram Ann como uma camponesa manipuladora e analfabeta que usou de artimanhas para forçar o jovem e inocente Will -oito anos mais novo que ela- a um casamento sem amor e posteriormente se tornou fonte de perpétuos embaraços para o marido.
Dada a falta de provas diretas quanto à personalidade de Ann, como se pode realizar a tarefa de alterar a percepção sobre ela? Um texto polêmico, pesado e persuasivo talvez funcione, e boa parte do livro é um exercício de retórica, termo que não emprego aqui pejorativamente, mas como Shakespeare o compreenderia: escrever para convencer.
Mas as diferenças entre os argumentos de Greer e os dos estudiosos que ela denuncia como bardólatras podem facilmente perder a substância. Essa tendência é exemplificada quando Greer argumenta que Ann talvez não fosse necessariamente analfabeta: William poderia tê-la ensinado a ler. Afinal, aponta, "dada a ausência de qualquer prova absoluta em contrário", Ann poderia até ser cega.

Discreta e alfabetizada
A falha que Greer identifica no trabalho de outros estudiosos (o fato de que "presumem aquilo que precisa ser provado") não deixa de estar presente em seu livro. Uma das suposições audaciosas da escritora é a de que "Ann, pelo menos, foi fiel aos votos matrimoniais".
Quanto a isso o terreno talvez possa ser considerado mais firme, pois alega posteriormente que "traço algum de escândalo" surgiu envolvendo o nome de Ann, "o que, dados os indícios oferecidos pelos registros sobreviventes do tribunal matrimonial, é por si só notável".
Mas isso não representaria simplesmente uma prova por ausência de prova? Como enquadraríamos, nesse caso, os vícios secretos?
A questão central seria determinar se a prova negativa pode ser transformada em positiva. Pode, e Greer realiza a tarefa de maneira triunfante.
Todos os leitores deste livro saem vencedores porque recebemos, por meio de um trabalho bem documentado e fundamentado de recuperação histórica, um quadro vívido e cuidadoso da existência precária, turbulenta e laboriosa de mulheres como Ann Shakespeare e das disputas cívicas, tumultos, pragas e incêndios da Stratford em que ela passou sua vida.
Greer criou, dessa maneira, uma espécie de estrutura probabilística, construída por referência a arquivos locais, especialmente o arquivo do Shakespeare Birthplace Trust e muitas outras fontes: cartas da época, peças, contos, baladas e trabalhos históricos secundários.
Além disso, seu exame dos poemas e peças de Shakespeare que são relevantes para a história que narra é tanto aguçado quanto espirituoso e não recorre a paralelos estúpidos entre vida e obra.
A Ann de Greer é paciente, astuta, alfabetizada, capaz, discreta, sensata e não só mantém o lar e a família de Shakespeare como é de fato uma verdadeira cônjuge para ele e, ocasionalmente, merecedora de seu amor irrestrito.
De fato, é perfeitamente admissível perguntar: por que ele não poderia tê-la amado e cortejado? "Até que ponto é difícil acreditar que Shakespeare, aos 18 anos, estivesse tão enamorado de uma mulher de 26 que decidiu seduzi-la e por fim a conquistou?"

Mulher de negócios
Se a empreitada a que Greer se propôs é perigosa, devemos também reconhecer que é admirável, ao eliminar camadas acumuladas de fofocas antiquadas, muitas vezes misóginas.
Há uma dose forte de provocação: Shakespeare talvez tivesse sífilis; Ann, uma mulher de negócios bem-sucedida em Stratford, talvez tenha financiado a fundamental edição "First Folio", após a morte do marido; ou, o que pode ser mais difícil de engolir, depois do casamento Shakespeare pode ter passado um período em casa fazendo trabalhos manuais.
Ann, pelo menos neste livro, é uma mulher diferente -e, de fato, muito mais plausível- do que a "Ann Hathaway" que nos acostumamos a ver como uma velha harpia malvestida que seduziu o adorável Will e o impediu de se divertir em uma praia galesa com Gwyneth Paltrow.


A íntegra deste texto saiu no "Independent".
Tradução de Paulo Migliacci.

ONDE ENCOMENDAR - Livros em inglês podem ser encomendados em www.amazon.com


Texto Anterior: + Sociedade: A filha do estrangeiro
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.