São Paulo, domingo, 10 de junho de 2001

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Idas e vindas de um tribunal

Luís Francisco Carvalho Filho
Articulista da Folha

O Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Judiciário no Brasil, não costuma merecer a atenção de pesquisadores. Não é da nossa tradição. No entanto a história do STF pode ser uma chave para a compreensão das instituições brasileiras. Só por isso, o lançamento da obra de Emília Viotti da Costa deve ser bem recebido.
Nas mãos de um punhado de homens normalmente ilustres e recrutados da elite conservadora está depositado o poder de interpretar, em última instância, o texto da Constituição. O STF estabelece contornos para o direito de propriedade, fixa parâmetros para as repressões policial e judicial, resolve conflitos entre União e Estados, preenche vazios deixados pelo Legislativo.
Suas decisões podem criar embaraços a governantes, conter ou estimular políticas públicas.
Um caso sem importância aparente, absolutamente ignorado pela mídia, envolvendo interesses de pessoas anônimas, é capaz de acentuar a eficácia ou a ineficácia de garantias individuais preciosas, como a privacidade, interferindo concretamente no cotidiano das pessoas. Seu entendimento sobre determinada questão adquire vôo próprio e se aplica nos mais distantes pontos do território.
Para dimensionar o papel desempenhado pelo STF, vale lembrar um episódio recente. Fernando Collor de Mello assumiu a Presidência e simplesmente confiscou a economia da população brasileira com a promessa de devolvê-la anos depois, entre outros decretos controvertidos. Foi uma das intervenções governamentais mais drásticas da história. O STF só iria apreciar a constitucionalidade da medida quando a decisão já era praticamente inócua... Lentidão? Razões de Estado? Governismo?
Nem sempre o valor jurídico prepondera nos julgamentos. O Supremo tem, a priori, uma feição política. Temeroso de criar impasses, é muitas vezes ambíguo, ocultando-se na tecnicalidade processual para deixar de examinar a essência de um conflito e, assim, resistir, aderir ou se omitir.
O livro de Emília Viotti da Costa relata a trajetória do tribunal, desde a criação, em 1890, até a Constituição de 1988, quando readquiriu independência formal. Um século de intercorrências políticas graves: estado de sítio, regime de exceção, arbítrio, violência, anistia. A autora lembra que o STF "é ao mesmo tempo agente e paciente dessa história".
É particularmente interessante o relato dos seus primeiros anos: o estabelecimento de uma doutrina progressista e original para o habeas corpus, a complacência do tribunal diante da perseguição de monarquistas e anarquistas, a disposição de fazer valer o chamado "preceito higiênico", ainda que pelo emprego da força, conferindo à autoridade sanitária o poder de vacinar, sanear, interditar edifícios, fiscalizar abate de animais etc. Desgostoso com a atuação do STF, o presidente Floriano Peixoto indicaria em 1893 um médico para uma de suas vagas, ato não ratificado pelo Congresso, dada a falta de saber jurídico do ministro. Curiosamente, um médico está no centro da crise interna e regimental dos dias atuais.
A obra informa que, ao longo do tempo, o Supremo garantiu liberdades, confiscou outras, cometeu pecados. Permitiu que Olga Benário, mulher de Luis Carlos Prestes, comunista, judia e grávida, fosse deportada para a Alemanha de Hitler, onde morreria num campo de concentração nazista. Confirmou a ilegalidade do Partido Comunista justamente no intervalo democrático que o país experimentava entre a Constituição de 46 e o golpe de 64.
Em algumas ocasiões, criou obstáculos para o Executivo. Noutras, deixou de apreciar ilegalidades clamorosas. Sofreu retaliações: ministros foram aposentados compulsoriamente por Getúlio e pelo regime militar.
O trabalho da historiadora traz a súmula dos principais acontecimentos políticos do país no período, a repercussão no STF e o perfil biográfico dos seus integrantes. Sua grande qualidade é o acervo de pautas de estudo que oferece, o sinal de que a instituição não interessa apenas a juristas.
O Judiciário é o menos observado dos três Poderes: seus bastidores, suas influências, suas nomeações. Pressuposto de qualquer iniciativa de reforma, a medida mais eficaz para realizar um controle efetivo de sua atuação talvez seja conhecê-lo. Mais e melhor.



Supremo Tribunal Federal e Construção da Cidadania
222 págs., R$ 65,00
de Emília Viotti da Costa. Instituto de Estudos Jurídicos e Econômicos (r. Augusta, 2.705, 3º andar, conjunto 31, CEP 01413-100, SP, tel. 0/xx/3039-7019).





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