São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997.



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A chave dos cofres britânicos


O historiador argentino Leon Pomer explica sua tese sobre a atuação da Grã-Bretanha na guerra


LEON POMER
especial para a Folha

Quase 30 anos depois da primeira edição do meu livro "Guerra del Paraguay", aqui vão minhas idéias atuais sobre dois temas que considero cruciais.
Meu livro foi escrito desde uma perspectiva concreta: a Guerra do Paraguai, a formação do Estado argentino e o desempenho de um determinado grupo econômico.
Na década de 60 do século passado, o problema da formação do Estado na Argentina foi colocado friamente. A integração do sistema capitalista internacional o exigia, e a potência dominante no sistema -a Grã-Bretanha- o desejava.
O presidente Bartolomé Mitre (presidente fraco de um Estado apenas projetado) teve que enfrentar oposições internas e potenciais inimigos externos em fronteiras cujo traçado não era definitivo.
O principal rival interno era o poderoso caudilho da província de Entre Ríos, Justo José de Urquiza; eram considerados perigosos inimigos externos o governo uruguaio do Partido Blanco e o regime autocrático paraguaio, governado por Francisco Solano López.
A idéia de um Estado (ainda não nacional) como lugar de concentração do poder político máximo e monopolizador dos maiores recursos econômicos (a alfândega de Buenos Aires) encontrava resistência por parte dos caudilhos regionais e carecia de significado para a maioria da população.
Mitre e seus amigos políticos traçaram um esquema estratégico que comportava os seguintes passos:
1. Substituição do governo uruguaio (do Partido Blanco) pelo general Venancio Flores (do Partido Colorado), residente em Buenos Aires, afinado com o "mitrismo" e que receberia o apoio militar consequente;
2. Pressão (bem-sucedida) sobre o governo brasileiro para que colaborasse com o trabalho do general Flores e posterior ação comum contra o Paraguai de Solano López.
Os "mitristas" achavam que, quando fosse realizado o exposto nos dois pontos anteriores, seus inimigos internos ficariam privados de eventuais santuários nos vizinhos Uruguai e Paraguai, e uma guerra externa, com seu apelo ao patriotismo, unificaria o que se encontrava quase desagregado.
O esquema assinalado foi posto em ação, mas surgiram alguns imprevistos: a guerra se prolongou por cinco anos e, ao mesmo tempo, se transformou numa guerra civil argentina, que acabou sendo mais dolorosa do que o próprio conflito com o Paraguai.
O governo que lutava pela constituição e consolidação do Estado na Argentina, e particularmente a figura de seu presidente, foram fatores coadjuvantes decisivos para o desencadeamento do conflito. As divergências ideológicas com a ditadura paraguaia, os problemas de fronteira, as ambições de reconstrução do Vice-Reinado do Prata etc. formaram um contexto suficiente para deslanchar um conflito bélico.
A história das relações paraguaio-brasileiras (problemas de fronteira, livre navegação do rio Paraguai até o Mato Grosso etc.) forneciam motivo suficiente para a entrada do Brasil no conflito. A diplomacia "mitrista" mostrou eficácia nas pressões que exerceu sobre o gabinete imperial brasileiro.
Meu livro de 1968, e outros posteriores, fundamentaram o que eu já disse até agora no tocante à guerra da Tríplice Aliança. Mas devo admitir que naquele livro provavelmente não demonstrei a necessária equanimidade ao expressar meus pontos de vista.
A Grã-Bretanha
A guerra não foi promovida pelo governo inglês, e eu, pessoalmente, não tenho provas de que os estadistas britânicos a tenham desejado (fora do âmbito de seus sentimentos pessoais) como parte de uma política no Prata.
É evidente que a política econômica paraguaia (monopólios estatais da produção e comercialização, propriedade estatal da terra e das principais estruturas produtivas, restrições ao fluxo comercial e à fixação do capital estrangeiro) não agradava a todos, e muito menos àqueles que, na Europa (principalmente na Grã-Bretanha) e no Prata, professavam o ideário liberal.
A guerra exigia recursos financeiros, e a grande burguesia mercantil do Prata (radicada sobretudo em Buenos Aires e na província do mesmo nome) estava muito longe de mostrar generosidade patriótica para com o governo de Mitre, cujos recursos próprios eram insignificantes, já que os recursos obtidos pela alfândega -os maiores, em volume- pertenciam ao governo da província de Buenos Aires.
A única solução possível foi recorrer a empréstimos externos, que, tanto para o governo de Mitre quanto para o imperador, foram concedidos pelos bancos britânicos.
Se esses empréstimos não tivessem sido concedidos, teria sido possível prolongar a guerra por mais de cinco anos? Ou será que ela teria se arrastado indefinidamente? Não existem respostas a essas perguntas. A única possível é que as coisas teriam sido diferentes.
Os empréstimos dos bancos britânicos devem ter contado com a concordância do gabinete britânico. A Inglaterra não podia correr o risco de uma vitória paraguaia ou de um simples empate. Se o Paraguai não significava muito para o governo ou a economia inglesa, a eventual difusão de seu "modelo" era um risco ao qual os estadistas de Londres não podiam se mostrar indiferentes.
A sucursal do Banco de Londres em Buenos Aires adiantava dinheiro diariamente ao Tesouro do governo de Mitre; a devolução desses fundos, acrescidos de juros, se daria no vencimento do primeiro empréstimo. Os proprietários ingleses do banco não pareciam ter dúvidas quanto ao que faziam.
O ministro britânico em Buenos Aires, Edward Thornton, participava de reuniões do gabinete de Mitre.
A participação argentina na Guerra do Paraguai foi um episódio da maior importância no processo de formação do Estado Nacional. A Grã-Bretanha contribuiu para o andamento do processo; seus interesses o exigiam, assim como os fundamentos ideológicos de sua política externa.

Nota: Todas as afirmações que faço acima estão documentadas em meus livros.


Leon Pomer é doutor em história e ex-professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e Universidade de Buenos Aires. É autor de "Guerra del Paraguay - Gran Negócio!" (Buenos Aires, Caidén), "Cinco Años de Guerra Civil en la Argentina" (Buenos Aires, Amorrortu), entre outros.
Tradução de Clara Allain.



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