São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2008

Texto Anterior | Índice

+cultura

O colecionador


LIVROS SOBRE ACÚMULO DE SELOS, RÓTULOS OU LIVROS DESVENDAM A PSICOLOGIA DO SER HUMANO, DO IMPULSO DE ORGANIZAÇÃO À FOME DE PODER

O ato de colecionar mais racional é aquele que é feito pelo amante de livros; é estranhamente difícil descartar livros


JOHN SUTHERLAND

O autor de "Collections of Nothing" (Coleções de Nada, University of Chicago, 164 págs., US$ 20, R$ 42), William Davies King, é professor da Universidade da Califórnia, em Santa Barbara (a poucos quilômetros de distância de um exótico colecionador de animais exóticos, Michael Jackson).
O livro de King começa em tom carrancudo: "Num dia quente de verão de 1998, estacionei diante da casa da qual eu ainda era dono, em conjunto com a mulher que em pouco tempo se tornaria minha ex-mulher. (...) Lá estava eu, com 43 anos, usando shorts e uma camiseta velha já pesada de suor. (...) A picape [de mudança] Ryder atrás de mim, ainda ligada e chiando".
Ele retornara para buscar suas "coisas", todas enfiadas por sua, em breve, ex-mulher em sacos pretos de lixo, a maioria dos quais contendo "coleções de nada".
King é um filósofo do colecionar sem objetivo. Seu livro gira em torno de aforismos repletos de significados e que são testemunhos de reflexões vitalícias sobre o tema: "Colecionar é uma maneira de ligar passado, presente e futuro. As coleções não são apenas coisas que nos pertencem, são coisas que representamos".

Condição humana
Por que, pergunta King, coletamos e guardamos coisas essencialmente inúteis? Não existem respostas evidentes. A maioria de nós coleciona -desde a pessoa de rua, com seu carrinho empilhado de lixo cuidadosamente ensacado, até o galerista Charles Saatchi.
Hoje em dia, existem muitos tipos de memórias -algumas mais joviais que as de King, outras mais modernamente lúgubres. E, como a maioria de nós está sintonizada com o ato de colecionar, um livro de memórias sobre colecionar é um acréscimo natural ao gênero.
King conclui que, na raiz de sua fúria colecionadora, está o medo existencial do "nada". Ele identifica a origem de sua angústia existencial em sua infância e sua criação familiar num ambiente confortável, mas emocionalmente vazio.
O resultado é algo que fica a meio caminho entre um livro de memórias e uma longa e eloqüente lamúria sobre a condição humana.
Para alguns, o ato de colecionar é algo patologicamente regressivo. "A analidade", observa King com humor, "não é um tema que me dê prazer tratar, mas tem seu lugar em minha história". Para outros, o colecionar é a mais nobre realização cultural da qual a raça humana pode se gabar. Basta nos maravilharmos diante da coleção de arte Frick, em Nova York, ou da coleção Wallace, em Londres, por exemplo. Vale fazer a pergunta: será que Frick ou Wallace colecionavam para eles mesmos ou para nós?
Após o aprendizado corriqueiro em sua infância, colecionando selos, cartões de beisebol, gibis etc., King graduou-se, chegando à "primeira coleção verdadeira" de sua vida adulta: "Um dia comecei a guardar os rótulos de todos os produtos alimentícios que eu consumia -cereais, sopas, doces, cervejas. Eu não guardava as latas ou os vidros, apenas os rótulos de papel, celofane ou plástico".
Em um dos sacos de lixo pretos de King também havia 110 rótulos de latas de atum.
King começou a trabalhar nesse livro de memórias a partir daquele dia dos sacos de lixo. Juntamente com quatro anos de psicoterapia, escrever o ajudou a retornar ao que aqueles que não sofrem de sua paixão chamariam de "normalidade". Hoje ele é, como diriam os alcoólatras, um "colecionador em fase de cura" que ministra um curso sobre "colecionadores e colecionar". "The Error World" (O Mundo do Erro, Faber, 247 págs.,
14,99, R$ 53) começa em tom ainda mais carrancudo que o livro de King. "Meu casamento acabou", confidencia Simon Garfield.
"Com o passar dos anos, fomos nos afastando um do outro. Eu me apaixonei e estou tendo um caso (...). Tenho 47 anos e não consigo me concentrar em coisa nenhuma por muito tempo."

Selos
Mas mal tivemos tempo de apreender sua difícil situação conjugal, o livro de Garfield já parte para outro rumo, para nos revelar mais do que talvez queiramos saber sobre os prazeres de colecionar selos.
Mas não se trata da filatelia comum e corriqueira. A especialidade de Garfield são selos postais britânicos com imperfeições gráficas, ou "erros", como os chamam os filatelistas. Em alguns momentos, o livro soa como um catálogo "raisonné". Veja-se por exemplo: "Vários selos foram identificados por seu potencial de investimento, incluindo o selo do Congresso da União Postal George 5º de 1929 de 1 e o George 6º de 1939 e seus preços subiram espantosamente no prazo de dois anos."
"Em 1976, David Brandon [que representou para a filatelia o que Yehudi Menuhin representou para o violino] estava vendendo uma cópia em perfeito estado, bem centrada e excelentemente perfurada, do CUP de 1 por cerca de 700; três anos mais tarde, ela já estava valendo 2.500."
Uau.
É claro que esse não é um livro sobre selos, não mais do que o livro de King é sobre rótulos de latas de atum. O tema do livro de Garfield é a psicologia de seu vício estranhamente iluminador. "Eu lambo, pinço e monto em álbuns pedacinhos de papel caríssimos -por isso meu casamento se desfaz."
Garfield se pergunta a razão por que coleciona -o que o move de modo tão obsessivo?

Crises da infância
Profundamente permeado de sentimento de culpa, como cada página proclama, finalmente opta por uma explicação freudiana clássica (aliás, o próprio austríaco era um ávido colecionador de estatuetas). Está tudo ligado a crises psicológicas de infância, diz. As crianças, observou Freud, passam por uma fase de colecionadoras na puberdade. As coisas tipicamente arbitrárias que colecionam são "objetos transicionais", que representam a mãe perdida no mundo solitário da idade adulta.
A maioria das crianças amadurece e deixa sua mania colecionadora para trás. Outras, infelizmente, não o fazem.

Ordem no mundo
Garfield cresceu numa família de classe média em que ninguém se ligava emocionalmente aos outros membros da família. Seu pai e sua mãe morreram antes de ele estar pronto para a tristeza: "Quando penso em meu pai morrendo e minha mãe lutando contra o câncer, encontro uma nova razão de meu interesse por colecionar.
Os selos postais oferecem uma maneira de ordenarmos um mundo caótico. Eles têm o poder de infundir à vida um sentido confiável". Para ele, talvez. Para outros, um selo é apenas um selo.
Mas a mania, assim como a depressão, é algo contagiante.
À medida que Garfield continua, página após página, a reviver o vício maníaco-depressivo do "connoisseur" de erros, acabamos nos envolvendo na emoção da caça. E, quando finalmente localiza o Selo Parlamentar Sem Azul de um xelim e três pence que vai coroar sua coleção, o leitor aplaude com ele. Mas então o bom senso se manifesta. Para nós, é claro, não para Garfield.
Experimente este dilema: "Você está num bote salva-vidas. Sua mulher cai fora do bote por um lado, seu álbum de selos, pelo outro. Você poderá salvar uma coisa, mas não as duas. Qual será ela?".
Para a maioria de nós, a resposta é inequívoca. Leia esse livro (eu o recomendo) e você nunca mais voltará a lamber um selo da mesma maneira.
O ato de colecionar mais racional é aquele que é feito pelo amante de livros. É estranhamente difícil descartar livros. É algo primitivo, que não tem nada a ver com a palavra impressa -afinal, descartamos jornais e rótulos de latas de atum (a maioria de nós, pelo menos) sem pensar duas vezes.
Mas sentimos que os livros definem o que temos de mais essencial.
Todo mundo tem o que Coleridge chamava de "biografia literária" -os livros que "nos fizeram". É com isso, argumenta Thomas Wright em "Oscar's Books" (Os Livros de Oscar, Chatto & Windus, 370 págs., 16,99, R$ 59), que melhor podemos identificar o cerne do mistério de Oscar Wilde. A biblioteca de Wilde é o verdadeiro retrato no sótão.

Vitrine
Os livros de Oscar Wilde foram inventariados e vendidos quando ele foi preso por sodomia. Wright abre seu livro com um retrato vívido daquele dia cruel de 24 de abril de 1895, na rua Tite, em que "uma biblioteca que levou mais de 30 anos para ser construída foi destruída em uma única tarde".
Os vendedores caíram sobre sua presa como chacais famintos. Os livros, afirma Wright, "foram a maior influência isolada sobre a vida e sobre os escritos de Wilde". Seu coração foi arrancado de seu peito, e o que restou foi atirado na prisão de Reading Gaol e ali deixado para apodrecer.
Wright reconstrói, da melhor maneira que pode um estudioso paciente, os componentes principais da coleção de Oscar Wilde. Ela começa com a mãe do escritor, a poeta Speranza (que batizou seu filho em homenagem ao herói do épico celta Ossian), recitando poemas e canções folclóricas. A trilha continua com as cartilhas com que o garoto muito precoce aprendeu a ler, o grego e o latim que conheceu na escola.
Tivessem seus gostos sido menos criativos, Oscar Wilde poderia ter sido um grande estudioso dos clássicos -ou se não tivesse sido contaminado pela onda tardia do romantismo poético, como o de Matthew Arnold, Swinburne, Rossetti. Na Universidade de Oxford, sobretudo, o culto parnasiano dos "Estudos da História da Renascença", de Walter Pater, marcou o escritor pelo resto da vida.
Entretanto, apesar de tudo o que revela sobre Wilde, o livro de Wright passa ao largo do exibicionismo que move a verdadeira mania colecionadora. A coleção de Wilde, abrigada nas estantes de sua biblioteca no piso térreo na rua Tite, não era tão grande assim. Seus livros foram selecionados principalmente para causar impressão. Não era uma biblioteca de trabalho, mas uma vitrine cuidadosamente conservada de Oscar Wilde.
Mergulhe nas motivações de qualquer colecionador dedicado e você descobrirá dois desejos: ser o único colecionador ou o melhor colecionador. Quem quer ser o segundo melhor colecionador de torradeiras ou o "outro" colecionador de rótulos de latas de atum? Aquilo que colecionamos nos define. Especialmente a nós, homens, como observa King. O "colecionar radical" é uma coisa sobretudo de homens.
Nós nos rebelamos -com selos, rótulos de latas de atum ou edições de luxo. E, é claro, fracassamos. Por mais excêntricos que sejam os livros acima descritos, eles nos revelam muito sobre a condição humana. E muito sobre até que ponto é estranho ser um humano.

JOHN SUTHERLAND é autor de "Magic Moments - The Books the Boy Loved and Much Else Beside" (Momentos Mágicos - Os Livros Que o Garoto Amava e Muito Mais). A íntegra deste texto saiu no "Financial Times". Tradução de Clara Allain.

ONDE ENCOMENDAR - Livros em inglês podem ser encomendados pelo site www.amazon.com



Texto Anterior: Biblioteca Básica: No Caminho de Swann
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.