São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2002

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Ponto de fuga

A arte como antiarte

Jorge Coli
especial para a Folha

Ele queria demolir tudo: arte, cultura, reflexão estética, beleza, técnica. Posições de combate, como as suas, alimentaram as energias criadoras de artistas, desde o século 19. Lutar contra as instituições, contra os enquadramentos, contra as escolas, contra as afetações, contra a superficialidade, provocava, em refluxo, o estímulo para criar novas obras, demonstrações palpitantes de verdades acreditadas.
Mas a cultura, a arte, possuem um aspecto perverso: não é possível atacá-las de dentro. Quando atingidas, sabem se recompor imediatamente, devorando e digerindo o atacante. Jean Dubuffet declarou guerra não só a todos os modos existentes da arte, mas contra a própria arte. Queria apagar até mesmo a denominação: "Eu preferiria que a palavra arte não existisse e que a coisa não tivesse nome".
Eis que, para seu centenário de nascimento, o Centro Georges Pompidou, em Paris, organizou, no final de 2001, uma retrospectiva que o celebra. Percurso fabuloso, no qual 400 obras comprovam, em ordem cronológica, a incessante renovação do artista. Demonstram também que, passando por etapas muito diferentes, permaneceu sempre nele algo de muito característico, que vem, por um lado, do amor pela matéria e pela superfície; e, por outro, de uma trepidação nervosa, presente nos traços. Ela desaparece apenas no momento em que suas telas se transformam em texturas. Mesmo ali, porém, uma certa granulação vibrátil as irmana ao resto. São testemunhos de uma autêntica grandeza artística.
Preparo - Dubuffet possuía a noção dos limites efetivos desses ataques que empreendia. Se, em 1968, escreve um panfleto intitulado "Asfixiante Cultura" e proclama que os museus são a morada de cadáveres embalsamados, cuida, com atenção, da posteridade de sua arte. Faz uma grande doação para... o Museu de Artes Decorativas de Paris. Cria a Fundação Dubuffet (www.dubuffetfondation.com), que se ocupa de seu legado, e se encarrega mesmo dos certificados de autenticidade. Por sinal, Dubuffet é um valor muito seguro no mercado das artes: seus preços não cessam de aumentar.
Alquimia - No final dos anos de 1940, Dubuffet opõe a noção de "art brut" à de arte cultural. Ela pressupõe produções espontâneas, distantes de qualquer sofisticação erudita, feitas por pessoas "obscuras, estranhas aos meios artísticos profissionais". Mas não quer o primitivo, o "naïf", quer o "primário", como afirmava. Sabe, porém, que não pode se incluir nessa categoria, já que ela, por definição, não possui consciência de si.
Dubuffet prefere os materiais menos nobres: óleo queimado, esponja, carvão e o que mais seja. Retoma grafites sumários, como os de banheiros públicos, emprega-os sem profundidade, sobre matéria muito rica, que sugere textura orgânica. Cria retratos, nus, paisagens, vacas. Mais tarde, avança por uma compartimentagem das superfícies, com formas irregulares, logo projetadas em terceira dimensão. Essas esculturas atingem a escala de monumentos. É o seu período mais longo, que dura 12 anos. Dubuffet inventa um nome sonoro para ele: "L'Hourloupe". Um ponto é menos assinalado pelos seus exegetas, talvez pela seriedade com que o artista travava combates: o humor, combustível essencial em sua criação.
Caligrafia - Dubuffet redigiu longos textos numa ortografia fonética em que o léxico e a sintaxe se estrepam. Teve, porém, talento de grande escritor. Eis aqui um exemplo de sua elegância: "O propósito da pintura é ornar superfícies, ela considera, portanto, apenas duas dimensões e exclui a profundidade. Não é enriquecê-la, mas desviá-la e adulterá-la, visar a efeitos de relevo e de "trompe-l'oeil" por meio do claro-escuro. Encontremos, em vez disso, engenhosas transcrições para achatar todos os objetos sobre a superfície; fazer a superfície falar sua própria linguagem de superfície, e não uma falsa linguagem de espaço em três dimensões, que não é a sua".


Jorge Coli é historiador da arte.

E-mail: jorgecoli@uol.com.br



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