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Em "Modernidade Singular", Fredric Jameson tenta salvar o movimento
de seus defensores, ao opor suas versões regressiva e progressiva
Fragmentos do futuro
GABRIEL COHN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Se Adorno em certo momento
assumiu a "defesa de Bach
contra seus amigos", Jameson, que aliás reconhece no
frankfurtiano um mestre, faz algo similar em relação à modernidade em
"Modernidade Singular". Pois são
os novos amigos da modernidade
que o preocupam, muito mais do
que os inimigos.
Mais precisamente, interessa-lhe
saber como se organiza e opera a
própria lógica cultural que define
uns e outros. Fala-se como nunca do
moderno, depois que as diversas
vertentes do pós-moderno haviam
colocado em xeque essa figura. Jameson detecta nisso um processo de
regressão no campo cultural e, por
extensão, no campo social e político
por intermédio da ideologia.
Na realidade -e aqui já se antecipa um traço central da sua análise de
cunho marxista com forte presença
da teoria crítica-, a ele importa reconstruir a dialética do progresso e
da regressão no grande processo
cultural contemporâneo.
Ao longo das últimas três décadas,
Fredric Jameson firmou-se como o
principal teórico da cultura de
orientação marxista em língua inglesa. À primeira vista, ele poderia parecer uma demonstração viva desse
paradoxo do chamado marxismo
ocidental, de que a análise das dimensões mais "leves" da vida social
se revela mais refinada e mais persuasiva do que a análise econômica
"dura".
Mas essa impressão logo se dissipa
no contato com os seus escritos, em
que toda a gama de instrumentos de
análise das mais variadas dimensões
da vida social é mobilizada para examinar, por ângulos que parecem infindáveis, uma questão clássica nessa linha teórica: como se vinculam,
em condições históricas determinadas, as formas econômicas e as formas culturais, passando pelas suas
expressões sociais e políticas?
Linhas tortuosas
Prepare-se, pois, para encontrar o
leque de referências característico de
Jameson: só na letra "a", de Adorno
a Arrighi (e na "z", de Zizek a Zola).
O presente livro é uma espécie de
primeiro arremate para todo um
conjunto de publicações anteriores,
que antes haviam encontrado expressão mais cabal em ensaio de
1991 sobre o pós-modernismo e a lógica cultural do capitalismo.
Estão em jogo formas culturais
que só podem ser decifradas com referência a uma etapa específica do
desenvolvimento capitalista, obedecidas, no entanto, as mais severas
exigências de método: nada de reducionismo nem de teleologia nem de
saltos mortais em busca de uma "totalidade histórica" dada. Quem espera linhas retas não pode ler Jameson, com suas exposições tortuosas
que às vezes beiram a contorção,
marcadas pela multiplicação vertiginosa de elos entre dimensões dos
processos examinados, mesmo
quando amiúde são "mediadores
evanescentes" (para apontar, entre
muitos outros, um engenhoso conceito de que se vale), que somem
após realizar sua tarefa.
É verdade que há ocasionais formulações mais duras, como ocorre
quando recomenda o "procedimento experimental" de substituir capitalismo por modernidade em todos
os contextos em que o termo aparece. Se, como alega, isso permitiria
formular questões interessantes, é
porque os dois termos não são indiferentes. Já nos seus escritos anteriores, ele havia elaborado a idéia de
que a nova etapa "tardia" do capitalismo era incompatível com a pretensão própria ao modernismo (o
correlato estético da modernidade)
à autonomia da obra (uma "semi-autonomia", na verdade).
O impacto do capitalismo, porém,
é mais dissolvente do que destrutivo,
lembra mais uma explosão que arremessa fragmentos culturais por todo
o espaço social, convertendo tudo (e
nada, portanto) em cultura. A identificação por Jameson do mecanismo básico em operação nisso não
surpreende: diz respeito à expansão
da forma mercadoria e à reificação.
Modernidade petrificada
Neste livro, contudo, o processo é
descrito como tendo avançado muito (no sentido dialético, para usar
um termo que não assusta Jameson,
não dissociando o avanço da regressão), e a reificação atinge o próprio
termo que qualifica o processo cultural. É a própria noção (ideológica,
no sentido de teoria para uma prática) de modernidade que se petrifica.
A questão de Jameson é: como repor
em movimento esse relato histórico
travado, trazendo de volta as suas
camadas ocultas de significado de
modo crítico, e não meramente
ideológico, como ocorre na reificação do novo, ou da diferença, que
acaba consagrando o já dado?
Pois é de um relato que se trata, de
uma forma peculiar de narrativa que
é organizada pelo seu próprio tema.
Modernidade é uma categoria narrativa com caráter específico, sustenta Jameson. Fazendo uso da sua
terminologia profissional, ele designa o modo como o termo modernidade atua na narrativa que lhe é própria como "embreante" ("shifter");
vale dizer, trata-se de uma instância
de contextualização do relato mediante a especificação de agente, local ou tempo.
Isso dá força à posição central de
Jameson, derivada do seu lema básico, "historicizar sempre", que neste
livro se exprime na "máxima" (uma
das quatro que são apresentadas para conduzir a análise) de que não é
possível não periodizar ao falar da
modernidade. Isso significa mais do
que a recusa a pôr todo o peso na noção de ruptura.
Não se trata de postular uma continuidade sem mais, mas de habilitar-se a reintroduzir a ruptura na
própria periodização. Isso significa,
também, tratar modernidade não
como um conceito, mas como uma
palavra, cujos usos e efeitos ideológicos importa expor nos seus próprios
termos: mais como sintoma do que
como recurso explicativo.
Embora o livro distinga duas partes, uma dedicada à formulação e
aplicação das "máximas" de método, e outra ("O Modernismo como
Ideologia") para tratar da coisa mesma, na realidade as duas dimensões
estão imbricadas ao longo de toda a
exposição, até por exigência do tema, que envolve uma narrativa que
só ganha caráter crítico na medida
em que não desconheça as "estratégias" que a comandam. A ontologia
do presente de que fala Jameson é
crítica: leva a sério o lema de Lukács,
do presente como história. Não é regressiva, não acumula no presente
os significados pretéritos com o rótulo de novos, mas se projeta no futuro, identificando possibilidades e
buscando alternativas.
Daí o uso, também crítico, da exigência de Rimbaud -"il faut être
absolument moderne!" [é preciso
ser absolutamente moderno!]-,
em que a forma imperativa ("é preciso") pode remeter tanto à exigência do moderno no registro "utópico", nos seus desdobramentos históricos que Jameson vê tolhidos,
quanto à sua versão ideológica, como forma cultural dominante na
atual etapa do capitalismo, em que a
recusa a aderir ao moderno fetichizado envolve a desqualificação e a
exclusão, e o modelo único é vendido como "modernização".
Do mesmo modo, é crítico o uso
do termo "singular": a modernidade
possível como resposta à dominante
não é, como quer sua versão fetichizada, una e compacta ou então poeira de diferenças, mas multiplicidade
diferenciada.
Trata-se, quase literalmente, de
opor uma modernidade progressiva
(não como avanço linear, mas como
abertura para o futuro) à sua versão
regressiva dominante. Nesse sentido, Jameson apresenta-se como o
mestre do que se poderia chamar de
narrativa cultural
Gabriel Cohn é cientista político e professor da USP, autor de "Crítica e Resignação"
(Martins Fontes) e "Weber" (Ática).
Modernidade Singular
288 págs., R$ 32,90
de Fredric Jameson. Trad. Roberto
Franco Valente. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, RJ, CEP 20291-380, tel.0/xx/11/2585-2000).
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