São Paulo, domingo, 10 de julho de 2005

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Ponto de fuga

Fácil e difícil

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Há obras de acesso árduo justamente porque são sedutoras e subjugam no ato. Essa atração imediata tem cheiro de enxofre para espíritos que se querem intelectuais. Duas coisas concorrem para isso. De um lado, o esnobismo; de outro, a valorização do ascetismo e da austeridade. Ou seja, de um lado a moda, de outro, a missa.
Proust explorou, com constância, as variações de gosto no tempo, os modismos em arte e as opiniões afetadas. Assinala o desprezo por Chopin, manifestado nos círculos de amadores wagnerianos, que se estendera para um público amplo. Depois de uma estupenda descrição art nouveau ("acariciar as frases de colo sinuoso e desmedido, criadas por Chopin, tão livres, tão flexíveis, tão táteis"), ele atesta, com melancolia: "Mas hoje a beleza fora de moda dessa música parecia desgastada. Privada, há alguns anos, da estima dos conhecedores, ela tinha perdido sua honra e seu encanto".
O ascetismo do gozo é outra coisa. Trata-se de uma disciplina interior que desconfia das seduções. Funciona como um alerta: se algo é fácil demais, não é digno de meu prazer. Ao contrário, o dificultoso, por esse exato motivo, tem todo o direito à plena veneração. Já faz tempo, a Osesp [Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo] teve sala lotada e triunfo merecido com a apresentação do "Pierrot Lunaire", de Schoenberg. No público, muita gente intelectual e sofisticada que não se abalaria para ir ouvir a "Patética" de Tchaikovski ou o admirável concerto para piano de Grieg. Muitos, é bem possível, sequer freqüentavam com regularidade concertos sinfônicos. E, é provável, uma boa parte que jamais cairia na esparrela de ir a um teatro para assistir à "La Bohème", de Puccini. Porque é música fácil e, portanto, de mau gosto.

Civetta
Que o "Pierrot Lunaire" seja grande obra, não se duvida. Isso, porém, não quer dizer que "La Bohème" seja menor: sintaxe musical intrincada; desenhos melódicos nascendo das palavras que se dilatam, plásticas; idéias musicais que se atraem e se repelem em tangentes inesperadas; reflexos sonoros sugestivos, orquestração soberba na qual os timbres se exaltam uns aos outros. Puccini foi vítima dos preconceitos devidos à sua imensa popularidade, em conseqüência do bom adágio esnobe: "Se é para todos, não é para mim".
É verdade que as coisas mudaram bastante, desde dez ou 20 anos, e uma inflexão nas análises atuais mais sérias percebe o músico de Torre del Lago como um compositor tão alto quanto os maiores. Talvez essa opinião se amplie, atingindo mesmo, no futuro, quem sabe, austeros e esnobes. É fato que a adesão visceral, imediata, que uma "La Bohème" impõe a seus ouvintes, cria um véu à espessura que ela possui. Puccini traz as angústias humanas para uma imanência que não escapa nem para o consolo divino nem para a grandeza heróica. A ternura que investe em seus personagens mais frágeis e desventurados não é apenas sentimentalismo lacrimejante. É, mais que isso, a invenção de um novo páthos, de uma angústia baseada na fugacidade de uma juventude que conhece a experiência da dor.

Touca
Em Curitiba, o teatro Guaíra, grande, cômodo, de boa acústica, que há anos não apresentava uma ópera, montou agora "La Bohème", de Puccini. É uma retomada com meios modestos. Os cantores são jovens: entre eles se destaca o barítono Douglas Hahn. Os cenários foram concebidos com leveza e eficácia por Giacomo Agosti; a concepção da cena, que parte de boas idéias, perde-se ao dirigir os personagens e movimentos das massas. Mas não importa. Em colaboração com o conservatório da cidadezinha italiana de Adria, a produção demonstrou entusiasmo, convicção, fervor, que vencem seus próprios limites.

Traduttore, traditore
Legendas incorporam, já há bom tempo, as apresentações de óperas: elas permitem ao público de se inteirar da ação, com detalhes, participando melhor. As que acompanhavam "La Bohème" de Curitiba, no entanto, demonstraram falta de algumas exigências básicas: 1) algum conhecimento de italiano; 2) algum conhecimento de português; 3) uma certa idéia do que está ocorrendo no palco.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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