São Paulo, domingo, 10 de abril de 2005

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+ cultura

O helenista francês Jean-Pierre Vernant diz que a tragédia grega inventou o homem angustiado e afirma que o progresso técnico-científico tornou o gênero mais atual do que nunca

O herói e o monstro

FABIENNE DARGE

Por que textos escritos há 2.500 anos, que marcam a invenção do teatro, ainda fascinam hoje? Fizemos a pergunta a Jean-Pierre Vernant, 91, especialista no homem grego antigo, cuja abordagem ele renovou consideravelmente, sobretudo por meio da psicologia e da antropologia. Para ele, a tragédia grega continua atual porque é "um fenômeno social, estético e psicológico".
Filósofo por formação, historiador, diretor de estudos na Escola Prática de Altos Estudos a partir de 1958, professor honorário no Collège de France, onde ocupou a cadeira de estudos comparados de religiões antigas (1975-1984), Vernant é "um mestre de liberdade no ensino universal", como o qualifica seu discípulo e amigo Pierre Vidal-Naquet.


É uma ilusão acreditar que o homem é dono de seus atos, nos diz a tragédia


Jean-Pierre Vernant contou sua trajetória de resistente e de comunista dissidente em "La Traversée des Frontières" [A Travessia das Fronteiras, ed. Seuil, 2004]. Ele nos recebeu em sua casa em Sèvres para um mergulho nas nascentes do teatro ocidental, revelador desse "homem trágico" nascido há 25 séculos -e ainda atual.
 

Pergunta - Como surge a tragédia grega?
Jean-Pierre Vernant -
No século 5º antes de Cristo, com a democracia ateniense. A tragédia avança durante um século, depois pára. O primeiro grande poeta trágico é Frinico, do qual nenhuma obra se conservou.
Sabemos que suas peças são escritas para dois atores e coro. Depois dele vêm os três grandes poetas trágicos, Ésquilo, Sófocles e Eurípides, que escrevem para três atores e coro. Nós nos interrogamos muito sobre as origens da tragédia, sobretudo as religiosas. Mas eu vejo nelas sobretudo uma invenção, uma inovação.

Pergunta - Uma inovação que é primeiramente institucional?
Vernant -
Sim, porque o nascimento da tragédia é inseparável da organização cívica, da elaboração da democracia ateniense. É o período em que, nas cidades gregas, se institui o direito. Em que são fundados os tribunais, compostos de cidadãos encarregados de fazer os julgamentos. O desenvolvimento intelectual avança, com a medicina, a geometria, a filosofia... Assistimos a uma ruptura com um modo de pensar arcaico. Estamos em um período intermediário: os heróis mitológicos, celebrados como valores, agora são questionados.
A tragédia chega nesse momento. Ela assume a forma de um concurso, que põe em disputa três poetas trágicos durante três dias, ao fim dos quais um deles recebe um prêmio. Para isso, designam-se três cidadãos, cada um encarregado de pilotar uma "equipe" de poetas e intérpretes. Esses cidadãos devem se ocupar da "encenação" da tragédia escrita pelo poeta que lhes coube. Ao mesmo tempo, é indicado um chefe de coro. Esse último também é um cidadão, como os atores e os membros do coro, composto unicamente de rapazes da cidade.
Para o concurso, cada equipe deve apresentar três tragédias e um drama satírico. Ao final desses três dias, um tribunal indica o premiado. Como nos tribunais encarregados de julgar os casos de direito, ele é composto de um certo número de cidadãos sorteados.
O fato de ser um tribunal que decide a atribuição do prêmio em nome da cidade é uma inovação institucional totalmente de acordo com as regras de funcionamento da cidade. Podemos dizer, assim, que, com a tragédia, é a cidade que se interpreta ela mesma diante do público.

Pergunta - A tragédia não é também uma inovação estética?
Vernant -
Ela marca efetivamente a criação de um novo gênero literário. Antes dela, temos a poesia épica (Homero, Hesíodo) e a poesia lírica. Mas essa poesia é uma obra de pura audição: o poema não é feito para ser lido, mas escutado, nas recepções privadas ou nas grandes festas de Delfos ou de Olímpia. Ele canta os grandes feitos dos heróis lendários.
Com a tragédia, estamos diante de algo completamente diferente: um espetáculo. São os mesmos personagens, os mesmos relatos, os mesmos mitos; mas, enquanto o poeta épico cantava as façanhas dos heróis, com a tragédia o público vê o herói em cena, realizando suas façanhas.
E isso muda tudo. Os heróis estão lá, diante da multidão, em carne e osso, como se estivessem vivos. Quando o ateniense do século 5º vê Agamênon, Clitemnestra ou Orestes caminharem sobre o palco, ele sabe que se trata do que chamaremos mais tarde de "ilusão teatral". Ele compreende, evidentemente, que é um espetáculo montado, organizado, com problemas de perspectiva e de cenário que se colocam desde o início. A tragédia pressupõe e ao mesmo tempo fabrica a consciência do fictício.

Pergunta - Como é fabricada essa "consciência do fictício"?
Vernant -
Uma arte ligada ao imaginário, que fabrica "fantasmas", irreais ou relacionados a outro tipo de realidade, não se impõe imediatamente. Essa arte precisa ser longamente elaborada. Em Atenas, ela é fabricada nos palcos do teatro. E o surgimento da arte teatral está ligado ao aparecimento de uma categoria de palavras -"mimesis", "mimema", "mimeistai": mimese, imitar, imitação. A tragédia vai imitar o que aconteceu. O fato de haver um espaço cênico limitado, o fato de o público ver as ações encadeadas por elos fortes no plano lógico e estético irão fazer com que exista uma condensação da ação.
Por isso a organização do espaço trágico é muito estrita. Do mesmo modo, toda tragédia é uma espécie de totalidade, como um ovo, pleno, fechado em si mesmo: um mundo encerrado no espaço e em uma temporalidade definida. E esse mundo é justamente o de uma ficção, da imitação de alguma coisa. Aristóteles afirma que a tragédia é uma imitação dos atos humanos.

Pergunta - O senhor também vê na tragédia uma revolução psicológica?
Vernant -
Certamente. Na época, os heróis -Aquiles, Ulisses- são apresentados como modelos, enquanto no palco da tragédia representa-se sobretudo a maneira como o herói será confrontado com outros personagens e com seus próprios atos. Há um momento em que o herói se coloca a pergunta: "O que fazer?". Agamênon se interroga: "Devo ordenar o sacrifício de Ifigênia para desbloquear os ventos e imediatamente partir para vingar a honra dos gregos? Ou devo poupar minha filha amada? Nesse caso não cobrirei minhas mãos com o sangue de minha própria existência, de meu próprio sangue. Mas então a expedição de Tróia não ocorrerá, e o exército que chefio poderá me acusar de ter traído suas esperanças".
O dilema em que se encontra um personagem é o motor da ação trágica. A tragédia apresenta o homem em situação de agir, diante de uma decisão que envolve tudo; e ele vai escolher o que lhe parece melhor. Ora, ao fazer essa opção ele irá de algum modo se autodestruir. Pois seu ato -seu pequeno ato- irá assumir um sentido completamente diferente do que imaginara e se voltará contra ele, como uma espécie de bumerangue. Esse homem, que acreditava agir bem, vai aparecer como um monstro ou um criminoso. É uma ilusão acreditar que o homem é dono de seus atos, nos diz a tragédia.

Pergunta - O personagem trágico é um ser problemático?
Vernant -
Esse é o ponto importante. O homem é ainda mais problemático porque não somente tem condições de agir -ele acredita agir bem, enquanto o resultado é quase sempre uma catástrofe- como também é muito difícil decidir se ele é culpado ou inocente. Por trás da tragédia há uma pergunta geral: qual é a relação do homem com seus atos? Em que medida ele é realmente seu autor? Seu ato não é resultante de outros elementos, cuja existência ele só perceberá tarde demais? Assim sendo, ele é inocente ou culpado? O que é a culpa? O erro e a inocência não estão misturados? Por trás dos atos humanos não há dramas, crimes, queixas, lutos, já que é sempre o sangue que escorre, a cada momento, manifestando-se no próprio texto, a presença dos deuses?
A presença do que eu chamo de mundo, o universo, não é um universo simples. Ele também é ambíguo e contraditório, pois as divindades que intervêm na cena trágica também são divididas. Não se trata de condenar, trata-se de mostrar as dificuldades para compreender o que é o homem em suas relações com um universo ambíguo. A tragédia é uma forma dessa interrogação sobre o homem e o mundo, sobre o justo e o verdadeiro. Ela exprime uma profunda ambigüidade.

Pergunta - Édipo seria o exemplo mais marcante dessa ambigüidade?
Vernant -
Édipo é inocente e pior que culpado. Ele praticou uma desonra terrível, mas, quando mata seu pai, não sabe que é seu pai e está em situação de legítima defesa. Sua mãe: ele se casa com ela, dorme com ela e lhe faz filhos. Ele planta suas sementes no próprio solo de onde saiu, como diz o texto de Sófocles. Existe, portanto, o incesto. Mas Édipo não quis esse casamento e, portanto, nisso também é inocente.
Dito de outra maneira, o mesmo homem, sábio, lúcido, cheio de virtudes, que reergueu Tebas, o salvador da cidade, é, ao mesmo tempo, um monstro... E essa monstruosidade contra a qual ele nada pode é o fato de uma desonra ancestral que pesa sobre ele. Por quê? Porque Édipo nasceu quando não deveria nascer.
Seu erro é existir. Sua linhagem devia parar com ele: o oráculo Delfos advertira seu pai. Édipo é, portanto, do ponto de vista da ordem cósmica e religiosa, uma coisa que não tem um lugar próprio, e é por isso que tanta infelicidade se abate sobre ele. Édipo é, ao mesmo tempo, o policial diligente, o juiz de instrução e o culpado. É o mais virtuoso e o mais monstruoso dos homens: não podendo mais suportar o olhar do outro, só lhe resta perfurar os olhos.

Pergunta - Como definir o homem trágico?
Vernant -
O homem trágico acumula todos os sofrimentos e todos os horrores do mundo. De tal modo que o espectador é, ao mesmo tempo, tomado de terror e de piedade mas também (era a teoria de Aristóteles) esses sentimentos de terror e de piedade vão se encontrar purificados, como maus humores que expulsamos. Pelo viés da representação, com suas regras -unidade de lugar e de tempo, tensão da intriga trágica-, essa "enfermidade" humana é apresentada sob uma luz que a transforma em elementos portadores de beleza. A emoção que sentimos -o terror misturado com piedade- é purificada pela força do ritmo e da poesia.
E, como diz ainda Aristóteles, ela torna-se espetáculo trágico. Este mostra a que ponto a cadeia de acontecimentos era provável e necessária. E o fato de esse desencadeamento ser encenado para marcar a cada momento suas articulações torna-se para o espírito algo muito satisfatório. Há uma inteligibilidade do destino e da problemática trágica que nos faz sair de lá sacudidos, mas felizes: purgados.

Pergunta - Por que a tragédia nos toca tanto hoje?
Vernant -
Existe efetivamente um paradoxo quando se tenta situar a tragédia historicamente enquanto se pretende reconhecer sua validade atual. A tragédia grega inventa não apenas um espetáculo e um tipo literário mas apresenta um homem trágico: ela inventa o homem angustiado, o homem que questiona seus atos, que compreende mais tarde que fez uma coisa totalmente diferente do que acreditava fazer...
É isso que continua a ressoar em nós. Se diretores e público, incluindo os mais jovens, acorrem a esse tipo de teatro, enquanto o mundo da cultura grega se distanciou de nós, é porque a mensagem da tragédia voltou a ser inteligível.
Há momentos históricos de otimismo, como no início do século 20, em que o homem não tem necessidade de tragédia. Mas desde então o mundo ocidental se destroçou na guerra de 1914, depois na de 39-45, no nazismo e nos campos de concentração. A Alemanha, um país culto, refinado, mergulhou no impensável.
O surpreendente progresso científico e técnico que nos torna "senhores e possuidores da natureza", como queria Descartes, nos dá ao mesmo tempo a sensação de que beiramos a catástrofe a todo instante.

Pergunta - Qual é sua tragédia preferida?
Vernant -
Pergunta capciosa! "Édipo Rei", evidentemente, é maravilhosa, trabalhada subterraneamente por tantas coisas... Como se Sófocles explicitasse o que deve ser a tragédia, com seu célebre enigma -qual é o animal que tem quatro pés de manhã, dois ao meio-dia e três à tarde?- que vem encerrar o próprio enigma. Todos os animais são quadrúpedes ou bípedes: o homem é o único animal cuja natureza muda com a idade. A criança que se arrasta de quatro é diferente do adulto, de pé sobre as duas pernas, diferente do velho apoiado em uma bengala, seu terceiro pé.
Édipo é quem quer conjugar esses três momentos. Ele tem dois pés porque é adulto, quatro porque é o irmão de seus filhos, e três porque é como seu pai. É portanto um monstro, pois reúne em si os três estados que constituem a natureza extraordinária do homem. Ele volta a ser humano à força de sofrimento, e o que ele compreende é que é incompreensível. Dito isso, tenho um fraco pelas "Bacantes" de Eurípides...


Este texto foi publicado originalmente no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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