São Paulo, domingo, 10 de abril de 2005

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Em "Modernidade Singular", Fredric Jameson tenta salvar o movimento de seus defensores, ao opor suas versões regressiva e progressiva

Fragmentos do futuro

GABRIEL COHN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se Adorno em certo momento assumiu a "defesa de Bach contra seus amigos", Jameson, que aliás reconhece no frankfurtiano um mestre, faz algo similar em relação à modernidade em "Modernidade Singular". Pois são os novos amigos da modernidade que o preocupam, muito mais do que os inimigos.
Mais precisamente, interessa-lhe saber como se organiza e opera a própria lógica cultural que define uns e outros. Fala-se como nunca do moderno, depois que as diversas vertentes do pós-moderno haviam colocado em xeque essa figura. Jameson detecta nisso um processo de regressão no campo cultural e, por extensão, no campo social e político por intermédio da ideologia.
Na realidade -e aqui já se antecipa um traço central da sua análise de cunho marxista com forte presença da teoria crítica-, a ele importa reconstruir a dialética do progresso e da regressão no grande processo cultural contemporâneo.
Ao longo das últimas três décadas, Fredric Jameson firmou-se como o principal teórico da cultura de orientação marxista em língua inglesa. À primeira vista, ele poderia parecer uma demonstração viva desse paradoxo do chamado marxismo ocidental, de que a análise das dimensões mais "leves" da vida social se revela mais refinada e mais persuasiva do que a análise econômica "dura".
Mas essa impressão logo se dissipa no contato com os seus escritos, em que toda a gama de instrumentos de análise das mais variadas dimensões da vida social é mobilizada para examinar, por ângulos que parecem infindáveis, uma questão clássica nessa linha teórica: como se vinculam, em condições históricas determinadas, as formas econômicas e as formas culturais, passando pelas suas expressões sociais e políticas?

Linhas tortuosas
Prepare-se, pois, para encontrar o leque de referências característico de Jameson: só na letra "a", de Adorno a Arrighi (e na "z", de Zizek a Zola). O presente livro é uma espécie de primeiro arremate para todo um conjunto de publicações anteriores, que antes haviam encontrado expressão mais cabal em ensaio de 1991 sobre o pós-modernismo e a lógica cultural do capitalismo.
Estão em jogo formas culturais que só podem ser decifradas com referência a uma etapa específica do desenvolvimento capitalista, obedecidas, no entanto, as mais severas exigências de método: nada de reducionismo nem de teleologia nem de saltos mortais em busca de uma "totalidade histórica" dada. Quem espera linhas retas não pode ler Jameson, com suas exposições tortuosas que às vezes beiram a contorção, marcadas pela multiplicação vertiginosa de elos entre dimensões dos processos examinados, mesmo quando amiúde são "mediadores evanescentes" (para apontar, entre muitos outros, um engenhoso conceito de que se vale), que somem após realizar sua tarefa.
É verdade que há ocasionais formulações mais duras, como ocorre quando recomenda o "procedimento experimental" de substituir capitalismo por modernidade em todos os contextos em que o termo aparece. Se, como alega, isso permitiria formular questões interessantes, é porque os dois termos não são indiferentes. Já nos seus escritos anteriores, ele havia elaborado a idéia de que a nova etapa "tardia" do capitalismo era incompatível com a pretensão própria ao modernismo (o correlato estético da modernidade) à autonomia da obra (uma "semi-autonomia", na verdade).
O impacto do capitalismo, porém, é mais dissolvente do que destrutivo, lembra mais uma explosão que arremessa fragmentos culturais por todo o espaço social, convertendo tudo (e nada, portanto) em cultura. A identificação por Jameson do mecanismo básico em operação nisso não surpreende: diz respeito à expansão da forma mercadoria e à reificação.

Modernidade petrificada
Neste livro, contudo, o processo é descrito como tendo avançado muito (no sentido dialético, para usar um termo que não assusta Jameson, não dissociando o avanço da regressão), e a reificação atinge o próprio termo que qualifica o processo cultural. É a própria noção (ideológica, no sentido de teoria para uma prática) de modernidade que se petrifica. A questão de Jameson é: como repor em movimento esse relato histórico travado, trazendo de volta as suas camadas ocultas de significado de modo crítico, e não meramente ideológico, como ocorre na reificação do novo, ou da diferença, que acaba consagrando o já dado?
Pois é de um relato que se trata, de uma forma peculiar de narrativa que é organizada pelo seu próprio tema. Modernidade é uma categoria narrativa com caráter específico, sustenta Jameson. Fazendo uso da sua terminologia profissional, ele designa o modo como o termo modernidade atua na narrativa que lhe é própria como "embreante" ("shifter"); vale dizer, trata-se de uma instância de contextualização do relato mediante a especificação de agente, local ou tempo.
Isso dá força à posição central de Jameson, derivada do seu lema básico, "historicizar sempre", que neste livro se exprime na "máxima" (uma das quatro que são apresentadas para conduzir a análise) de que não é possível não periodizar ao falar da modernidade. Isso significa mais do que a recusa a pôr todo o peso na noção de ruptura.
Não se trata de postular uma continuidade sem mais, mas de habilitar-se a reintroduzir a ruptura na própria periodização. Isso significa, também, tratar modernidade não como um conceito, mas como uma palavra, cujos usos e efeitos ideológicos importa expor nos seus próprios termos: mais como sintoma do que como recurso explicativo.
Embora o livro distinga duas partes, uma dedicada à formulação e aplicação das "máximas" de método, e outra ("O Modernismo como Ideologia") para tratar da coisa mesma, na realidade as duas dimensões estão imbricadas ao longo de toda a exposição, até por exigência do tema, que envolve uma narrativa que só ganha caráter crítico na medida em que não desconheça as "estratégias" que a comandam. A ontologia do presente de que fala Jameson é crítica: leva a sério o lema de Lukács, do presente como história. Não é regressiva, não acumula no presente os significados pretéritos com o rótulo de novos, mas se projeta no futuro, identificando possibilidades e buscando alternativas.
Daí o uso, também crítico, da exigência de Rimbaud -"il faut être absolument moderne!" [é preciso ser absolutamente moderno!]-, em que a forma imperativa ("é preciso") pode remeter tanto à exigência do moderno no registro "utópico", nos seus desdobramentos históricos que Jameson vê tolhidos, quanto à sua versão ideológica, como forma cultural dominante na atual etapa do capitalismo, em que a recusa a aderir ao moderno fetichizado envolve a desqualificação e a exclusão, e o modelo único é vendido como "modernização".
Do mesmo modo, é crítico o uso do termo "singular": a modernidade possível como resposta à dominante não é, como quer sua versão fetichizada, una e compacta ou então poeira de diferenças, mas multiplicidade diferenciada.
Trata-se, quase literalmente, de opor uma modernidade progressiva (não como avanço linear, mas como abertura para o futuro) à sua versão regressiva dominante. Nesse sentido, Jameson apresenta-se como o mestre do que se poderia chamar de narrativa cultural


Gabriel Cohn é cientista político e professor da USP, autor de "Crítica e Resignação" (Martins Fontes) e "Weber" (Ática).

Modernidade Singular
288 págs., R$ 32,90 de Fredric Jameson. Trad. Roberto Franco Valente. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, RJ, CEP 20291-380, tel.0/xx/11/2585-2000).



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