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Teatro brasileiro em revista
Sílvia Fernandes
especial para a Folha
Nossa única tradição teatral é a da comédia de
costumes, observa com propriedade Décio de
Almeida Prado. Para o leitor interessado em conhecer seus fundamentos é de extrema valia o
lançamento do quarto volume da coleção "Dramaturgos
do Brasil", que reúne peças dos maiores representantes
de uma linhagem que principia no século 19 e continua,
ainda hoje, em séries televisivas como "A Grande Família", de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974).
O organizador desta "Antologia de Comédia de Costumes", Flávio Aguiar, apresenta textos de Martins Pena
(1815-48), Joaquim Manuel de Macedo (1820-82), França
Júnior (1838-90) e Arthur Azevedo (1855-1908), que deixam entrever, sob a capa da despretensão cômica, notáveis descrições do meio social brasileiro, compondo um legado de impressões digitais do sertão, da roça e da cidade grande, em especial do Rio de Janeiro, que levou Sílvio
Romero a considerar alguns deles verdadeiros documentos do período.
Redescoberta do país
O assunto e o personagem
nacionais, a brevidade do instantâneo crítico dos costumes, a tendência quase jornalística do flagrante dos fatos
do dia, ajustados em chave paródica, o confronto do nacional e do estrangeiro, do homem da roça e da corte
num microcosmo teatral precipitado pela urgência do
ritmo cômico são traços que justificam a opinião do crítico, e que "O Judas em Sábado de Aleluia", "A Torre em
Concurso", "As Doutoras" e "A Capital Federal" apresentam em grau maior ou menor.
Quer incorporem pequenos funcionários públicos, soldados da Guarda Nacional, escravos e negreiros do império, quer focalizem a campanha abolicionista e a crise republicana, o fato é que essas comédias nacionalizam a cena brasileira, como observa Aguiar na ótima introdução
ao conjunto. Especialmente pela capacidade que os dramaturgos revelam, sobretudo Pena e Azevedo, de apropriar-se de procedimentos tradicionais da comédia, que
remontam a fontes aristofanescas, ao entremez ibérico e
à comédia de Molière, para colocá-los a serviço do dado
local.
A edição da antologia de comédias acelera um processo
de redescoberta do país, via dramaturgia, que ganha reforço adicional com a publicação do livro de Cláudia Braga, "Em Busca da Brasilidade - Teatro Brasileiro na Primeira República". Uma das maiores qualidades da pesquisa é o resgate do período que se estende de 1889 a 1930,
imediatamente posterior ao coberto pela antologia (a interseção se dá com Arthur Azevedo), e pouco contemplado em nossa historiografia teatral.
Investindo contra o que considera uma leitura equivocada dos principais críticos do teatro brasileiro, que julgaram decadente a dramaturgia da época, a autora desmente a crise com a qualidade da produção encenada nas
três décadas, dezenas de comédias e dramas conhecidos
de edições há muito esgotadas de Roberto Gomes, Cláudio de Souza, Gastão Tojeiro, Oduvaldo Vianna e Júlia
Lopes de Almeida, perdidos em periódicos do princípio
do século, como "Flor Obscura", de Lima Campos, ou
mesmo inéditos, como é o caso de "Cabotinos", de Oscar
Lopes.
Na exegese de matéria tão saborosa, a historiadora observa sobretudo a consonância entre os textos teatrais e a
representação do meio, considerando-os espelho temático de uma sociedade especialmente preocupada "com a
valorização do que era brasileiro". Se a abordagem é pertinente em várias análises, como na oposição entre cidade e campo, já apontada por Aguiar nas comédias de costumes, que reaparece em "Flores de Sombra", de Cláudio
de Souza, "Nossa Gente", de Viriato Corrêa, e "A Capital
Federal", de Arthur Azevedo, o enfoque vacila quando
persiste na associação entre nacionalismo no teatro e assunto local, sem arriscar-se na leitura da forma teatral
que esse conteúdo precipita, mesmo quando se propõe a
fazê-lo, como no capítulo "Uma Dramaturgia entre a
Forma e o Conteúdo".
"Rachaduras no verniz"
Talvez a preocupação em
denunciar a cópia de modelos estrangeiros limite um
pouco a compreensão da "incapacidade criativa de copiar" a que se refere Paulo Emílio em "Cinema - Trajetória no Subdesenvolvimento", e que Vilma Arêas retoma
em seu estudo sobre Martins Pena ("Na Tapera de Santa
Cruz"), exatamente para mostrar as "rachaduras no verniz dos modelos" sob a pressão do contexto local. Arêas
explicita, por exemplo, como "O Judas em Sábado de
Aleluia", uma das comédias da antologia, é uma bem tramada colagem que, sem ignorar a tradição do cômico e
sem deixar de copiá-la, consegue completá-la com uma
"série sociológica", chegando a modelos penetrantes da
realidade nacional e a uma teatralidade original, que parodia e passa a limpo as próprias fontes.
O tratamento é semelhante ao que Flora Süssekind dispensa ao teatro de Arthur Azevedo ("As Revistas do Ano
e a Invenção do Rio de Janeiro"), nesse caso ressaltando
os procedimentos que transformam documento de época em teatro e resultam da conciliação entre o detalhe naturalista do registro urbano e as mutações teatrais decorrentes das exigências cênicas do gênero, que também estão presentes em "A Capital Federal".
O livro de Cláudia Braga insere-se nessa tendência
maior de recuperação crítica do teatro brasileiro e tem o
dom de acentuar no leitor o gosto de pensá-lo.
Sílvia Fernandes é professora de história do teatro na Escola de Comunicações e Artes da USP e autora de "Memória e Invenção" (Perspectiva)
e "Grupos Teatrais Anos 70" (ed. Unicamp).
Antologia de Comédia de Costumes
571 págs., R$ 59,80
Flávio Aguiar (org.). Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho,
330/340, CEP 01325-000, SP, tel. 0/xx/11/3241-3677).
Em Busca da Brasilidade
122 págs., R$ 17,00
de Cláudia Braga. Editora Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio,
3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 0/xx/11/3885-8388).
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