São Paulo, domingo, 10 de junho de 2001

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+ dança

O bailarino e coreógrafo Merce Cunningham relembra seus trabalhos com John Cage nos anos 40, fala da interação entre dança e cinema e explica como o computador o ajuda a criar peças

Estações do corpo

Divulgação
Cena de "Interscape", coreografia de Merce Cunningham


Inês Bogéa
Crítica da Folha

Merce Cunningham (1919) é um dos grandes criadores da dança contemporânea. Presença marcante na cena norte-americana há cinco décadas, ele define padrões de invenção e coragem, não menos do que de apuro e rigor para a dança de experimentação.
A trajetória de Cunningham é marcada por transformações radicais na maneira de trabalhar com o movimento. Na década de 40, criou junto com John Cage (1908-92) obras em que a dança e a música seguem estruturas rítmicas comuns. Já no começo dos anos 50, assim como Cage na música, ele começa a usar estruturas aleatórias para determinar os elementos e a organização de suas coreografias (qual parte do corpo estará em movimento, em que direção, com que tipo de deslocamento, tendo qual continuidade e duração). Dali para a frente, música e dança simplesmente coincidem no tempo e no espaço, sem relação de determinação; e são raros os casos em que a música preexiste à dança.
Desde os anos 70, Cunningham abraça o vídeo e o cinema como novos parceiros. Sua colaboração com os videomakers Charles Atlas e Elliot Caplan, em particular, lhe permite ultrapassar os limites impostos pelo palco. Nos anos 90, diante de dificuldades físicas de seu próprio corpo, Cunningham passa a usar o computador como aliado, o que vai lhe permitir encontrar movimentos e deslocamentos antes inconcebíveis.
Em sua coreografia "Biped" (1999), bailarinos reais e virtuais contracenam no palco. Como ele explica nesta entrevista exclusiva para a Folha, a coreografia foi elaborada por meio de uma associação de dois programas, desenvolvidos especialmente: "Life Forms" e "Motion Capture". A cada novo trabalho, o que está em jogo são as possibilidades do movimento e uma abertura progressiva da linguagem coreográfica. Multiplicidade de pontos de vista, rejeição dos ditames da frontalidade, justaposição de elementos na cena: aos 82 anos, Cunningham continua tão inventivo e calmamente audacioso como sempre. Ressalte-se que duas coreografias mais recentes -"Interscape", de 2000, e a espetacular "Way Station", estreada há pouco no festival Cunningham no City Center, em Nova York- exalam liberdade, sem se prender às novas descobertas de "Biped".
No início da carreira, Cunningham foi um dos grandes intérpretes da coreógrafa americana Martha Graham (1894-1991). Sua própria companhia foi fundada em 1953, tendo John Cage (seu parceiro de vida) como diretor musical. Vários artistas plásticos de grande importância, como Robert Rauschenberg, Jasper Johns, Andy Warhol, Roy Lichtenstein e Charles Long, se tornariam seus colaboradores em maior ou menor grau.
O legado de Cunningham é enorme e tem influenciado vários criadores. E esse legado não parece em via de esgotar. Ele continua hoje, como sempre, à frente do seu tempo, muito à frente de todos nós.
Desde 1989 o sr. tem empregado um programa de computador, "Life Forms" (Formas de Vida), para a criação de coreografias. Como funciona, exatamente? Como os movimentos passam para os bailarinos?
"Life Forms" é um computador para dança. Tem três telas: na primeira (o "editor de figuras") pode-se projetar uma forma, como uma forma humana. A segunda (a "linha do tempo") é empregada para fazer a figura se mover no tempo. Uma vez desenhada a figura na primeira tela, a "linha do tempo" pode ser ativada nas mais diversas durações, até que se chegue a uma segunda figura, que então será também fixada na memória. Estamos, então, com duas formas corporais diferentes, e o computador vai passar da primeira para a segunda, compondo uma pequena sequência de movimento. Pode-se ir somando frases coreográficas assim e guardá-las depois na memória do computador, para uso futuro. Os movimentos podem ser simples e familiares ou complexos e insólitos, dependendo de como o coreógrafo empregar o programa. Só mais tarde eu passo os movimentos para os bailarinos, seja lembrando deles e os dançando eu mesmo ou, se forem muito complicados, fazendo pequenos esboços, para ajudar. Naturalmente nessa passagem é preciso levar em conta as qualidades e habilidades físicas de cada bailarino.
Em "Biped" o sr. trabalhou com outro programa, o "Motion Capture" (Aprisionamento do Movimento). Qual a diferença entre os dois?
"Biped" envolveu dois tipos diversos de imagem computacional, "Life Forms" e "Motion Capture". Há um bom número de diferenças entre os dois, complicadas demais para explicar aqui. A que mais importa é a seguinte: com "Life Forms" eu ponho o movimento no "editor de figuras". O movimento vem de mim, mas vai diretamente para o computador. Já com o "Motion Capture" os movimentos são coreografados longe da máquina e só depois é que o computador entra em jogo, para trabalhá-los de várias maneiras. Seu trabalho sempre teve um caráter interdisciplinar. Existe nas suas obras algum ponto para o qual convergem todas essas artes?
O importante, no meu trabalho, sempre foi manter as três artes -dança, música e cenografia- separadas, para que cada uma pudesse ser um elemento independente. Quando as três são reunidas, podem se combinar de um modo tal que nenhum dos artistas, sozinho, poderia ter imaginado.
Recentemente, durante um festival de suas obras em Nova York, foi apresentada "Interscape", com música de Cage e cenários-figurinos de Robert Rauschenberg. Como se dá a relação entre dança e música nessa peça composta com Cage, mas sem Cage?
"Interscape" é uma continuação da forma como Rauschenberg, Cage e eu trabalhávamos cada um independente dos outros. A música de Cage é para 108 instrumentistas (quando possível) e um violoncelo solo. Pode ser tocada só pela orquestra ou só pelo solista -ou pelos dois juntos. São duas peças, na verdade, duas das últimas composições de Cage baseadas em números.
O que o sr. pode nos dizer sobre "Way Station", que estreou recentemente?
"Way Station" é uma peça para a companhia completa, com música de Takehisa Kosugi, cenário de Charles Long e figurinos de James Hall. O cenário é composto por várias esculturas grandes, espalhadas pelo palco. Os bailarinos passam por baixo delas.
Operações do acaso e filosofia zen eram dois de seus interesses reconhecidos no passado. Até que ponto eles ainda têm importância na sua produção?
Meu trabalho continua, sim, envolvendo operações do acaso. A maior parte das coreografias ainda é elaborada desse modo.
Como os bailarinos ensaiam as suas peças? Tendo em vista a natureza temporal particular do seu trabalho, existe algum método especial de treinamento para eles?
O treinamento dos bailarinos não deixa, a seu modo, de ser o convencional. Uma aula de técnica todas as manhãs, seguida de várias horas de ensaio à tarde. A técnica, propriamente, é de minha invenção e tem por objetivo desenvolver força, flexibilidade e resistência ao lidar com os movimentos.
O senhor pode explicar sucintamente o trabalho da Fundação Cunningham?
Na fundação são oferecidas aulas de técnica, laboratórios de repertório, criação e pedagogia e também de reflexão sobre o que essa técnica implica. Há ainda um arquivo, organizado e dirigido por David Vaughan. A Fundação Cunningham de Dança foi organizada para que o trabalho em que estamos envolvidos possa ter continuidade.


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