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Ponto de Fuga
Felizes os manauaras
A força inspirada de "Sansão e Dalila", de Saint-Saëns, fez dessa ópera uma favorita do público; possui eloquência poderosa, concentrada, nobre
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
O Festival Amazonas de
Ópera deste ano sofreu
severos cortes de verbas. "O Cid", de Massenet, "Les
Dialogues des Carmelites" [Os
Diálogos das Carmelitas], de
Poulenc, obras raras e magníficas, foram canceladas na última hora. Pena, grande pena.
O que ficou, no entanto, é
prodigioso. Luiz Malheiro, que
dirige a programação e parece
encarnar o espírito de Fitzcarraldo, detesta rotina.
Nunca teve medo de objetivos que, para qualquer um, pareceriam abilolados. Assim, no
passado, montou a tetralogia
de Wagner, feito que, salvo erro, nenhum outro teatro brasileiro tentou.
Agora, contra todas as restrições, manteve no programa a
ópera "Les Troyens" [Os Troianos], de Berlioz, tão monumental que apresentá-la é uma
proeza em qualquer lugar do
mundo: proporções gigantescas, papéis esmagadores, pletora de envolvidos e exigências
cênicas exorbitantes.
O Festival comemora seu 13º
ano de existência, longevidade
rara nos projetos de cultura
deste país, sujeitos a incertezas
de toda ordem.
Malheiro elevou a orquestra
a uma qualidade muito alta; o
coro, antes um ponto fraco, não
teme mais nenhuma comparação. Há, ainda, um corpo de
baile de boa qualidade.
Tudo isso sobressaiu na
apresentação recente de "Sansão e Dalila", ópera de Camille
Saint-Saëns. O espetáculo pôs
no chinelo o que se tem visto
em tantos teatros brasileiros,
mesmo nos mais prestigiosos,
que andam se conformando,
cada vez mais, com produções
provincianas, cheirando vagamente a amadorismo.
Tucupi
A força inspirada de "Sansão
e Dalila" fez dessa ópera uma
favorita do público. Possui eloquência poderosa, concentrada, nobre.
Sua orquestração não é apenas perfeita, é colorida, carregada de embriagado erotismo,
cuja expressão atinge o apogeu
nas melodias ondulantes, como
que sussurradas pelo calor de
brisas sopradas num Oriente
de sonhos.
O personagem de Dalila se
inscreve num mito feminino
criado pelo século 19: o da mulher fatal.
Devoradora de homens, é o
contrário da vítima frágil. Como Carmen, como Salomé,
mistura volúpia e crueldade,
unindo, graças à intensidade
sexual que a habita, o amor físico à morte impiedosa.
Saint-Saëns escolheu a voz
de mezzo-soprano, cuja sedução possui algo de pecaminoso,
para expressar seu personagem. Nunca houve nada tão
cheio de promessas lascivas como a ária "Mon Coeur S'Ouvre
à Ta Voix" [Meu coração abre-se à tua voz], nem tão aliciador
e traiçoeiro quanto "Printemps
Qui Commence" [Primavera
que começa].
Bacuri
O diretor de cena, Emilio Sagi, tem belo renome, internacional, e ótimas ideias para
montagens.
No Teatro Amazonas, seu
"Sansão e Dalila" foi um deslumbramento. Inventou uma
caixa feita de painéis inclinados, forrados de espelhos: reflexos, brilhos coloridos multiplicavam-se ao infinito, criando
um espaço incerto e suntuoso.
A Dalila da espanhola Nancy
Fabíola Herrera avançava sobre um enorme leito de veludo
vermelho, com seu canto magnético e irresistível.
Timbre caloroso, musicalidade ideal, formidável presença
física: quando, ao terminar a
grande ária, chegou até Sansão,
hipnotizado pelo desejo, o público inteiro estava a seus pés, e
não apenas o herói.
Tacacá
Bela qualidade de todos os
intérpretes; coro homogêneo e
arrebatador, neste "Sansão e
Dalila" amazônico. O erotismo
insolente do corpo de baile ultrapassou as audácias de muitos teatros de vanguarda.
Luiz Malheiro regeu a ópera
com tal dosagem de matizes,
com tanto sentido musical e
dramático, que a música se deixava descobrir, como se fosse
inteiramente nova.
jorgecoli@uol.com.br
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