São Paulo, domingo, 10 de março de 2002

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+ cinema

AS DESRAZÕES DA HISTÓRIA

Divulgação
Cena de "O Tirano da Aldeia", de Volker Schlöndorff


por Volker Schlöndorff


O diretor alemão, de "O Tambor", relembra sua trajetória e afirma que a busca de "realismo social" o levou a se aproximar de escritores como Heinrich Böll e Günter Grass


Até os anos 1960, o cinema alemão mostrou pouco interesse pela literatura alemã. A adaptação da lenda de "Os Nibelungos" por Fritz Lang, em 1924, representava um caso à parte. O "Fausto" (1926) de Murnau não era uma adaptação literária. O cinema expressionista se fazia sem qualquer referência aos escritores. Era uma pena -Alfred Döblin ou Bertolt Brecht teriam podido desempenhar um papel no cinema, mas isso não aconteceu. O fascínio dos profissionais da imagem pela inspiração romântica à qual se ligou, mais tarde, Werner Herzog, esse cineasta próximo de Arnim, de Jean-Paul, de Hölderlin, era inexistente. É apenas na França, aliás, que se aprecia esse folclore à la Vitor Hugo, esse exotismo dos nevoeiros do Reno. Os alemães não se vêem assim, de maneira alguma. E, entre nós, Werner Herzog não é visto como romântico. Mas tudo mudou com a nouvelle vague. Após a Segunda Guerra, o cinema alemão ficou nas mãos de cineastas, de estrelas e de produtores que tinham trabalhado sob a égide de Goebbels, como era o caso de Veit Harlan (que dirigiu a adaptação para o cinema de "Juif Süss", em 1940), e que continuaram a filmar um país banhado em harmonia, exaltando a coragem de nossos valorosos soldados desencaminhados por um sujo ditador... Até que nossa geração rejeitou essa hipocrisia da restauração e se posicionou a favor dos escritores do Grupo 47 [leia quadro na outra página", cujos livros, aos nossos olhos, eram uma chave para a compreensão de nossa sociedade.

Uma nova arte
Numa época em que a onda do cinema erótico a tudo submergia, o cinema se aproximou da literatura quando Alexander Kluge lançou as bases de uma nova arte (um pouco no espírito da nouvelle vague francesa lançada pelos "Cahiers du Cinéma"), dando as costas às pesquisas puramente formais em favor da descrição e análise da sociedade alemã.
A televisão nos ajudou muito: nos permitiu lançar as bases de uma produção independente, fazer filmes tipicamente alemães em lugar de permanecermos voltados às co-produções internacionais. Graças a ela, fazíamos um cinema quase provincial, no sentido de que tudo que é bom, na Alemanha, sempre vem da província. No caso de Goethe, era Weimar; de Schiller, era Stuttgart; de Böll, Colônia; de Grass, Dantzig.
Heinrich Böll, que rasgou o véu de silêncio lançado sobre o passado hitleriano e, mais tarde, tomou partido contra a histeria na qual o país tombou na época do bando de Baader, marcou essa nova onda com sua impressão digital. O primeiro filme de Jean-Marie Straub, "Não Reconciliados" (1965), sobre dois amigos de escola que se reencontram 30 anos após os anos problemáticos do nazismo, é adaptado de Böll - e Peter Schamoni também o adaptou. Heinrich Böll era antes de mais nada um contador de histórias. O cinema conta histórias, e era Böll quem fornecia mais histórias ao cinema. Ele se tornou uma espécie de consciência.
Nesse clima de caça às bruxas, eu pessoalmente adaptei "A Honra Perdida de Katharina Blum" (1971). Com Margarethe von Trotta, eu quis fazer um filme sobre a "criminalização" dos grupos revolucionários, da esquerda, um filme que denunciasse a imprensa sensacionalista (a imprensa Springer) e os métodos policiais. Böll desceu para a arena ao tratar do caso Baader-Meinhof (1) e sentiu o que é uma campanha difamatória.
Ele também trabalhou conosco no filme coletivo "Alemanha no Outono" (1978), para o qual escreveu uma Antígona, e em "Guerra e Paz" (1983), um filme sobre a guerra atômica. Depois, outros autores começaram a escrever para o cinema, como Peter Schneider, com "Faca na Cabeça", de Reinhard Hauf, um filme no qual a vítima de um erro policial encarna uma Alemanha desmemoriada, órfã de sua identidade (1979). Tínhamos um programa comum: reencontrar os traços do passado no presente.
Enquanto isso, Rainer Werner Fassbinder adaptou Döblin ("Berlin Alexanderplatz", 1980) e Theodor Fontane ("Fontane Effi Briest", 1974). Ele não se preocupava muito com a fidelidade. Utilizava a literatura como material para fazer trabalhos de Fassbinder. E era fantástico! Hans Jürgen Syberberg tomou posse de "Karl May" (1974), aquele que foi apelidado de "o Júlio Verne alemão".
Quanto a mim, eu era um caso um pouco à parte. Sou cosmopolita, fiz meus estudos na França. Num primeiro momento, num colégio jesuíta em Vannes, onde atuei em "Siegfried et le Limousin", de Jean Giraudoux, e onde decidi que, se algum dia eu fizesse cinema, seria para provar a meus colegas que existia outra Alemanha que não a de "Nuit et Brouillard" (1955), de Alain Resnais -uma Alemanha que eu ia buscar em Büchner tanto quanto nos filmes de Pabst, de Lang e de todo um cinema realista que contrastava com a imagem tradicional de uma Alemanha tenebrosa.
Continuei meus estudos em Paris no liceu Henri 4º e me tornei assistente de Louis Malle. Mais tarde, tendo me tornado cineasta, por minha vez, tentei adaptar vários escritores, quando eu sonhava com um cinema de autor. Comecei com Robert Musil, "O Jovem Törless" (1966), para mostrar como as relações de força num colégio fazem nascer o que Musil chamava de "sementes de tiranos". Não se tratava apenas de nazistas. Eu precisava desse álibi naquela época, mas acho que hoje essa metáfora já está um pouco ultrapassada. Mais do que sobre o nazismo, era um filme sobre a adolescência. Continuei com Kleist -"O Tirano da Aldeia" ("Michael Kohlaas, le Rebelle", 1969)-, que também contém uma lição social: retrata o que existe de simultaneamente admirável e assustador num herói alemão quando ele perde o contato com a realidade em nome de seu ideal, como constatamos mais tarde com os terroristas. Filmei "Baal", de Brecht, para a TV, para cercar a irmandade anarquista, com Fassbinder no papel da besta bávara. Quer eu queira, quer não, me banho na literatura. E escolhi também adaptar autores vivos, para manter um diálogo com eles. É minha maneira de reagir contra a idéia da literatura empolada, oficial, maçante. Sempre me debrucei sobre essas questões: o que é a Alemanha? Quem são os alemães? O que é a identidade nacional? Que parte de nossa história podemos assumir e que parte rejeitar? Minhas leituras me ajudam a responder a essas perguntas. "Protestante e cartesiano" Günter Grass virou um monumento nacional na Alemanha: "O Tambor", esse misto de conto de fadas e pesadelo, trouxe uma libertação com relação à era nazista. Grass esteve por trás da "Ostpolitik" de Willy Brandt, ele dava o exemplo de um escritor que se engaja na condição de escritor, e não de político. Quando filmei "O Tambor" (1974), o que me interessava -a mim, que sempre fui uma criança bem-comportada- era a revolta da criança contra o mundo dos adultos. Pensei no Chaplin de "O Garoto" (1921).
Durante as filmagens, Grass me criticou por ser "protestante e cartesiano". Ele achava que faltava "a erupção irracional do tempo" em meu roteiro. É verdade -fui criado protestante, enquanto ele é católico, extremamente pagão! Ele crê numa religião que mergulha de cabeça na sensualidade, no pecado, e que favorece o irracional. Por conta disso, ele foi descrito como barroco. Eu, pessoalmente, o descreveria de preferência como "bárbaro". Grass inventou um realismo burlesco. Vêm daí minhas dificuldades: sou voltado ao realismo, desconfio de tudo que não pode ser controlado pela razão.
Mesmo quando adaptei "Tiro de Misericórdia" (1976), o que mais me cativou foi o contexto histórico, e não a tragédia à la Racine, para o grande desprazer de Marguerite Yourcenar. Proust ("Um Amor de Swann", 1984) foi um pouco minha educação sentimental: eu o li aos 17 anos. Sem dúvida minha leitura dele é mais expressionista do que a de um francês. Destaquei o lado Dostoiévski de Proust, seu paroxismo.
Hoje eu gostaria de adaptar as extraordinárias "Simple Stories" de Ingo Schulze, uma colcha de retalhos de histórias que se confundem numa cidadezinha da Alemanha Oriental.
Mas os jovens diretores de hoje não têm essa influência forte da literatura alemã: eles se inspiram no cinema norte-americano dos últimos 15 anos.


Nota da Redação
1. Grupo terrorista alemão que atuou entre 1968 e 1977, fundado pela jornalista Ulrike Meinhof e pelo incendiário condenado Andreas Baader, que acreditava que a Alemanha Ocidental fosse um Estado fascista que, apoiado numa sociedade de consumo, enganava e escravizava o seu proletariado. O grupo desejava disparar a revolução socialista a partir da Alemanha.


Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.


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