São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OUTSI DERS


NOS EUA DO SÉCULO 17, CONVIVÊNCIA ENTRE BRANCOS POBRES EMIGRADOS DA INGLATERRA E NEGROS ESCRAVIZADOS ERA CORDIAL

MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

Posso lhe perguntar algo, doutor?", indaga a velhinha, estendida em uma cama de hospital após ter sido atendida por seu interlocutor negro. "Claro, minha senhora", aquiesce o médico. Ao que a anciã dispara: "Vocês, negros, têm alma?".
Há tempos ouvi esse impagável diálogo em uma série de TV muito popular nos EUA. Óbvio, tratava-se de crítica dirigida a um tipo de gente comum, em vários sentidos. Ocorre que abelhudos assim nem sempre foram corriqueiros entre os norte-americanos, em especial no século 17, quando as relações entre brancos e negros eram flexíveis como nunca.
O tabaco dominava os campos da Virgínia e Maryland -fumar, um atributo da elite, se alastrava rapidamente entre os ingleses menos aquinhoados, potencializando a demanda metropolitana.

Brancos explorados
Os negros escravizados não eram majoritários entre os trabalhadores das Treze Colônias, papel desempenhado por jovens ingleses que sem cessar desembarcavam na América e garantiam a prosperidade da colônia.
Eram preferidos aos caros africanos porque provinham da massa de miseráveis que superpovoavam as cidades inglesas, onde o crescimento demográfico e o êxodo rural acentuavam o desemprego e o subemprego, com forte pressão pela quedados salários. Não demorou para que a vagabundagem e o banditismo potencializassem o temor aristocrático pelas "classes perigosas", sobretudo quando vertentes radicais do protestantismo organizavam a sua fala. A migração para as Treze Colônias logo se converteu em solução a um só tempo mercantilista e política. Em troca da passagem, os pobres ingleses chegavam à América presos a contratos de até sete anos com os plantadores.

Interação
Trabalho e castigos povoavam seus dias e o desamparo podia fazê-los passar de mão em mão, às vezes como herdades. Apenas metade sobrevivia até o fim dos contratos, quando eles se tornavam assalariados -alguns viraram proprietários.
Eles interagiam com os escravos negros, com quem não raro trabalhavam, dividindo as mesmas cabanas e angústias, recebendo os mesmos castigos, desfrutando dos mesmos divertimentos.
Às vezes fugiam juntos.
Os africanos escravizados da Virgínia e de Maryland conquistavam a alforria em freqüências nunca mais vistas. Muitos constituíam pecúlio vendendo o que plantavam em suas roças, e condados havia onde um terço dos negros eram livres. Alguns enriqueciam, como um certo Anthony Johnson, que chegara da África como cativo em 1621 e morreu dono de 250 acres de terras e senhor de escravos.
Negros como ele competiam por mulheres com os brancos, embora o casal inter-racial típico fosse constituído por homem branco e mulher negra. Havia casos de brancas casadas com escravos.
Em fins do século 17, a queda da natalidade na Inglaterra se incumbiu de tornar mais caros os servos brancos, diminuindo a competição por trabalho e aumentando o nível geral dos salários. A reconstrução de Londres, praticamente destruída pelo grande incêndio de 1666, acentuou a procura por mão-de-obra na metrópole.

Reversão
A América tornava-se cada vez menos atrativa. Resultado: se em 1670 os servos brancos suplantavam os escravos numa proporção de 4 por 1, 20 anos depois eram estes que superavam os brancos na mesma proporção.
Sobretudo depois de 1730, desenhou-se o singular perfil demográfico das áreas de colonização mais antigas, onde a população escrava obtinha saldos positivos entre natalidade e mortalidade. Para tanto, muito deve ter contribuído o paulatino fechamento das possibilidades de manumissão, acentuado no século 17 e corriqueiro no século 19.
Aos poucos o medo da africanização levou os plantadores da Virgínia e de Maryland a taxar pesadamente o tráfico de africanos e a limitar a interação entre brancos e negros. Leis como a de 1691 obrigavam os senhores que alforriavam a pagar as passagens dos manumissos para fora da Virgínia.
No mesmo ano, decretou-se que seriam banidos do Estado os brancos que se casassem com negros, mulatos ou índios.
Por alguns anos aceitou-se que mulheres brancas que tivessem filhos com cativos virassem escravas por cinco anos e, seus rebentos, por 30. Tudo tramava para exacerbar a tendência da escravidão norte-americana de elidir a natureza humana do cativo, em meio, é claro, às ambigüidades que em toda parte marcavam a condição escrava.

Mundo assimétrico
Medidas assim acabaram por ajustar na mente protestante o cativeiro e a unidade fundamental do gênero humano -por meio, reitere-se, da expulsão do negro da esfera da cultura e a conseqüente instauração de sua inferioridade natural. Eis o fundamento de um mundo assimétrico e ausente de redenção, polarizado entre brancos e negros.
Semelhante bipartição ressurge enviesadamente quando se considera negro o notório mestiço Barack Obama. Entende-se que isso ocorra nos EUA, enquanto expressão da herança classificatória escravista que ainda condena à invisibilidade mulatos como ele.
Mas não entre nós, secularmente treinados a reconhecer misturados de toda sorte -do caboclo Floriano Peixoto a mulatos claros como Rodrigues Alves e Roberto Marinho, por exemplo.
Barack Obama não é, definitivamente, o primeiro presidente negro dos EUA. É mestiço e tem alma.

MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.



Texto Anterior: Nação furta-cor
Próximo Texto: Carteira vazia
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.