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Ponto de fuga
Fácil e difícil
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Há obras de acesso árduo justamente porque são sedutoras e
subjugam no ato. Essa atração
imediata tem cheiro de enxofre
para espíritos que se querem intelectuais.
Duas coisas concorrem para isso. De um lado, o esnobismo; de outro, a valorização do
ascetismo e da austeridade. Ou seja, de um
lado a moda, de outro, a missa.
Proust explorou, com constância, as variações de gosto no tempo, os modismos
em arte e as opiniões afetadas. Assinala o
desprezo por Chopin, manifestado nos círculos de amadores wagnerianos, que se estendera para um público amplo. Depois de
uma estupenda descrição art nouveau
("acariciar as frases de colo sinuoso e desmedido, criadas por Chopin, tão livres, tão
flexíveis, tão táteis"), ele atesta, com melancolia: "Mas hoje a beleza fora de moda dessa música parecia desgastada. Privada, há
alguns anos, da estima dos conhecedores,
ela tinha perdido sua honra e seu encanto".
O ascetismo do gozo é outra coisa. Trata-se de uma disciplina interior que desconfia
das seduções. Funciona como um alerta: se
algo é fácil demais, não é digno de meu prazer. Ao contrário, o dificultoso, por esse
exato motivo, tem todo o direito à plena veneração. Já faz tempo, a Osesp [Orquestra
Sinfônica do Estado de São Paulo] teve sala
lotada e triunfo merecido com a apresentação do "Pierrot Lunaire", de Schoenberg.
No público, muita gente intelectual e sofisticada que não se abalaria para ir ouvir a
"Patética" de Tchaikovski ou o admirável
concerto para piano de Grieg. Muitos, é
bem possível, sequer freqüentavam com
regularidade concertos sinfônicos. E, é provável, uma boa parte que jamais cairia na
esparrela de ir a um teatro para assistir à
"La Bohème", de Puccini. Porque é música
fácil e, portanto, de mau gosto.
Civetta
Que o "Pierrot Lunaire" seja grande obra,
não se duvida. Isso, porém, não quer dizer
que "La Bohème" seja menor: sintaxe musical intrincada; desenhos melódicos nascendo das palavras que se dilatam, plásticas; idéias musicais que se atraem e se repelem em tangentes inesperadas; reflexos sonoros sugestivos, orquestração soberba na
qual os timbres se exaltam uns aos outros.
Puccini foi vítima dos preconceitos devidos
à sua imensa popularidade, em conseqüência do bom adágio esnobe: "Se é para todos,
não é para mim".
É verdade que as coisas mudaram bastante, desde dez ou 20 anos, e uma inflexão nas
análises atuais mais sérias percebe o músico de Torre del Lago como um compositor
tão alto quanto os maiores. Talvez essa opinião se amplie, atingindo mesmo, no futuro, quem sabe, austeros e esnobes. É fato
que a adesão visceral, imediata, que uma
"La Bohème" impõe a seus ouvintes, cria
um véu à espessura que ela possui. Puccini
traz as angústias humanas para uma imanência que não escapa nem para o consolo
divino nem para a grandeza heróica. A ternura que investe em seus personagens mais
frágeis e desventurados não é apenas sentimentalismo lacrimejante. É, mais que isso,
a invenção de um novo páthos, de uma angústia baseada na fugacidade de uma juventude que conhece a experiência da dor.
Touca
Em Curitiba, o teatro Guaíra, grande, cômodo, de boa acústica, que há anos não
apresentava uma ópera, montou agora "La
Bohème", de Puccini. É uma retomada
com meios modestos. Os cantores são jovens: entre eles se destaca o barítono Douglas Hahn. Os cenários foram concebidos
com leveza e eficácia por Giacomo Agosti; a
concepção da cena, que parte de boas
idéias, perde-se ao dirigir os personagens e
movimentos das massas. Mas não importa.
Em colaboração com o conservatório da cidadezinha italiana de Adria, a produção
demonstrou entusiasmo, convicção, fervor, que vencem seus próprios limites.
Traduttore, traditore
Legendas incorporam, já há bom tempo,
as apresentações de óperas: elas permitem
ao público de se inteirar da ação, com detalhes, participando melhor. As que acompanhavam "La Bohème" de Curitiba, no entanto, demonstraram falta de algumas exigências básicas: 1) algum conhecimento de
italiano; 2) algum conhecimento de português; 3) uma certa idéia do que está ocorrendo no palco.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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