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OUTSI DERS
NOS EUA DO SÉCULO 17, CONVIVÊNCIA ENTRE BRANCOS POBRES EMIGRADOS DA INGLATERRA E NEGROS ESCRAVIZADOS ERA CORDIAL
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MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA
Posso lhe perguntar algo, doutor?", indaga a
velhinha, estendida
em uma cama de hospital após ter sido
atendida por seu interlocutor
negro. "Claro, minha senhora",
aquiesce o médico. Ao que a anciã dispara: "Vocês, negros, têm
alma?".
Há tempos ouvi esse impagável diálogo em uma série de TV
muito popular nos EUA. Óbvio,
tratava-se de crítica dirigida a
um tipo de gente comum, em
vários sentidos. Ocorre que
abelhudos assim nem sempre
foram corriqueiros entre os
norte-americanos, em especial
no século 17, quando as relações entre brancos e negros
eram flexíveis como nunca.
O tabaco dominava os campos da Virgínia e Maryland
-fumar, um atributo da elite,
se alastrava rapidamente entre
os ingleses menos aquinhoados, potencializando a demanda metropolitana.
Brancos explorados
Os negros escravizados não
eram majoritários entre os trabalhadores das Treze Colônias,
papel desempenhado por jovens ingleses que sem cessar
desembarcavam na América e
garantiam a prosperidade da
colônia.
Eram preferidos aos caros
africanos porque provinham da
massa de miseráveis que superpovoavam as cidades inglesas,
onde o crescimento demográfico e o êxodo rural acentuavam
o desemprego e o subemprego,
com forte pressão pela quedados salários. Não demorou para
que a vagabundagem e o banditismo potencializassem o temor aristocrático pelas "classes
perigosas", sobretudo quando
vertentes radicais do protestantismo organizavam a sua fala. A migração para as Treze
Colônias logo se converteu em
solução a um só tempo mercantilista e política.
Em troca da passagem, os pobres ingleses chegavam à América presos a contratos de até
sete anos com os plantadores.
Interação
Trabalho e castigos povoavam seus dias e o desamparo
podia fazê-los passar de mão
em mão, às vezes como herdades. Apenas metade sobrevivia
até o fim dos contratos, quando
eles se tornavam assalariados
-alguns viraram proprietários.
Eles interagiam com os escravos negros, com quem não
raro trabalhavam, dividindo as
mesmas cabanas e angústias,
recebendo os mesmos castigos,
desfrutando dos mesmos divertimentos.
Às vezes fugiam juntos.
Os africanos escravizados da
Virgínia e de Maryland conquistavam a alforria em freqüências nunca mais vistas.
Muitos constituíam pecúlio
vendendo o que plantavam em
suas roças, e condados havia
onde um terço dos negros eram
livres. Alguns enriqueciam, como um certo Anthony Johnson, que chegara da África como cativo em 1621 e morreu dono de 250 acres de terras e senhor de escravos.
Negros como ele competiam
por mulheres com os brancos,
embora o casal inter-racial típico fosse constituído por homem branco e mulher negra.
Havia casos de brancas casadas
com escravos.
Em fins do século 17, a queda
da natalidade na Inglaterra se
incumbiu de tornar mais caros
os servos brancos, diminuindo
a competição por trabalho e aumentando o nível geral dos salários. A reconstrução de Londres, praticamente destruída
pelo grande incêndio de 1666,
acentuou a procura por mão-de-obra na metrópole.
Reversão
A América tornava-se cada
vez menos atrativa. Resultado:
se em 1670 os servos brancos
suplantavam os escravos numa
proporção de 4 por 1, 20 anos
depois eram estes que superavam os brancos na mesma proporção.
Sobretudo depois de 1730,
desenhou-se o singular perfil
demográfico das áreas de colonização mais antigas, onde a
população escrava obtinha saldos positivos entre natalidade e
mortalidade. Para tanto, muito
deve ter contribuído o paulatino fechamento das possibilidades de manumissão, acentuado
no século 17 e corriqueiro no
século 19.
Aos poucos o medo da africanização levou os plantadores da
Virgínia e de Maryland a taxar
pesadamente o tráfico de africanos e a limitar a interação entre brancos e negros. Leis como
a de 1691 obrigavam os senhores que alforriavam a pagar as
passagens dos manumissos para fora da Virgínia.
No mesmo ano, decretou-se
que seriam banidos do Estado
os brancos que se casassem
com negros, mulatos ou índios.
Por alguns anos aceitou-se que
mulheres brancas que tivessem
filhos com cativos virassem escravas por cinco anos e, seus rebentos, por 30.
Tudo tramava para exacerbar a tendência da escravidão
norte-americana de elidir a natureza humana do cativo, em
meio, é claro, às ambigüidades
que em toda parte marcavam a
condição escrava.
Mundo assimétrico
Medidas assim acabaram por
ajustar na mente protestante o
cativeiro e a unidade fundamental do gênero humano
-por meio, reitere-se, da expulsão do negro da esfera da
cultura e a conseqüente instauração de sua inferioridade natural. Eis o fundamento de um
mundo assimétrico e ausente
de redenção, polarizado entre
brancos e negros.
Semelhante bipartição ressurge enviesadamente quando
se considera negro o notório
mestiço Barack Obama. Entende-se que isso ocorra nos EUA,
enquanto expressão da herança classificatória escravista que
ainda condena à invisibilidade
mulatos como ele.
Mas não entre nós, secularmente treinados a reconhecer
misturados de toda sorte -do
caboclo Floriano Peixoto a mulatos claros como Rodrigues Alves e Roberto Marinho, por
exemplo.
Barack Obama não é, definitivamente, o primeiro presidente negro dos EUA. É mestiço e tem alma.
MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
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