São Paulo, domingo, 10 de julho de 2005

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UMA BREVE BIOGRAFIA DE WILLIAM FAULKNER, UM ESCRITOR DESCONFIADO DA MODERNIDADE E, AO MESMO TEMPO, O MAIS RADICAL INOVADOR DE SUA GERAÇÃO, QUE DIZIA TER A "AMBIÇÃO DE SER ABOLIDO E APAGADO DA HISTÓRIA, SEM DEIXAR MARCAS"

Um indivíduo em negativo

Só agora me dou conta, pela primeira vez", escreveu William Faulkner a uma amiga, olhando para trás do mirante de seus 50 e tantos anos, "do dom que eu tinha: fazer as coisas que fiz sem nenhuma educação formal, entre amigos de poucas letras, que dirá letrados. Não sei de onde veio tudo isso. Não sei por que Deus ou os deuses ou seja lá o que for me escolheu para seu veículo".
A descrença que Faulkner apregoa é um tanto dissimulada. Possuía toda a formação e mesmo a erudição de que precisava para ser o tipo de escritor que queria ser. Quanto à companhia, tinha mais a ganhar com velhotes falastrões, de mãos retorcidas e longas memórias, do que com literatos estéreis. Ainda assim, algum grau de espanto é cabível. Quem teria imaginado que um rapaz de pouco brilho intelectual do interior do Mississippi viria a se tornar não apenas um escritor famoso, célebre em seu país e no exterior, mas ainda o tipo de escritor que ele de fato veio a ser: o mais radical inovador nos anais da ficção norte-americana, um escritor que a vanguarda da Europa e da América Latina viria estudar?
É bem verdade que Faulkner tinha pouquíssima educação formal. Abandonou o curso secundário no primeiro ano (sem que os pais fizessem grande alarde) e só freqüentou brevemente a Universidade do Mississippi por obra de uma concessão feita aos soldados de retorno da guerra. Seu boletim é modesto: um semestre de inglês (nota D), dois semestres de francês e espanhol. Esse explorador do espírito sulista pós-Guerra de Secessão [1861-65] não freqüentou nenhum curso de história; o romancista que entrelaçou o tempo bergsoniano à sintaxe da memória não fez nenhum estudo de filosofia ou psicologia.
Em vez dos estudos, o sonhador Billy Faulkner dedicou-se a uma leitura intensa, apesar de estreita, da poesia inglesa "fin-de-siècle", notadamente Swinburne e Housman, e de três romancistas que haviam gestado mundos ficcionais tão vivos e coerentes a ponto de tomarem o lugar do mundo real: Balzac, Dickens e Conrad. Acrescente-se a isso uma familiaridade com as cadências do Velho Testamento, de Shakespeare e de "Moby Dick" e ainda, alguns anos mais tarde, um rápido exame do que andavam fazendo seus contemporâneos um pouco mais velhos, T. S. Eliot [1888-1965] e James Joyce [1882-1941], e Faulkner estava armado. Quanto à matéria, o que podia ouvir à sua volta em Oxford (Mississippi) provou ser mais que suficiente: a epopéia do sul, contada e recontada infinitamente, uma história de crueldade e injustiça e esperança e decepção e vitimização e resistência.

Circo voador
Billy Faulkner mal deixara a escola quando a Primeira Guerra Mundial irrompeu. Cativado pela idéia de se tornar piloto e conduzir escaramuças aéreas contra os hunos, ele se alistou em 1918 na Royal Air Force. Sôfrega de material humano, a RAF mandou-o para treinamento no Canadá. Contudo, antes que pudesse fazer seu primeiro vôo solo, a guerra chegou ao fim.
Retornou a Oxford trajando um uniforme de oficial da RAF, ostentando um sotaque britânico e mancando de uma perna, conseqüência, segundo ele, de um acidente aéreo. Aos amigos, confidenciou ainda que tinha uma chapa de aço implantada no crânio.
Manteve a lenda do aviador por anos a fio e só começou a atenuá-la quando se tornou uma figura nacional e o risco de ser pego em flagrante pareceu avultar. Mas não abandonou os sonhos de voar. Tão-logo teve algum dinheiro de sobra, em 1933, tomou lições de pilotagem, comprou seu próprio avião e tocou por algum tempo um espetáculo aéreo; o anúncio rezava: "Circo voador de William Faulkner (o famoso escritor)".
Os biógrafos de Faulkner deram enorme importância a suas histórias de guerra, tratando-as como mais que invencionices de um rapaz franzino e apagado, ansioso por admiração. Frederick R. Karl [autor de "William Faulkner - American Writer" (William Faulkner - Escritor Americano), ed. Grove Press] acredita que "a guerra fez de Faulkner um contador de histórias, um ficcionista, no que talvez tenha sido a virada decisiva em sua vida". Segundo Karl, a facilidade com que ludibriou a boa gente de Oxford mostrou a Faulkner que, urdida com cuidado e contada persuasivamente, a mentira leva a melhor sobre a verdade -e que, portanto, é possível ganhar a vida à base de fantasia.
De volta para casa, Faulkner viveu à deriva. Escreveu poemas sobre mulheres "epicenas" (provavelmente referindo-se a mulheres de ancas estreitas) e sobre seus anseios não-correspondidos -poemas que nem mesmo a maior boa-vontade poderia chamar de "promissores"; começou a assinar "Faulkner", e não "Falkner", como nascera; e, seguindo o padrão masculino dos Falkner, bebia à beça. Por alguns anos, até ser despedido por incompetência, teve uma sinecura como chefe de uma pequena agência de correio, onde usava as horas de trabalho para ler e escrever.


É estranho que, em vez de fazer as malas e partir rumo às luzes brilhantes da metrópole, ele tenha decidido permanecer na cidade natal, onde suas pretensões eram objeto de riso sardônico

Para alguém tão determinado a seguir suas próprias inclinações, é estranho que, em vez de fazer as malas e partir rumo às luzes brilhantes da metrópole, ele tenha decidido permanecer na cidade natal, onde suas pretensões eram objeto de riso sardônico. Para Jay Parini, seu biógrafo mais recente [autor de "One Matchless Time - A Life of William Faulkner" (Um Tempo sem Igual - Uma Vida de William Faulkner), ed. Harper], teria sido difícil para Faulkner ficar longe de sua mãe, mulher de alguma sensibilidade que parece ter tido uma relação mais profunda com o filho mais velho do que com o marido fraco e obtuso.
Durante suas escapadelas para Nova Orleans, Faulkner criou um círculo de amigos boêmios e conheceu Sherwood Anderson, o analista de "Winesburg, Ohio", cuja influência ele se esforçou por minimizar mais tarde. Começou a publicar pequenos textos na imprensa de Nova Orleans; chegou a se enfronhar em teoria literária. Impressionou-se especialmente com Willard Huntington Wright, discípulo de Walter Pater. No livro "A Vontade Criadora", de Wright, pôde ler que o verdadeiro artista é solitário por natureza, "um deus onipotente que molda e conforma o destino de um novo mundo e o conduz a uma consumação inevitável, quando então este se desprende, autônomo e independente", deixando seu criador num estado de exaltação espiritual. O modelo desse artista-demiurgo, segundo Wright, é Honoré de Balzac, muito superior a Émile Zola, mero copista da realidade preexistente.
Em 1925, Faulkner viajou pela primeira vez ao exterior. Passou dois meses em Paris e gostou: comprou uma boina, deixou crescer a barba, começou a trabalhar num romance -logo abandonado- sobre um pintor ferido na guerra que vai a Paris para se dedicar à arte. Rondava o café preferido de Joyce, onde viu de relance o grande homem, sem contudo abordá-lo.
Feitas as contas, nada sugere muito mais que um aspirante a escritor de pertinácia acima da média, mas nenhum dote à altura. Todavia, após seu retorno aos Estados Unidos, sentou-se para escrever um esboço de 14 mil palavras, transbordante de idéias e personagens, que viria a constituir as fundações de seus grandes romances de 1929 a 1942. O manuscrito continha, em embrião, o condado de Yoknapatawpha.

O casamento, pior que infeliz
Quando criança, Faulkner fora inseparável de uma amiga ligeiramente mais velha, Estelle Oldham. Os dois eram, de um modo ou de outro, prometidos. Quando chegou a hora, porém, os Oldham, insatisfeitos com aquele rapaz inquieto, deram a mão de Estelle a um advogado de perspectivas mais prósperas. Quando voltou à casa dos pais, Estelle era uma mulher de 32 anos, divorciada e com dois filhos pequenos.
Faulkner parece ter hesitado em retomar o relacionamento. "É uma situação que eu engendrei e deixei amadurecer, mas que se tornou insuportável", confidenciou numa carta. Mas a honra proibia que recuasse, de modo que ele e Estelle se casaram.
Estelle deve ter nutrido suas próprias dúvidas. É possível que tenha tentado se afogar durante a lua-de-mel. O matrimônio mostrou-se infeliz, pior que infeliz. "Eles eram simplesmente incompatíveis", conforme sua filha, Jill, contou a Parini. "Nada funcionava naquele casamento." Estelle era uma mulher inteligente, mas estava acostumada a gastar dinheiro sem peias e a ter criados que cuidassem de suas vontades. Viver numa velha casa caindo aos pedaços, com um marido que passava as manhãs escrevinhando e as tardes trocando tábuas podres e instalando canos deve ter sido um choque. Tiveram um filho, que morreu em duas semanas. Jill nasceu em 1933. Depois disso, as relações sexuais entre os Faulkner parecem ter cessado.
Juntos ou a sós, William e Estelle bebiam desmedidamente. Já na meia-idade, Estelle parece ter puxado o freio e largado a bebida, coisa que William nunca fez. Ele teve casos com mulheres mais jovens, mas era incapaz ou descuidado demais para ocultá-los; aos poucos, o casamento descambou das cenas de ciúme para uma "guerra de guerrilha doméstica, sem começo nem fim", como disse Joseph Blotner, primeiro biógrafo de Faulkner [autor de "Faulkner - A Biography" (Faulkner - Uma Biografia), ed.University Press of Mississippi].
Fosse como fosse, o casamento durou 33 anos, até a morte de Faulkner, em 1962. Por quê? Segundo a explicação mais mundana, o fato é que, até meados da década de 50, Faulkner não tinha como pagar um divórcio: não bastassem as tropas de Falkners e Oldhams que dependiam de seus ganhos, ele teria de sustentar Estelle e as três crianças no estilo que ela exigisse, além de se restabelecer decentemente na sociedade. Seria mais difícil demonstrar, como afirma Karl, que Faulkner precisava de Estelle em algum nível profundo: "Não havia como desentranhar Estelle dos cantos mais recônditos da imaginação de Faulkner. Sem Estelle, ele não teria continuado a escrever". Ela era a sua "belle dame sans merci", um "objeto ideal que o homem adora à distância mas que se mostra igualmente destrutivo".

Roteiros e histórias populares
Optando por se casar com Estelle, optando por estabelecer seu lar em Oxford, em meio ao clã Falkner, William Faulkner assumiu um desafio formidável: ser patrono, arrimo e "paterfamilias" do que ele próprio chamava de "uma tribo inteira, espreitando como aves de rapina cada centavo que eu ganho", e ao mesmo tempo servir a seu demônio interior. Apesar de sua capacidade apolínea de imergir no trabalho -"um monstro de eficiência", segundo Parini-, a empresa era extenuante. A fim de alimentar as aves de rapina, o único gênio inequívoco da literatura norte-americana dos anos 30 teve que pôr de lado o que mais lhe importava -os romances-, desovar histórias para revistas populares e, mais tarde, escrever roteiros para Hollywood.
O problema não estava na incompreensão do mundo das letras, mas sim na falta de lugar, no ambiente econômico dos anos 30, para a profissão de romancista de vanguarda (hoje em dia, Faulkner seria candidato natural a uma bolsa polpuda). Os editores e agentes de Faulkner (com uma infeliz exceção) tomaram a peito os interesses do autor e fizeram o que podiam -mas isso não bastava. Foi apenas com a publicação de "The Portable Faulkner" [O Faulkner Portátil], uma seleta habilmente compilada por Malcolm Cowley em 1945, que os leitores norte-americanos acordaram para o que tinham diante do nariz.
O tempo gasto com as histórias populares não foi inteiramente em vão. Faulkner era um revisor extraordinariamente tenaz de seu próprio trabalho (em Hollywood, causou impressão por sua habilidade de consertar roteiros imprestáveis de outros autores). Revisitado e reconcebido e retrabalhado, o material que viera a público no "Saturday Evening Post" ou no "Woman's Home Companion" ressurgiu, metamorfoseado, em "Os Invencidos" (1938), "O Povoado" (1940) e "Desça, Moisés" (1942), livros a meio caminho entre a antologia de contos e o romance propriamente dito.
Não se adivinha o mesmo potencial latente nos roteiros que escreveu. Em 1932, quando chegou a Hollywood desfrutando de uma celebridade passageira como autor de "Santuário" (1931), não sabia nada sobre a indústria (na vida privada, desdenhava o cinema na mesma medida que não gostava de música ruidosa). Não tinha o menor dom para criar diálogos vivazes e cedo ganhou a reputação de ser um beberrão nada confiável. De US$ 1.000 por semana, caíra em 1942 para meros US$ 300. Ao longo de uma carreira de 13 anos, trabalhou com diretores sensíveis a seu mérito, como Howard Hawks, fez amizade com atores célebres como Clark Gable e Humphrey Bogart, arranjou uma amante bonita e atenciosa; mas nada do que escreveu para as telas provou ser digno de resgate.
Pior ainda: escrever roteiros fez mal a sua prosa. Durante os anos de guerra, Faulkner trabalhou numa série de roteiros de natureza propagandística, edificante e patriótica. Não seria justo atribuir a esses projetos toda a culpa pela retórica inflada que marca sua prosa tardia, mas o próprio Faulkner veio a reconhecer o mal que Hollywood lhe fizera. "Mais recentemente, percebi quanto lixo e porcaria os roteiros trouxeram para a minha escrita", ele admitiu em 1947.

Poeta, pai de família
Não há nada de singular na luta de Faulkner por fechar as contas. Desde o início, concebeu-se como um "poète maudit", e ser treslido e mal-pago é parte do destino de todo "poète maudit". Mas o que impressiona é que Faulkner tenha carregado com tanta pertinácia os muitos fardos que assumiu -a vida dispendiosa, os parentes perdulários, os péssimos contratos com os estúdios-, mesmo à custa de sua arte. A lealdade é um tema igualmente central na vida e na arte de Faulkner, mas devemos lembrar que existe uma fidelidade e uma lealdade desvairadas (como, aliás, se viu fartamente no sul confederado).
De fato, Faulkner passou a meia-idade à maneira de um trabalhador itinerante, enviando o salário para casa pelo correio; o registro biográfico relativo a esses anos é, em boa medida, um registro de dólares e centavos. Parini discerniu algo de amalucado nas preocupações monetárias de Faulkner: "O dinheiro poucas vezes é apenas dinheiro. A obsessão com o dinheiro que parece perseguir Faulkner ao longo da vida deve ser entendida, a meu ver, como marcador de sua sensação oscilante de estabilidade, valor, influência [...], como índice da própria reputação, poder, vitalidade".
Um lugar de escritor-residente no campus tranqüilo de uma universidade sulista poderia ter sido a salvação de William Faulkner, proporcionando a renda fixa sem pedir muito em troca e dando-lhe tempo para trabalhar. Desde 1917, um Robert Frost bastante astucioso vinha mostrando como usar a aura de bardo a fim de garantir sinecuras acadêmicas. Todavia sem ter mesmo um diploma secundário e desconfiado de conversas "literárias" ou "intelectuais" demais, Faulkner não tornou a pôr os pés no mundo acadêmico até 1946, quando foi convencido para uma palestra na Universidade do Mississippi. A experiência não foi tão ruim quanto ele temia; à idade de 60, por um salário mais ou menos nominal, Faulkner entrou para a Universidade da Virgínia como escritor-residente, posto que ocupou até a morte.
Uma das ironias da vida desse moleirão acadêmico é que ele provavelmente lera mais -ainda que menos sistematicamente- do que a maioria dos professores universitários. Em Hollywood, segundo o ator Anthony Quinn, ele podia não ser um grande roteirista, "mas tinha uma tremenda reputação de intelectual". Outra ironia consiste em Faulkner ter sido adotado pelos "New Critics" como um autor cuja prosa devia ser indicada a estudantes universitários como matéria de dissecção. Cleanth Brooks, decano do "New Criticism", recorda que Faulkner "era perfeito para a sala de aula [...] havia tanta coisa a desdobrar, tanta coisa que o autor havia cuidadosa e engenhosamente dobrado". Assim, Faulkner tornou-se o queridinho dos formalistas de New Haven como antes se tornara o queridinho dos existencialistas franceses, sem saber muito bem o que vinham a ser formalismo e existencialismo.

Questão racial
O Prêmio Nobel de Literatura, concedido em 1949 e entregue em 1950, fez a fama de Faulkner mesmo nos Estados Unidos. Turistas vinham de longe espiar sua casa em Oxford, para enorme irritação do autor. Com relutância, Faulkner emergiu das sombras e começou a se comportar como figura pública. Recebia convites do Departamento de Estado para viajar como embaixador cultural, função que aceitou com alguma hesitação. Nervoso diante do microfone, mais nervoso ao enfrentar perguntas "literárias", ele se preparava para os encontros bebendo à solta.
Mas tão-logo aprendeu a lidar com jornalistas, passou a se sentir mais confortável no novo papel. Não sabia grande coisa de política exterior -não lia jornais-, o que de resto convinha ao Departamento de Estado. Sua visita ao Japão foi um notável sucesso de relações públicas; na França e na Itália, recebeu enorme atenção da imprensa. Como observou sardonicamente: "Se me dessem atenção nos Estados Unidos do jeito que me dão no exterior, acho que eu até poderia lançar um dos meus personagens para presidente... quem sabe Flem Snopes [de "O Povoado", "A Mansão" e "A Cidade']".
As intervenções domésticas causaram menos efeito. A pressão aumentava num sul de instituições segregadas. Em cartas a jornais, Faulkner começou a se manifestar contra abusos raciais e a exortar seus conterrâneos a aceitar o negro em pé de igualdade social.
A resposta não tardou. O "Willie Faulkner chorão" foi denunciado como joguete dos liberais nortistas ou simpatizante comunista. Mesmo que jamais tenha enfrentado ameaças físicas, anteviu o dia em que teria que fugir do sul "como os judeus tiveram que fugir da Alemanha de Hitler", conforme confidenciou a um amigo sueco.
É claro que estava exagerando. Nunca foi radical em matéria de raça, e à medida que a atmosfera política tocava na questão da autonomia dos Estados, suas opiniões se tornaram confusas. A segregação era um mal, declarou ele, que entretanto se disse pronto a resistir, caso o sul fosse coagido à integração num momento estouvado, chegou a dizer que pegaria em armas. No final da década de 50, sua posição era a tal ponto anacrônica que parecia exótica. A seu ver, a campanha pelos direitos civis devia adotar por lema as palavras "decência", "tranqüilidade", "cortesia" e "dignidade"; e o negro devia aprender a merecer a igualdade.
Seria fácil fazer pouco das investidas de Faulkner no terreno das relações raciais. Em sua vida privada, parece ter tratado os afro-americanos com generosidade e gentileza mas também, inevitavelmente, com paternalismo: pertencia, afinal de contas, à classe dos patrões. Sua filosofia política era uma versão pessoal do individualismo jeffersoniano; era isso, mais do que qualquer resíduo de racismo, que o fazia desconfiar do movimento negro. Tais escrúpulos e hesitações logo o tornaram irrelevante para a luta pelos direitos civis, mas sua coragem em tomar partido não merece ser esquecida. Suas declarações públicas fizeram dele um pária em sua cidade natal e tiveram parte na decisão de deixar o Mississippi e mudar-se para a Virgínia em 1960, após a morte da mãe. (Por outro lado, deve-se dizer que a perspectiva de tomar parte nas caçadas do condado de Albermarle deve ter sido um atrativo poderoso: em seus últimos anos, sentindo-se esgotado como escritor, Faulkner fez da caça à raposa a nova paixão de sua vida.)
As intervenções políticas de Faulkner caíam no vazio não porque fosse um desavisado, mas sim porque o veículo por excelência de suas intuições políticas não era o ensaio, muito menos a carta aos jornais, mas o romance ou, mais especificamente, o tipo de romance que ele inventou, com seus inimitáveis instrumentos retóricos para tecer o passado ao presente, a memória ao desejo.

O sul
O território em que Faulkner, o romancista, fez o melhor de seus recursos foi um sul que guarda muita semelhança com o sul real de seus dias -ou pelo menos de sua juventude-, mas que não é todo o sul. O sul de Faulkner é uma terra de brancos obsedados por presenças negras. Mesmo em "Luz de Agosto", livro onde trata mais a raça e o racismo, o centro não é ocupado por um negro, mas por um homem cujo destino é confrontar a raça negra como um desafio, uma acusação lançada a seu rosto.
Como historiador do sul moderno, a realização mais duradoura de Faulkner é a trilogia Snopes ("O Povoado", 1940; "A Cidade", 1957; "A Mansão", 1957), na qual narra como uma classe ascendente de brancos pobres conquista o poder por meio de uma revolução tão silenciosa, implacável e amoral quanto uma invasão de formigas. Sua crônica da ascensão do plebeu empreendedor é a um só tempo mordaz, elegíaca e desesperada: mordaz, pois Faulkner sente tanto ódio como fascínio pelo que está vendo; elegíaca, pois Faulkner ama o velho mundo que está se desfazendo diante de seus olhos; e desesperada por muitas razões. Em primeiro lugar, ele sabe melhor do que ninguém que o seu sul tão amado foi construído a partir dos crimes concomitantes da expropriação e do escravismo; em segundo lugar, sabe também que os Snopes são apenas mais um avatar dos Falkner, ladrões e estupradores de outrora; e, portanto, sabe que o crítico e juiz William "Faulkner" não tem as credenciais necessárias.
"Coragem, honra e orgulho"- a essa litania, Ike [personagem de "Desça, Moisés"] talvez tivesse acrescentado a "persistência", no conto que protagoniza: "Persistência [...] e piedade e tolerância e clemência e fidelidade e amor às crianças [...]". Há um veio fortemente moralista nas últimas obras de Faulkner, um humanismo cristão despojado, mas endossado com teimosia num mundo do qual Deus se retirou. Quando esse moralismo se mostra pouco convincente, como muitas vezes se dá, isso acontece porque Faulkner não soube encontrar o seu melhor veículo ficcional.
As frustrações por que passou ao conceber "Uma Fábula" (escrita entre 1944 e 1953, publicada em 1954), que devia ser seu "magnum opus", derivam justamente da procura por um modo de encarnar o tema antibelicista. A figura exemplar de "Uma Fábula" é um Jesus reencarnado e re-sacrificado na figura de um soldado desconhecido, papel desempenhado, em outros momentos da fase final, por um negro simplório e sofrido ou, mais freqüentemente, por uma negra que, suportando o presente insuportável, mantém vivo um germe de futuro.

Biografias
Considerando-se que foi homem de vida em larga medida pacata e sedentária, William Faulkner tem suscitado prodigiosos esforços biográficos. O primeiro monumento foi erigido em 1974 por Joseph Blotner, colega mais jovem de Faulkner na Universidade da Virgínia que contava com seu evidente apreço e confiança e cuja biografia em dois volumes apresenta com cuidado e justiça os contornos exteriores da vida exterior de Faulkner. Mas mesmo a edição condensada de 1984 talvez seja demasiado rica em detalhes para a maior parte do público.
O catatau de Frederick R. Karl (1989) visava "compreender e interpretar a vida [de Faulkner] em termos psicológicos, sentimentais e literários". Há muito de admirável no livro de Karl, inclusive investigações corajosas na labirinto dos hábitos de composição de Faulkner, que trabalhava em vários projetos ao mesmo tempo e transplantava material de uns para outros.
Como Karl observa com razão, Faulkner é "o mais histórico dos grandes escritores norte-americanos". Ele trata Faulkner como um homem norte-americano reagindo em termos criativos às forças históricas e sociais que o enredavam. Nessa que é uma biografia "literária", Karl procura entender como um homem tão desconfiado da modernização e de seu impacto no sul pôde ser, em sua prática de escritor, o mais radical dos modernistas de sua geração.
O Faulkner de Karl se apresenta como uma figura cheia de grandeza e páthos, um homem que, enfeitiçado pela imagem romântica do artista maldito, estava pronto a se sacrificar pelo projeto de viver até o final um destino de que toda pessoa racional se esquivaria. Mas o livro de Karl padece de uma contínua psicologização reducionista. Assim, para dar alguns exemplos, a letra bem desenhada de Faulkner torna-se evidência de uma personalidade presa à fase anal; suas mentiras tolas a respeito da RAF são um sinal de tendências esquizóides; seu detalhismo é prova de obsessão; e um caso com uma mulher mais jovem parece sugerir desejos incestuosos pela própria filha.
"Muitas vezes, um romance menor oferece mais intuições biográficas do que uma grande obra", afirma Karl. Se isso for verdade -e muitos biógrafos contemporâneos concordariam-, então estamos diante de um sério problema para a biografia literária. Se a obra menor revela mais que a maior, é possível que o que ela tem a revelar seja de interesse igualmente menor. Talvez Faulkner -para quem as odes de Keats eram pedras-de-toque poéticas- fosse de fato o que julgava ser: um ser em negativo, um ser que desaparecia e se anulava em suas criações mais profundas. Conforme escreveu a Cowley: "Como indivíduo, tenho a ambição de ser abolido e apagado da história, sem deixar marcas [...]; gostaria que a súmula da minha vida fosse: "Ele escreveu os livros e morreu'".
Jay Parini é autor de biografias de John Steinbeck ["John Steinbeck -Uma Biografia", ed. Record] e Robert Frost, além de dois romances de forte teor biográfico: "The Last Station", sobre os últimos dias de Tolstói, e "A Travessia de Benjamin" (Record), sobre os últimos dias de Walter Benjamin. Sua biografia de Steinbeck é sólida, mas anódina. O livro sobre Frost é mais auto-reflexivo: Parini indaga se a biografia não será menos parecida à historiografia que à escrita romanesca. Dos romances biográficos, o volume sobre Tolstói tem mais êxito, talvez porque Parini pudesse recorrer a muitos relatos da vida na propriedade de Iásnaia Poliana. No livro sobre Benjamin, ele se perde em explicações sobre quem é o herói e por que ele deveria interessar ao leitor.
Desta feita, em "Um Tempo sem Igual", ele tenta realizar o que Blotner e Karl não souberam fazer: uma biografia crítica, um relato razoavelmente integral da vida de Faulkner, a par de uma avaliação crítica de sua literatura. Há muito o que louvar no livro que Parini produziu. Muito embora dependa de Blotner quanto aos fatos, Parini empenhou-se mais que ele em entrevistar a última geração de pessoas que conheceram Faulkner pessoalmente -e algumas delas têm coisas de interesse a dizer. Como escritor, ele tem bom ouvido para a linguagem de Faulkner e sabe exprimir vividamente sua admiração. Assim, a prosa de "The Bear" avança "com uma espécie de ferocidade inexorável, como se Faulkner a compusesse num estado de devaneio irrequieto". Sem cair na hagiografia, o livro presta um tributo eloqüente a seu objeto: "O mais impressionante em Faulkner é a persistência pura e simples, a vontade-de-poder que o traz de volta à escrivaninha, dia após dia, ano após ano [...]; sua labuta era tão física quanto mental; Faulkner avançava como um boi no lodaçal, arrastando meio-mundo atrás de si".
Num livro escrito por um não-especialista, a primeira questão importante é decidir-se a refletir o consenso crítico ou a tomar partido pessoal. Em linhas gerais, Parini segue o consenso. Acompanha a vida de Faulkner em ordem cronológica, intercalando pequenos ensaios críticos de caráter introdutório sobre esta ou aquela obra. Em mãos mais hábeis, o esquema poderia resultar em peças exemplares da arte da crítica. Mas os ensaios de Parini não alcançam esse patamar. Ele tende a se sair melhor a propósito dos livros mais conhecidos; nos demais casos, não vai muito além de paráfrases pouco inspiradas e resumos do debate crítico -sendo que muitas vezes toma por debate crítico o que não é mais que modorra acadêmica.
Assim como no livro de Karl, há uma certa dose de psicologismo questionável, como no caso da leitura estapafúrdia de "As I Lay Dying" -romance curto, construído em torno da jornada grotesca que os jovens Bundren empreendem para conduzir ao túmulo o cadáver da mãe- como um ato de agressão simbólica que Faulkner dirige à própria mãe e como um "perverso" presente de casamento para a sua esposa. "Estelle teria suplantado a sra. Maud [a mãe] no espírito do escritor?", pergunta-se Parini. "Tais questões não admitem resposta, mas o biógrafo tem o dever de formulá-las, permitir que transitem pelo texto e o turvem." Talvez seja dever do biógrafo turvar o texto com fantasias gratuitas; talvez não. Seria antes o caso de indagar se a mãe ou a esposa interpretaram o romance como um ataque pessoal. Não há registro de que o tenham feito.
As divagações de Parini sobre a vida mental de Faulkner acarretam muito falatório sobre "as partes do eu" ou sobre o "eu dentro do eu". Faulkner desaprova os amantes adúlteros de "Palmeiras Selvagens"? Resposta: uma "parte de sua cabeça de romancista" condena-os; a outra, não. Por que, no final da década de 30, Faulkner preferiu fechar o foco em Flem Snopes, o frio arrivista de olhos de vidro da trilogia? "Suspeito que isso tem a ver com uma visão de seu próprio ego agressivo", escreve Parini. Tendo ido "muito além do que sonhava, Faulkner queria refletir sobre esse êxito e entender os impulsos que o teriam levado tão longe".
Mas foi de fato o "ego agressivo" de Faulkner que produziu os grandes romances dos anos 30, realizações que Flem teria menosprezado, tão pouco foi o dinheiro que trouxeram a seu autor? O gênio tortuoso de Flem de fato faz pensar na relação malograda que Faulkner mantinha com o dinheiro, para não falar em sua ingenuidade ao assinar um contrato com Warner Brothers, o mais conservador dos estúdios, que o converteu em escravo por sete anos?
Feitas as contas, o livro de Parini é uma mistura desconcertante: de um lado, uma genuína sensibilidade para a literatura de Faulkner; de outro, uma prontidão a vulgarizá-lo. Os piores exemplos provêm das observações sobre Rowan Oak, uma propriedade decadente de quatro acres que Faulkner comprou em 1929 e onde viveu até a morte. Faulkner estava pronto a gastar mais dinheiro do que tinha na reforma de Rowan Oak porque "almejava, acima de tudo, recriar uma visão de luxo e altivez pré-Guerra Civil. Lançado em 1939, "E o Vento Levou" logo conquistou todo o país. Faulkner não precisava assisti-lo. Aquela era a história de sua própria vida". Basta ler o que Blotner tem a contar sobre a vida cotidiana em Rowan Oak para saber a que distância estava das fantasias de Tara.
"O livro é a vida secreta do escritor; ele é seu irmão gêmeo e obscuro: não há como reconciliá-los", declara um dos personagens de "Mosquitoes" (1927). Conciliar o escritor e seus livros é coisa que Blotner não tentou fazer, muito sensatamente. E ainda não há como saber se Karl e Parini, cada qual a sua maneira, lograram reunir o homem que assinava "William Faulkner" a seu irmão gêmeo e obscuro.

Alcoolismo
O teste crucial está no que os biógrafos têm a dizer sobre o alcoolismo de Faulkner. Não é o caso de amaciar a terminologia. O registro do hospital psiquiátrico em Memphis ao qual Faulkner era volta e meia levado em estado de estupor alcoólico anota: "Alcoólatra agudo e crônico". Por mais aprumado e bonito que fosse por volta dos 50 anos, essa era apenas uma carapaça. Uma vida inteira de alcoolismo começava a minar sua mente. "É mais do que um caso de alcoolismo crônico", escreveu em 1952 o editor de Faulkner, Saxe Commins. "É trágico testemunhar a desintegração de um homem." Parini acrescenta o testemunho acabrunhante da filha de Faulkner: quando estava bêbado, seu pai podia ser tão violento que eram necessários "alguns homens" para proteger a ela e a sua mãe.
Blotner não tenta entender o vício de Faulkner: limita-se a fazer uma crônica de seus estragos, descrever seus padrões e citar os registros hospitalares. Na leitura de Karl, a bebida foi uma forma de rebelião em defesa da arte e contras as pressões da família e da tradição. "Tirem o álcool e, muito provavelmente, não haveria escritor; talvez sequer sobrasse uma pessoa." Parini não o contesta, mas enxerga ainda um propósito terapêutico nas bebedeiras de Faulkner, que eram "um descanso para a mente criadora" e "de certo modo, úteis também: tiravam as teias de aranha, davam corda no relógio interno, permitiam que o inconsciente ganhasse volume, como um poço (sic)". Emergir de uma bebedeira era como acordar de "um sono profundo e prolongado".
É da natureza do vício que seja incompreensível a quem está de fora. O próprio Faulkner não tem muito a dizer: não escreve sobre a bebida, não escreve, até onde sabemos, sob sua influência -costumava estar sóbrio quando se sentava à escrivaninha. Até agora, nenhum biógrafo soube explicá-la; mas talvez o esforço de explicar um vício, encontrar as palavras certas para falar a seu respeito, conferir-lhe um lugar na economia do ego seja sempre uma empresa votada ao fracasso.

Tradução de Samuel Titan Jr.
Este texto foi publicado originalmente na "New York Review of Books" sob o título "The Making of William Faulkner".
Copyright J.M. Coetzee, 2005. Todos os direitos pertencem ao autor.


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