São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2001

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O papel do cidadão é o tema de "A Democracia" e "A República", da coleção "Folha Explica", escritos pelo professor de filosofia da USP Renato Janine Ribeiro

A fórmula da ética e do desejo

Luiz Carlos Bresser Pereira
especial para a Folha

Que ninguém se engane, os dois pequenos livros que Renato Janine Ribeiro publicou pela coleção "Folha Explica" -"A Democracia" e "A República"- não são simples trabalhos de divulgação, mas um ensaio integrado em que o filósofo político da USP, usando a linguagem simples que a coleção requer, apresenta uma visão sofisticada da democracia republicana. A democracia moderna, para ele, é o regime político do desejo dos direitos humanos, enquanto a república é o regime da vontade e da ética. Em ambos os regimes temos como atores os cidadãos, que, na democracia, constituem o povo, na república, as elites responsáveis pela "res publica", pelo patrimônio e o interesse público. Há uma dificuldade para a democracia. Não saberíamos mais o que seja exatamente o povo. O povo nacional romântico? O trabalhador marxista? Os diversos e disparatados subpovos que se organizam em movimentos sociais na sociedade contemporânea? Janine Ribeiro mostra-se pessimista quanto à possibilidade de definir o que seja hoje o povo, quando trata explicitamente do problema, mas em outro trecho afirma com clareza: "Democratizar o Estado significa democratizar a sociedade". O povo, portanto, que legitima os governos democráticos, corresponde ao conjunto de cidadãos que constituem a sociedade politicamente organizada fora do aparelho do Estado. Quanto mais democráticas forem as relações sociais, mais presente estará o povo enquanto conjunto de cidadãos portadores de direitos e deveres constitucionais, e mais democrático será o regime político. Há uma segunda dificuldade. Na medida em que a democracia é o regime do desejo, pode ser também do excesso, da desmedida, da irresponsabilidade. Por isso, Renato Janine Ribeiro nos diz que a "democracia hoje tem que ser republicana". Observe-se que república aqui não se opõe a monarquia: uma monarquia constitucional pode teoricamente ser "republicana" no sentido corretamente usado por Janine Ribeiro. A república como o regime da força de vontade ou, como eu prefiro dizer, da responsabilidade e do interesse público não se opõe à monarquia, mas à política puramente liberal, que responde ao interesse individual e à política democrática radical, que se baseia no desejo coletivo. Também na república há uma dificuldade. É possível existir um regime de responsabilidade em que cidadãos virtuosos colocam o interesse coletivo acima do individual? Em vez de nos dar uma resposta direta a essa questão, Janine Ribeiro apresenta a solução liberal de Mandeville: "Vícios privados, benefícios públicos". O interesse, a ganância mesmo, no mercado, enfrentando a concorrência dos outros interesses, iria levar todo o sistema a uma situação melhor. A grande mente de Mandeville -e depois de Adam Smith- foi mostrar que os mercados são sistemas auto-regulados -ou razoavelmente auto-regulados. Mas confundiram mercado com sociedade, economia com política. Se os princípios fundadores do mercado são o interesse e o lucro, os princípios correspondentes da política são a argumentação e o compromisso, tendo como referência o bem comum. Se o liberalismo está baseado na liberdade, o republicanismo está apoiado na ética e na responsabilidade.

Dificuldades ideológicas
O liberalismo, portanto, não é uma alternativa ao republicanismo, como pretendia Mandeville, nem conflita com a democracia, como foi pensado pelos primeiros liberais do século 18. Na verdade, a democracia moderna precisa ser republicana e liberal. Exige responsabilidade dos cidadãos, considera seus interesses, assegura sua liberdade e afirma seus direitos.
Desejo, responsabilidade e liberdade complementam-se. Além dos direitos humanos é preciso considerar os direitos republicanos -o direito que cada cidadão tem de que o patrimônio público seja utilizado para o interesse público. Sobre esses pilares, adoçados pelo princípio da tolerância, estão assentadas as democracias liberais, sociais e republicanas, modernas.
O belo ensaio de Renato Janine Ribeiro ter-se-ia beneficiado de um terceiro ensaio, sobre o liberalismo. Talvez então ficasse mais claro que as dificuldades que a democracia, o republicanismo e o liberalismo enfrentam derivam menos de suas contradições e mais da dificuldade ideológica, se não emocional, que os homens e as mulheres têm de considerar essas visões da política como complementares.


Luiz Carlos Bresser Pereira é professor da USP e da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração e Reforma do Estado (governo FHC), além de da Fazenda (Sarney).




A Democracia
88 págs., R$ 9,90

de Renato Janine Ribeiro. Ed. PubliFolha (av. Dr. Vieira de Carvalho, 40, 11º andar, CEP 01210-010, SP, tel. 0/xx/11/ 3351-6342).



A República
96 págs., R$ 9,90

de Renato Janine Ribeiro. Ed. PubliFolha.



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