São Paulo, domingo, 09 de outubro de 2005

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O trabalho da reconciliação

Obra reúne ensaios variados e desiguais do filósofo norte-americano Richard Rorty sobre política

IVAN DOMINGUES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Acaba de ser lançada no Brasil uma coletânea de artigos
de Richard Rorty com o título de "Pragmatismo e Política", em sua origem artigos dispersos publicados há cerca de dez anos em diferentes veículos de língua inglesa, dentro e fora dos Estados Unidos.
A edição brasileira tem um prefácio especialmente elaborado por Rorty, o qual dá uma idéia de sua intenção ao se ocupar dos assuntos
tratados, em sua totalidade estudos de circunstância e algo heterogê neos, deixando o leitor em dúvida quanto à unidade da obra sugerida pelo título Äpragmatismo, com certeza; política, não tanto.
Por seu turno, a tradução é de Pau lo Ghiraldelli Jr., especialista em pragmatismo e íntimo da obra de Rorty, evidenciado na introdução, em que o leitor encontrará preciosa ajuda ao abrir o livro.


Num dos ensaios, Rorty analisa a agenda da filosofia no futuro, levando em conta o fim da filosofia analítica e os três perigos que rondam a atividade intelectual em nosso tempo: o escolasticismo, o vanguardismo e o chauvinismo


Feita a apresentação da "ficha téc nica" da obra, passarei na seqüência a examinar-lhe os capítulos. Trata- se de um total de cinco estudos agru pados como segue, sem qualquer enumeração a denunciar precedên cia ou ordenação: "Trótski e as Or quídeas Selvagens"; "O Fim do Leni nismo, Havel e a Esperança Social"; "Racionalidade e Diferença Cultural em uma Perspectiva Pragmatista"; "Justiça como Lealdade Ampliada"; "A Filosofia e o Futuro".
A supor que o livro tenha unidade e que esta esteja no tema pragmatis mo e política, coisa com a qual Rorty parece estar de acordo, a julgar pelo prefácio, uma boa perspectiva para o resenhista focalizar a obra em toda sua extensão bem poderia ser o tema da esquerda: afinal, num espaço de três páginas o vocábulo aparece qua tro vezes (!), associado aos nomes de Mill e Dewey, assim como aos EUA e ao Brasil.
Todavia, considerando que já exa minei este ponto em outra ocasião, há cinco anos, numa resenha para esta Folha do livro editado pela DP&A com o concurso do mesmo Paulo Ghiraldelli Jr., que fez a tradu ção, elaborou a introdução e deu-lhe o título ("Para Realizar a América -O Pensamento de Esquerda no Século 20 na América"), deixarei este aspec to de lado. Direi tão-somente, reite rando o que já fizera, que o vocábulo esquerda não tem o mesmo signifi cado nas duas Américas: no Brasil associado à tradição marxista, aos comunistas e à esquerda radical, in clusive católica, nos Estados Unidos aberto ao liberalismo político, a seg mentos dos democratas e à social- democracia, em cuja nebulosa va mos achar Rorty.
Passando aos capítulos, ou antes ensaios, conforme Rorty, o leitor muito apreciará o primeiro, intitula do "Trótski e as Orquídeas Selva gens" Äum ensaio autobiográfico em torno da formação trotskista do filósofo, da decepção para com Pla tão, dos laços com Dewey, a quem seu pai era ligado, da paixão pelas orquídeas selvagens encontradas ao norte de Nova York e do projeto de reconciliar Trótski com aquelas flo res, sem saber ao certo até onde isso o levava.

Ensaio datado
No segundo estudo, "O Fim do Le ninismo, Havel e a Questão da Espe rança" Äde todos o que menos aprecioÄ, o leitor descobrirá alguns dilemas da esquerda nos idos dos anos 80. E mais: um estudo cujo títu lo em inglês não traz o nome do líder tcheco Havel, nem sequer o comple mento (o título preciso é "The End of Leninism and History as Comic Frame") e cujo conteúdo está histo ricamente desatualizado, depois que se descobriu recentemente a verda deira face de Kojève, com a ajuda do serviço de inteligência francês, evi denciando que o brilhante intelec tual russo que marcou os meios aca dêmicos parisienses em realidade era um agente da KGB.
Some-se "Racionalidade e Dife rença Cultural em uma Perspectiva Pragmatista", onde o autor não con segue grandes coisas ao contrapor três acepções de racionalidade e três acepções de cultura, em busca de uma perspectiva pragmatista inova dora na abordagem de fenômenos culturais.
Por fim, nos ensaios "Justiça como Lealdade Ampliada" e "A Filosofia e o Futuro" encontraremos no pri meiro um belo exemplo da estraté gia pragmatista de superar as falsas dicotomias ao trabalhar o exemplo da oposição justiça e lealdade (supe rada pela mitigação da justiça em lealdade: a justiça é a lealdade am pliada); no segundo, uma instigante análise da agenda da filosofia no fu turo, levando em conta o fim da filo sofia analítica (em que Rorty vê uma espécie de neo-escolástica) e os três perigos que rondam a atividade inte lectual em nosso tempo: o escolasti cismo, o vanguardismo e o chauvi nismo.
Por fim, a qualidade da tradução é muito boa, embora padeça de alguns pecados: há problemas de anglicis mo ao longo de todo o livro (como por exemplo fundacionalismo, representacionalismo e pan-opticis mo, que em bom português deve riam dar lugar a fundacionismo, re presentacionismo e panoptismo), problemas com vocábulos em por tuguês (como "aurática", que não é vernacular, e o leitor fica no ar quan to à sua significação) e outros, relati vamente aos quais não disponho de espaço para comentar aqui. Enten do, todavia, que são de pequena monta, não chegando a comprome ter a compreensão do livro, com o qual o leitor brasileiro terá o que aprender.

Ivan Domingues é professor titular de filo sofia da UFMG e autor de "O Fio e a Trama: Reflexões sobre o Tempo e a História" (Ilu minuras / Ed. da UFMG) e "Epistemologia das Ciências Humanas Tomo 1 - Positivismo e Hermenêutica: Durkheim e Weber" (Loyola), entre outros livros.

Pragmatismo e Política
134 págs., R$ 29,50 de Richard Rorty. Tradução de Paulo Ghiraldelli Jr. Ed. Martins (r. Conselheiro Ramalho, 330, CEP 01325-000, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/ 3241-3677).



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