São Paulo, domingo, 10 de maio de 2009

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Ponto de Fuga

Felizes os manauaras



A força inspirada de "Sansão e Dalila", de Saint-Saëns, fez dessa ópera uma favorita do público; possui eloquência poderosa, concentrada, nobre

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O Festival Amazonas de Ópera deste ano sofreu severos cortes de verbas. "O Cid", de Massenet, "Les Dialogues des Carmelites" [Os Diálogos das Carmelitas], de Poulenc, obras raras e magníficas, foram canceladas na última hora. Pena, grande pena.
O que ficou, no entanto, é prodigioso. Luiz Malheiro, que dirige a programação e parece encarnar o espírito de Fitzcarraldo, detesta rotina. Nunca teve medo de objetivos que, para qualquer um, pareceriam abilolados. Assim, no passado, montou a tetralogia de Wagner, feito que, salvo erro, nenhum outro teatro brasileiro tentou.
Agora, contra todas as restrições, manteve no programa a ópera "Les Troyens" [Os Troianos], de Berlioz, tão monumental que apresentá-la é uma proeza em qualquer lugar do mundo: proporções gigantescas, papéis esmagadores, pletora de envolvidos e exigências cênicas exorbitantes.
O Festival comemora seu 13º ano de existência, longevidade rara nos projetos de cultura deste país, sujeitos a incertezas de toda ordem.
Malheiro elevou a orquestra a uma qualidade muito alta; o coro, antes um ponto fraco, não teme mais nenhuma comparação. Há, ainda, um corpo de baile de boa qualidade.
Tudo isso sobressaiu na apresentação recente de "Sansão e Dalila", ópera de Camille Saint-Saëns. O espetáculo pôs no chinelo o que se tem visto em tantos teatros brasileiros, mesmo nos mais prestigiosos, que andam se conformando, cada vez mais, com produções provincianas, cheirando vagamente a amadorismo.

Tucupi
A força inspirada de "Sansão e Dalila" fez dessa ópera uma favorita do público. Possui eloquência poderosa, concentrada, nobre. Sua orquestração não é apenas perfeita, é colorida, carregada de embriagado erotismo, cuja expressão atinge o apogeu nas melodias ondulantes, como que sussurradas pelo calor de brisas sopradas num Oriente de sonhos.
O personagem de Dalila se inscreve num mito feminino criado pelo século 19: o da mulher fatal.
Devoradora de homens, é o contrário da vítima frágil. Como Carmen, como Salomé, mistura volúpia e crueldade, unindo, graças à intensidade sexual que a habita, o amor físico à morte impiedosa.
Saint-Saëns escolheu a voz de mezzo-soprano, cuja sedução possui algo de pecaminoso, para expressar seu personagem. Nunca houve nada tão cheio de promessas lascivas como a ária "Mon Coeur S'Ouvre à Ta Voix" [Meu coração abre-se à tua voz], nem tão aliciador e traiçoeiro quanto "Printemps Qui Commence" [Primavera que começa].

Bacuri
O diretor de cena, Emilio Sagi, tem belo renome, internacional, e ótimas ideias para montagens.
No Teatro Amazonas, seu "Sansão e Dalila" foi um deslumbramento. Inventou uma caixa feita de painéis inclinados, forrados de espelhos: reflexos, brilhos coloridos multiplicavam-se ao infinito, criando um espaço incerto e suntuoso.
A Dalila da espanhola Nancy Fabíola Herrera avançava sobre um enorme leito de veludo vermelho, com seu canto magnético e irresistível.
Timbre caloroso, musicalidade ideal, formidável presença física: quando, ao terminar a grande ária, chegou até Sansão, hipnotizado pelo desejo, o público inteiro estava a seus pés, e não apenas o herói.

Tacacá
Bela qualidade de todos os intérpretes; coro homogêneo e arrebatador, neste "Sansão e Dalila" amazônico. O erotismo insolente do corpo de baile ultrapassou as audácias de muitos teatros de vanguarda.
Luiz Malheiro regeu a ópera com tal dosagem de matizes, com tanto sentido musical e dramático, que a música se deixava descobrir, como se fosse inteiramente nova.


jorgecoli@uol.com.br


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