São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2007

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Ponto de fuga

Colagens e catedrais


Schwitters recuperava restos de papel, de objetos, e procedia a colagens, cujas significações subvertidas integram-se na beleza da composição


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

U m pequeno elefante branco; uma flor branca. Sob ela, formando como uma gola, o verde aveludado de algumas folhas. O vaso de cristal, longo cálice, brilha, ao lado da compoteira cheia de frutas. Uma banana caiu sobre a toalha rendada. Advinha-se uma caixa, que emerge, mal e mal, do fundo sombrio, escuridão untuosa. O verniz da mesa de mogno reflete a luz.
Essas coisas figuram num quadro de Kurt Schwitters. Estava na mostra que a Pinacoteca do Estado de São Paulo consagrou ao artista [encerrada em 2/12; estréia no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, em 15/12]. Data de 1912; o pintor tinha 25 anos. Obra de juventude, não prefigura a formidável originalidade moderna que faria dele um criador crucial do século 20. Mas essas primeiras telas trazem já o amor da construção e a volúpia da materialidade, traços essenciais que Schwitters não abandonaria.
Recuperava restos de papel, de objetos e procedia a colagens, cujas significações subvertidas se integram na beleza da composição. Chamava sua arte de Merz, palavra inventada; edificou os Merzbau, refúgios feitos de gesso, aos quais acrescentava objetos os mais estranhos: Hans Richter, que deixou a mais viva descrição de Schwitters, detalha o primeiro deles em "Dada - Arte e Antiarte" (ed. Martins Fontes).
Schwitters, alemão, é obrigado a fugir dos nazistas; seu Merzbau é destruído; na Noruega, onde se refugia, constrói um outro, abatido mais uma vez quando Hitler invade o país.
Exilado na Inglaterra, ergue o terceiro, que permanece inacabado por sua morte em 1948. Schwitters pertence, ao menos tangencialmente, ao dadaísmo de Berlim, que Norval Baitello Jr. estudou no livro "Dadá-Berlim" (Annablume -nome da editora e da musa de Schwitters).

Energias
No ótimo catálogo da exposição, Joachim Bernauer cita Oiticica sobre Schwitters: "O profundo desejo de construção que se manifesta nas suas obras é conseqüência da maneira de intuir o mundo como um habitat ideal não imediato". Dentre os grandes artistas de seu tempo, talvez um dos que mais se aproximem de Schwitters em suas obsessões criadoras habite uma outra galáxia, ibérica, católica e conservadora. Como Schwitters, Gaudí recupera, junta, cola, ergue, eleva empiricamente templos ideais nada imediatos.

Fusões
Rrummpff tilff toooo? Essa frase faz parte da "Ursonate" (Sonata Primordial) de Schwitters, destinada a ser lida em voz alta, feita apenas de sonoridades maciças sem significação. Haroldo de Campos traduziu o poema que Schwitters dedicou a Anna Blume, tão concreto. É dele o verso admirável: "Gordura bovina goteja ternura em meu dorso".
Schwitters é fiel a si mesmo em todas as formas de sua arte. Nos anos 1940, volta à figuração: permanece intenso, construtor e material. Obra-prima dessa época, o "Retrato de Alfred Sohn-Rethel 1".

Clarão
"A sinfonia deveria ser como o mundo; ela precisa abarcar todas as coisas." A frase é de Mahler, compositor que organizou as mais monumentais colagens sonoras. Os maestros adoram dirigir sua música surpreendente, grandiosa.
É preciso excelentes intérpretes para tanto: Luiz Malheiro, num domingo de manhã, dia 25 de novembro, frente à Orquestra Municipal de São Paulo, regeu a "Sinfonia nº 5". Um esplendor. Aquela orquestra, tão precária não faz ainda muito tempo, está transfigurada. Depois das finuras da "Shéhérazade" de Ravel, as sonoridades de Mahler avolumaram, brilhantes, na sublime acústica do Teatro Municipal.


jorgecoli@uol.com.br


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