UOL


São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Teatro brasileiro em revista

Sílvia Fernandes
especial para a Folha

Nossa única tradição teatral é a da comédia de costumes, observa com propriedade Décio de Almeida Prado. Para o leitor interessado em conhecer seus fundamentos é de extrema valia o lançamento do quarto volume da coleção "Dramaturgos do Brasil", que reúne peças dos maiores representantes de uma linhagem que principia no século 19 e continua, ainda hoje, em séries televisivas como "A Grande Família", de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974). O organizador desta "Antologia de Comédia de Costumes", Flávio Aguiar, apresenta textos de Martins Pena (1815-48), Joaquim Manuel de Macedo (1820-82), França Júnior (1838-90) e Arthur Azevedo (1855-1908), que deixam entrever, sob a capa da despretensão cômica, notáveis descrições do meio social brasileiro, compondo um legado de impressões digitais do sertão, da roça e da cidade grande, em especial do Rio de Janeiro, que levou Sílvio Romero a considerar alguns deles verdadeiros documentos do período.

Redescoberta do país
O assunto e o personagem nacionais, a brevidade do instantâneo crítico dos costumes, a tendência quase jornalística do flagrante dos fatos do dia, ajustados em chave paródica, o confronto do nacional e do estrangeiro, do homem da roça e da corte num microcosmo teatral precipitado pela urgência do ritmo cômico são traços que justificam a opinião do crítico, e que "O Judas em Sábado de Aleluia", "A Torre em Concurso", "As Doutoras" e "A Capital Federal" apresentam em grau maior ou menor. Quer incorporem pequenos funcionários públicos, soldados da Guarda Nacional, escravos e negreiros do império, quer focalizem a campanha abolicionista e a crise republicana, o fato é que essas comédias nacionalizam a cena brasileira, como observa Aguiar na ótima introdução ao conjunto. Especialmente pela capacidade que os dramaturgos revelam, sobretudo Pena e Azevedo, de apropriar-se de procedimentos tradicionais da comédia, que remontam a fontes aristofanescas, ao entremez ibérico e à comédia de Molière, para colocá-los a serviço do dado local. A edição da antologia de comédias acelera um processo de redescoberta do país, via dramaturgia, que ganha reforço adicional com a publicação do livro de Cláudia Braga, "Em Busca da Brasilidade - Teatro Brasileiro na Primeira República". Uma das maiores qualidades da pesquisa é o resgate do período que se estende de 1889 a 1930, imediatamente posterior ao coberto pela antologia (a interseção se dá com Arthur Azevedo), e pouco contemplado em nossa historiografia teatral. Investindo contra o que considera uma leitura equivocada dos principais críticos do teatro brasileiro, que julgaram decadente a dramaturgia da época, a autora desmente a crise com a qualidade da produção encenada nas três décadas, dezenas de comédias e dramas conhecidos de edições há muito esgotadas de Roberto Gomes, Cláudio de Souza, Gastão Tojeiro, Oduvaldo Vianna e Júlia Lopes de Almeida, perdidos em periódicos do princípio do século, como "Flor Obscura", de Lima Campos, ou mesmo inéditos, como é o caso de "Cabotinos", de Oscar Lopes. Na exegese de matéria tão saborosa, a historiadora observa sobretudo a consonância entre os textos teatrais e a representação do meio, considerando-os espelho temático de uma sociedade especialmente preocupada "com a valorização do que era brasileiro". Se a abordagem é pertinente em várias análises, como na oposição entre cidade e campo, já apontada por Aguiar nas comédias de costumes, que reaparece em "Flores de Sombra", de Cláudio de Souza, "Nossa Gente", de Viriato Corrêa, e "A Capital Federal", de Arthur Azevedo, o enfoque vacila quando persiste na associação entre nacionalismo no teatro e assunto local, sem arriscar-se na leitura da forma teatral que esse conteúdo precipita, mesmo quando se propõe a fazê-lo, como no capítulo "Uma Dramaturgia entre a Forma e o Conteúdo".

"Rachaduras no verniz"
Talvez a preocupação em denunciar a cópia de modelos estrangeiros limite um pouco a compreensão da "incapacidade criativa de copiar" a que se refere Paulo Emílio em "Cinema - Trajetória no Subdesenvolvimento", e que Vilma Arêas retoma em seu estudo sobre Martins Pena ("Na Tapera de Santa Cruz"), exatamente para mostrar as "rachaduras no verniz dos modelos" sob a pressão do contexto local. Arêas explicita, por exemplo, como "O Judas em Sábado de Aleluia", uma das comédias da antologia, é uma bem tramada colagem que, sem ignorar a tradição do cômico e sem deixar de copiá-la, consegue completá-la com uma "série sociológica", chegando a modelos penetrantes da realidade nacional e a uma teatralidade original, que parodia e passa a limpo as próprias fontes.
O tratamento é semelhante ao que Flora Süssekind dispensa ao teatro de Arthur Azevedo ("As Revistas do Ano e a Invenção do Rio de Janeiro"), nesse caso ressaltando os procedimentos que transformam documento de época em teatro e resultam da conciliação entre o detalhe naturalista do registro urbano e as mutações teatrais decorrentes das exigências cênicas do gênero, que também estão presentes em "A Capital Federal".
O livro de Cláudia Braga insere-se nessa tendência maior de recuperação crítica do teatro brasileiro e tem o dom de acentuar no leitor o gosto de pensá-lo.


Sílvia Fernandes é professora de história do teatro na Escola de Comunicações e Artes da USP e autora de "Memória e Invenção" (Perspectiva) e "Grupos Teatrais Anos 70" (ed. Unicamp).

Antologia de Comédia de Costumes
571 págs., R$ 59,80
Flávio Aguiar (org.). Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330/340, CEP 01325-000, SP, tel. 0/xx/11/3241-3677).

Em Busca da Brasilidade
122 págs., R$ 17,00
de Cláudia Braga. Editora Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 0/xx/11/3885-8388).


Texto Anterior: + livros: Os picadeiros da discórdia
Próximo Texto: + livros: A fabulação etnológica da Bahia
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.