São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2000

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Na contramão da poesia épica, o etnógrafo francês desmonta em "Tristes Trópicos" a noção de viagem ao propor que a apreensão de uma cultura nova implica sua corrupção
A viagem de Lévi-Strauss aos trópicos

Silviano Santiago
especial para a Folha

"Toda etnografia tem uma parte que é filosofia, e grande parte do resto é confissão"
Clifford Geertz, "A Interpretação das Culturas"


Durante o desenrolar dos primeiros capítulos de "Tristes Trópicos" (publicado em 1955), Claude Lévi-Strauss faz questão de esclarecer ao leitor que a sua viagem ao Brasil e, posteriormente, o seu contato com os índios do país foram ambos produtos do acaso (1). "O capricho um pouco perverso do (professor) Georges Dumas" (2) -somado a circunstâncias mundanas do meio universitário francês, na época privilegiado fomentador de cultura junto à elite dos países da América Latina- levou Lévi-Strauss (1908), então jovem professor num liceu da província, a participar da cosmopolita missão universitária francesa, cujo fim era o de desprovincianizar a fundação e implantação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
Lévi-Strauss esclarece: "Minha carreira decidiu-se num domingo do outono de 1934, às nove horas da manhã, com um telefonema. (...) "Você continua com vontade de fazer etnografia?" "Sem dúvida!" "Então apresente sua candidatura para professor de sociologia da Universidade de São Paulo. Os arredores ("faubourgs") estão repletos de índios, a quem você dedicará os seus fins-de-semana'" (pág. 45). Na Europa, até os letrados continuavam a ter uma visão distorcida da situação demográfica nas antigas colônias americanas, e, no Brasil, os índios não eram mais suburbanos, algumas poucas tribos se encontravam em distantes áreas inexploradas.
Uma "etnografia de domingo" (pág. 103) pelos arrabaldes da cidade de São Paulo, arremedo da que lhe fora "falsamente prometida" pelo porta-voz de Georges Dumas, servirá apenas para que o cientista mapeie os novos colonos brancos, ali fixados pouco antes ou depois da abolição da escravidão. Dominam sírios e italianos. Numa população maltrapilha, percebe cabelos louros e olhos azuis, que traem origem germânica. Avista muitos japoneses, estes sim habitantes dos arredores e agricultores. Em nada semelhantes aos antigos colonizadores-marinheiros, esses tardios colonizadores do país provinham, na maioria dos casos, das camadas mais miseráveis da população rural européia e tinham sido alijados do processo civilizatório ocidental pela industrialização. Viajaram ao Brasil para fazer a América. E a estavam fazendo. São ambiciosos marinheiros de primeira viagem. Não tinham o navio como casa. Nem o mar como mistério a ser desvendado e conquistado. Tinham a nova e distante terra como fim em si, isto é, como lugar de residência e trabalho, como promessa de enriquecimento rápido.

Visão paradigmática da história
No subúrbio popular, em lugar dos índios autóctones, o etnógrafo encontra mais outros viajantes, os descendentes dos escravos negros. Ao contrário dos seus professores e colegas de geração, ainda excitados com o êxito da missão cultural Dacar-Djibuti (1931-1933), Lévi-Strauss não está diante de negros autênticos (3). Deve ter-se perguntado se teria sentido valer-se do termo negro nesta parte do planeta, onde os índios não moravam mais nos arrabaldes e onde havia uma "grande diversidade racial", que permitiu misturas de toda espécie. Não é matéria que o interessa; será matéria do maior interesse de um conterrâneo seu, o sociólogo Roger Bastide (4).
Lévi-Strauss é sensível às peças que a passagem do tempo em regiões diversas do planeta prega no observador. Com o apoio de uma visão paradigmática (5) de história universal, cujo respaldo teórico se encontra na linguística como fundamento dos estudos etnográficos, é que interpreta cada cultura particular construída ou implantada neste ou naquele espaço geográfico. Os contrastes entre a cultura do Velho e a do Novo Mundo e outros contrastes semelhantes -acronológicos por natureza e definição na análise do etnógrafo- recebem um fundamental tratamento disciplinar e, constantemente, multidisciplinar em que as partes em confronto são colocadas lado a lado, analisadas, comparadas e interpretadas por olhos experientes. "Sinto-me banhado numa inteligibilidade mais densa, em cujo seio os séculos e os lugares se respondem e falam linguagens afinal reconciliadas" (pág. 54).
Como consequência das viagens transatlânticas dos seus habitantes, por duas vezes a Europa tinha se duplicado nos trópicos. A primeira vez, graças à colonização ibérica. A segunda, graças aos diversos grupos de imigrantes do hemisfério Norte que, a partir do século 19, por aqui aportaram e se solidarizaram com o projeto de nação então em vigência. Por duas vezes o viço e o vigor originários, isto é, indígenas, tinham sido vilipendiados; por duas vezes o viço e o vigor originários, isto é, europeus, não chegaram à plenitude. Diante dos dois processos paralelos de descontinuidade causados e fomentados pela viagem transcontinental, irrompe o sorriso no texto: "Um espírito malicioso definiu a América como uma terra que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização" (pág. 91). É essa a frase de que se vale o professor visitante para abrir o capítulo intitulado "São Paulo".
Lévi-Strauss é obrigado a corrigir ligeiramente a crítica etnocêntrica contida na fórmula recebida. Revê e atualiza a opinião maliciosa: as cidades do Novo Mundo "vão do viço à decrepitude sem parar na idade avançada ("ancienneté")" (pág. 91). A América não desconhece a cultura européia de que é produto; desconhece os valores estáveis e fortes da idade madura e é por isso que as suas principais cidades são, contraditoriamente, adolescentes decrépitas. Uma jovem e cândida estudante brasileira tinha refeito, às avessas, a viagem do professor europeu. Chocada com a imagem de Paris que vislumbra pela primeira vez, corre de volta para os braços do mestre. Aos prantos, lhe diz que Paris lhe parecera "suja, com seus prédios enegrecidos".
Conclui Lévi-Strauss: "A brancura e a limpeza eram os únicos critérios à disposição (da estudante) para apreciar uma cidade" (pág. 91). Trata-se de uma visão horizontal e ingênua do cenário citadino parisiense, pondera Lévi-Strauss.

Adoecimento precoce
Diante de São Paulo, em 1935, ou diante de Nova York e Chicago, em 1941, o espanto de Lévi-Strauss não era causado pela novidade que estava à sua frente. Diante de cenário urbano nunca entrevisto, como uma sonda prospectiva, seu olhar se verticaliza, se aprofundando. O espanto do etnógrafo advém antes da "precocidade dos estragos do tempo" (pág. 92) nas obras do homem americano. Não se surpreende ele por faltarem dez séculos de vida às cidades que visita; surpreende-se ao constatar que alguns quarteirões inteiros, em péssimo estado de conservação, tenham apenas 50 anos. As metrópoles americanas adoecem precocemente. O etnógrafo francês avança o antigo confronto de raiz colonial: "Certas cidades da Europa adormecem suavemente na morte; as do Novo Mundo vivem febrilmente uma doença crônica; eternamente jovens, jamais são saudáveis, porém" (pág. 92).

Nos trópicos, a curiosidade intelectual dos cidadãos cultos "devorava os manuais e as obras de vulgarização" (pág. 96). Os professores franceses, reflete Lévi-Strauss, tanto mais úteis seriam na América do Sul quanto mais tivessem o talento para "tornar acessíveis problemas difíceis que eles haviam ajudado modestamente a solucionar" (pág. 96).


Por meio da disputa entre o velho e o novo, Lévi-Strauss recoloca a questão do aparente avanço do progresso material e retoma o conceito da imobilidade do movimento

O amor da América Latina pela França, concluía Lévi-Strauss, dependia de uma "conivência secreta". Esta era fundada menos no desejo de produzir e mais no de consumir, ou seja, na propensão para consumir idéias alheias e para facilitar o consumo das idéias alheias pelos povos colonizados pela Europa (6). O contraste entre profissionais maduros e sábios, franceses, de um lado, e diletantes novidadeiros e ignorantes, paulistas, do outro, transforma-se logo em confronto. Os professores, "criados para respeitar apenas as idéias maduras", se encontravam "expostos às investidas dos estudantes de uma ignorância completa quanto ao passado, mas cuja informação tinha sempre alguns meses de avanço em relação à nossa" (pág. 99).

Jogo de aparência
Façamos um primeiro balanço. Aparentemente, a civilização americana estava à frente da européia. Aparentemente, as cidades de São Paulo, Nova York e Chicago se impõem como grandiosas, já que passam uma "impressão de enormidade" (pág. 74) aos olhos temerosos e tímidos do viajante europeu. Aparentemente, Paris é uma cidade suja, de prédios enegrecidos. Aparentemente, os estudantes paulistas estavam à frente dos professores europeus. Todos eles dominavam as novas teorias do conhecimento e audaciosamente as exibiam diante de mestres que, por seu turno, se vangloriavam do saber proporcionado pela maturidade intelectual.
"Tristes Trópicos" é escrito para questionar esse jogo da aparência. A emergente e desabrida corrida civilizatória empreendida pelo Novo Mundo -sob a chibata dos colonizadores lusos e dos imigrantes- terá de ser compreendida pelos leitores de "Tristes Trópicos" a partir dos parâmetros lógicos estabelecidos pela fábula filosófica sobre Aquiles, a quem os gregos consideravam o mais veloz dos deuses, e a tartaruga.
Aparentemente, Aquiles sairia vencedor da corrida. É o mais veloz. No entanto, caso fosse concedida uma vantagem inicial à tartaruga, Aquiles jamais conseguiria apanhá-la e muito menos vencê-la. Jorge Luis Borges (1899-1986), no ensaio "A Perpétua Corrida de Aquiles e da Tartaruga", nos dá uma clara exposição do "paradoxo glorioso": "Aquiles, símbolo de rapidez, tem de alcançar a tartaruga, símbolo de morosidade. Aquiles corre dez vezes mais rápido do que a tartaruga e lhe dá dez metros de vantagem. Aquiles corre esses dez metros, a tartaruga corre um; Aquiles corre esse metro, a tartaruga corre um decímetro; Aquiles corre esse decímetro, a tartaruga corre um centímetro; Aquiles corre esse centímetro, a tartaruga um milímetro; Aquiles o milímetro, a tartaruga, um décimo de milímetro, e assim infinitamente, de modo que Aquiles pode correr para sempre sem alcançá-la" (7). Na "Física" (6, 239a), Aristóteles comenta o famoso segundo raciocínio de Zenão sobre o movimento: "O mais lento em uma corrida jamais será alcançado pelo mais rápido; pois este, o perseguidor, deverá primeiro atingir o ponto de onde partiu o fugitivo e assim o lento estará sempre mais adiantado" (8).
O confronto entre as partes -entre o velho e o novo, entre o original e a cópia, entre o metropolitano e o colonizado, entre o lento e o rápido, entre a idade avançada e a decrepitude- pode ser interpretado equivocadamente pelo lado sensível e o deve ser acertadamente, segundo o etnógrafo, pelo lado racional. Por meio dessa corrida paralela, dessa disputa entre o velho e o novo, em que o mais veloz concede ao mais lento uma vantagem inicial, que se traduz, no presente caso, pela maturidade ou pela "idade avançada", Lévi-Strauss recoloca em circulação a questão do aparente avanço do progresso material e retoma o conceito da imobilidade do movimento. Isso ele o faz para reafirmar uma concepção paradoxalmente eurocêntrica de história moderna e de progresso social. O Velho Mundo é maduro e lento, e o Novo Mundo, obsoleto e veloz; o Velho é ancião, e o Novo, decrépito. O ulterior na dimensão espacial não o é necessariamente na dimensão temporal, embora aparentemente o seja.
Um livro que se abre como a narrativa de viagens, das viagens extraordinárias de um etnógrafo francês por várias e distantes terras do planeta, apresenta-se, desde o primeiro capítulo, desde a primeira frase, contraditoriamente contra a viagem e contra a experiência da aventura, de que vai se nutrir. Eis as primeiras palavras de "Tristes Trópicos": "Odeio as viagens e os exploradores. E eis que me preparo para contar minhas expedições". Onde está o orgulho e a vaidade do disciplinado e realizado profissional das ciências humanas? Contrariando as expectativas, confessa ele: "Muitas vezes planejei iniciar este livro: toda vez, uma espécie de vergonha e repulsa me impediram". Para esse professor de liceu, sorteado pelo acaso de um telefonema matinal para fazer a grande e maravilhosa viagem transatlântica que o transformaria em etnógrafo de renome internacional, a aventura "é somente a sua servidão" e a vida perigosa no coração da floresta virgem, depois de vivida, se apresenta como "uma imitação do serviço militar" (pág. 15).
A noção de viagem como fonte e inspiração para o conhecimento de novas terras e nova gente tem de ser revista e até mesmo negada, já que a fissura, a forquilha por ela instaurada no espaço planetário revela-se como o caminho a ser posteriormente seguido pelo lixo ocidental. Este está sendo constantemente jogado na cara do resto da humanidade. Leiamos "Tristes Trópicos": "O que nos mostrais em primeiro lugar, viagens, é nossa imundície ("ordure") atirada à face da humanidade" (pág. 35). Pergunta o etnógrafo francês: "De que modo poderia a pretensa evasão da viagem conseguir outra coisa que não nos confrontar com as formas mais miseráveis da nossa existência histórica?".
Conclui ele: "Esta grande civilização ocidental, criadora das maravilhas de que desfrutamos, certamente não conseguiu produzi-las sem contrapartida. (...) A ordem e a harmonia do Ocidente exigem a eliminação de uma massa extraordinária de subprodutos nocivos que hoje infectam a terra" (pág. 35). Os trópicos, ou qualquer outro subproduto moderno do Ocidente, são necessariamente tristes. Não pela sua natureza em si, não pela cultura originária dos seus habitantes, mas pelo modo perverso como estes foram colonizados pelo Ocidente ou pelos seus capatazes históricos.
Na gangorra da viagem e da subsequente colonização dos trópicos, desde que seja concedida uma vantagem inicial ao Ocidente, uma vantagem, portanto, originária, a tartaruga vence Aquiles. Alguns exemplos.
No Rio de Janeiro da década de 30, quando o etnógrafo europeu se distancia do centro da cidade e adentra as ruas sossegadas, de repente, está de volta à sua pátria. Está em Nice ou Biarritz, mas, atenção!, à época de Napoleão 3º. Recua-se no espaço o mais jovem e mais veloz para que o mais velho e mais lento avance no tempo e ganhe a dianteira. Comenta o viajante cosmopolita: "(...) Ter visitado a minha primeira universidade inglesa no campus de edifícios neogóticos de Daca, no Bengala oriental, incita-me agora a considerar Oxford como uma Índia que tivesse conseguido controlar a lama, o mofo e as exuberâncias da vegetação" (pág. 33, grifo nosso). Não estaria Lévi-Strauss dizendo o mesmo do campus francês da Universidade de São Paulo? O campus avançado da Europa nos trópicos é um campus ganho no espaço e perdido no tempo, que, por isso, só pode ser recuperado pela verdadeira cronologia.

Pureza como vantagem
Diante das novas paisagens entrevistas pelo viajante, salienta-se menos o exotismo (da vegetação, dos costumes, das vestimentas etc.), salienta-se mais o fora de moda. "Os trópicos são menos exóticos do que obsoletos ("démodés')" (pág. 82). A substituição do exótico pelo obsoleto passa, como estamos assinalando, por um retorno ao etnocentrismo de que o etnógrafo quis, ou deve, se liberar.
Essa espécie particular e ambígua de etnocentrismo, que estamos classificando de lévi-straussiana, se alimenta de uma noção fundamental de pureza. Por um lado, a pureza é uma espécie de vantagem inicial que a colônia, pelas mãos do etnógrafo, sempre concede à metrópole; por outro lado, e aí surge o dado novo de onde deriva a grande ambiguidade do problema etnocêntrico em Lévi-Strauss, a pureza é também o valor de que o não-ocidental não deveria ter aberto mão no processo por que passou de colonização pelo Ocidente. Cada cultura do planeta no seu canto, ciosa do que é e representa. No entanto a viagem põe a descoberto o princípio da pluralidade cultural. Por que há tantas culturas no mundo e não uma única?
Para o julgamento ético das múltiplas culturas em litígio social, político e econômico, salienta-se de forma inequívoca a obediência a outra noção fundamental no universo de "Tristes Trópicos", a da distância originária entre civilizações distintas. As várias -e todas as- culturas do planeta, incluindo aí a ocidental, deveriam ter-se preservado à distância, mas elas não permaneceram separadas.
Elas se aproximaram, se tocaram e se comunicaram de modo íntimo. A distância entre as diversas partes do planeta deveria ter sido mantida -com perdão do jogo de palavras- a ferro e fogo. A viagem, traço de união, lugar entre, destruiu e destrói a distância entre os povos, corrompendo-os. Para Lévi-Strauss a viagem é o mais íntegro a priori para a violência. O contato entre culturas diferentes, por mais idealizado que seja, é contágio, transmissão, disseminação de vírus do corpo ocidental no corpo estrangeiro.
No entanto um golpe do acaso conduziu os passos de Lévi-Strauss para a viagem transatlântica e a carreira de professor de sociologia no Brasil. Conduziu-os também para a etnografia e a viagem doméstica pelo interior do país. Durante grande parte da sua estada nos trópicos, constantemente tem de enfrentar a situação que, ao ser transposta para o livro, como vimos, lhe causa vergonha e repulsa. Ao fundamentar a sua visão conflituosa das diferentes sociedades num modelo etnográfico que se fundamenta, por sua vez, nos conceitos de pureza e distância, de intangibilidade, o viajante Lévi-Strauss terá de retornar, desta feita positivamente, ao tema radical do repúdio à viagem para nele operar algumas diferenças sutis. A viagem empírica acaba por subtrair da viagem como conceito absoluto a inevitabilidade do convívio do etnógrafo com a sua experiência profissional e com povos diferentes em outras terras.
A primeira das diferenças se desentranha de reflexão sobre a viagem transatlântica moderna e o tempo histórico. Pergunta Lévi-Strauss: "Em que época o estudo dos selvagens brasileiros poderia proporcionar a satisfação mais pura, levar a conhecê-los na forma menos alterada?". No século 18, na esquadra do autor de "Viagem ao Redor do Mundo", Bougainville? Ou no século 16, ao lado dos nossos conhecidos Jean de Léry e André Thévet? A pergunta não é retórica, embora também o seja. Na sua responsabilidade epistemológica, ela serve para que se coloquem, como estamos salientando, alternativas para a melhor rentabilidade do trabalho etnográfico e, ainda, para que se esclareça um dilema que é próprio ao cientista.
Lévi-Strauss responde à própria pergunta sob forma de dicotomia para em seguida enunciar o dilema. Se o retorno ao passado permite "salvar um costume, ganhar uma festa, partilhar uma crença suplementar", o avanço no tempo pode trazer "curiosidades" dignas de enriquecer a reflexão.
Trata-se do jogo de damas e do seu reverso, o jogo conhecido como perde-ganha. Perde-se uma festa no tabuleiro em que vivem os selvagens, ganha-se no papel uma reflexão. Perde-se uma reflexão no papel, ganha-se uma festa no tabuleiro dos selvagens. Perde quem mais ganha, ou ganha quem mais perde? Eis finalmente o dilema explicitado: "Quanto menos as culturas tinham condições de comunicarem entre si e, portanto, de se corromperem pelo contato mútuo, menos também seus emissários respectivos eram capazes de perceber a riqueza e o significado dessa diversidade" (pág. 40). A apreensão da diversidade cultural está na razão direta da corrupção das culturas envolvidas.
Como estamos indiretamente salientando, o híbrido é o mais terrível dos monstros no universo fantasmático de "Tristes Trópicos". Para continuar a apreendê-lo é preciso que passemos à segunda distinção sutil elaborada no livro. O etnógrafo é levado a cair em cacoete de que nos fala Michel Foucault na "História da Loucura". Ao contrário do que pensam os partidários da análise como processo heurístico, quando o pensador ocidental divide ("partage") um todo, é para que opere a rejeição ("rejet") de uma das partes. Para que estabeleça uma hierarquia entre as partes, ou para que a parte rejeitada seja recalcada no tecido linguístico. No universo histórico relatado pelo etnógrafo, existem viagens e viagens. As "verdadeiras viagens" se confundem com as intrépidas viagens feitas por ocasião dos grandes descobrimentos. Na época dessas viagens, "um espetáculo ainda não estragado, contaminado e maldito se oferecia em todo o seu esplendor" (pág. 39) ao marinheiro. Suspira o etnógrafo: "Viagens, cofres mágicos com promessas sonhadoras, não mais revelareis vossos tesouros intactos!" (pág. 35).


A viagem ao Brasil constitui um modelo de viagem que é o da contraviagem; o grande autor ausente de "Tristes Trópicos", e não o é por mera coincidência, é o poeta português Luís de Camões

Já naquela época, no entanto, quando o puro era alcançado e tocado pelo puro, já se achavam ambos contaminados para sempre. Mas existem outras e mais falsas viagens, mais recentes também, de que a seguinte é exemplo: "Nossos modernos Marcos Polos trazem dessas mesmas terras, dessa vez em forma de fotografias, livros e relatos, as especiarias morais de que nossa sociedade experimenta uma necessidade mais aguda ao se sentir soçobrar no tédio" (pág. 35). À experiência sensual de novos e diferentes perfumes e sabores sucederam o espetáculo dessas especiarias morais, ou seja, "trivialidades e banalidades" que são "milagrosamente transmudadas em revelações" (pág. 16). Há sempre uma matemática moral montada a priori para contabilizar os efeitos mútuos de perda.

Colonizador, missionário, etnógrafo
Conclui-se que as diferenças empíricas suscitadas pela experiência das viagens transatlântica e doméstica são levantadas pelo etnógrafo para que, contraditoriamente e com o maior espalhafato, logo em seguida sejam reafirmados não só o conceito absoluto de viagem, como também o tema do repúdio a ele. Estranhamos que Jacques Derrida chegue às páginas do capítulo 28 de "Tristes Trópicos", intitulado "Lição de Escrita", julgando-as "belíssimas e feitas para espantar" (9). Se os poetas latinos, como nos ensina Ernst-Robert Curtius, costumavam comparar a composição de uma obra a uma viagem de navio, podemos comparar também a leitura a uma viagem. Derrida só pode achar que aquelas páginas são feitas para espantar porque talvez tenha perdido o leme do livro, que é a viagem, para se entregar exclusivamente à rota da sua obsessão, o estatuto da escrita ("écriture") na filosofia ocidental.
Ao chegar ao capítulo "Lição de Escrita", depois dessa outra viagem a que fora convidado desde a frase de abertura, o leitor de "Tristes Trópicos" não deve se espantar com a previsibilidade dos fatos relatados e das reflexões feitas ali pelo etnógrafo.
Trata-se de capítulo que já tinha sido enunciado inúmeras vezes anteriormente pelo correr do texto, só que de forma menos exemplar. O capítulo "Lição de Escrita" já está embutido na primeira pergunta que o leitor faz à letra do livro: por que esse infatigável e extraordinário viajante odeia a viagem? Já está ainda embutido na pergunta que faz no momento em se iniciam as viagens pelo interior do Brasil: por que esse viajante que odeia tanto a viagem vai suplementar a viagem transatlântica com viagens domésticas pelo Brasil? Já não adivinharia o leitor, pela sua própria experiência crítica, o que deve aguardá-lo em muitos dos capítulos? A crítica ao marinheiro-colonizador e ao marinheiro-evangelizador não teria necessariamente, em "Tristes Trópicos", o seu espelho na crítica ao viajante-etnógrafo? Os três não apenas pertencem ao Ocidente, mas não têm ainda como atividade em comum a viagem? Seria um deles melhor do que os outros, se são os três os que transpõem com maior desinibição a distância entre culturas diferentes, conspurcando-as?
Acertadamente Jacques Derrida observa que os três viajantes (colonizador, missionário e etnógrafo) são partícipes da "guerra etnográfica", ou seja, da "confrontação essencial que abre a comunicação (grifo nosso) entre os povos e as culturas, mesmo quando esta comunicação não se pratica sob o signo da opressão colonial ou missionária" (10). A diferença está em que, onde Derrida fala de comunicação, Lévi-Strauss sublinha o oposto, o "intacto". Fala de distância e separação. Adverte sobre aproximação e contágio, sempre adjetivando este de maneira negativa. Ou seja, ele fala da violência dos que transgridem os limites estabelecidos pela pureza cultural. E mais ainda: da violência contra si que cometem os que deixam que os limites estabelecidos pela pureza cultural sejam transgredidos.
Na solidão do etnógrafo e nas relações intersubjetivas na utopia é que há autenticidade. De que espécie? As últimas palavras de "Tristes Trópicos", na sua beatitude e serenidade, resgatam o ódio, a repulsa e a vergonha das primeiras frases do livro. O etnógrafo fala de experiência humana diante da natureza, que se expressa por sentimentos inexprimíveis. Daí o modo descritivo das frases e a ausência do outro. A contemplação de um mineral mais bonito do que todas as nossas obras. O perfume, mais precioso do que os nossos livros, aspirado na corola de um lírio. O piscar de olhos cheio de paciência, de serenidade e de perdão recíproco, que um entendimento involuntário permite por vezes trocar com um gato (pág. 392).
Do mesmo modo, como o aparecimento da linguagem se deu por acaso, assim também a viagem foi dada desde as primeiras páginas do livro como produto de um "golpe do acaso". "A Lição de Escrita", na extensão da sua descontinuidade, está "pré-meditado" pelo acaso da viagem, pela viagem como experiência maléfica, antes de o ser "pré-meditado" pelo fonocentrismo do etnógrafo. Qualquer penetração no espaço cultural do outro, qualquer intromissão singular na vida social do outro, produz a priori a violência. Podem-se usar mil e um exemplos para comprovar a presença da violência. Entre eles, o exemplo da desclassificação da escrita, tomada esta, ou não, como exemplar da época de Rousseau (1712-1778).

Desconstrução da viagem
A viagem ao Brasil constitui um modelo de viagem que é o da contraviagem. O grande autor ausente de "Tristes Trópicos", e não o é por mera coincidência, é o poeta português Luís de Camões (1524-1580). O grande livro ausente de "Tristes Trópicos", e não o é por mera coincidência, é "Os Lusíadas". A contraviagem acaba por desconstruir o conceito e o modelo de viagem tais quais foram descritos e configurados pela tradição do poema épico ocidental. Para melhor compreender a questão proposta por "Tristes Trópicos", será importante deslocar o eixo genealógico dos pais franceses de Lévi-Strauss, de que Rousseau é o melhor exemplo, e fazer o seu relato adentrar a linhagem de Dante Alighieri (1265-1321) e o universo da sua leitura, também contramodelar, do viajante e explorador Ulisses.
A viagem, suplemento involuntário a Rousseau, ou melhor dito, a contraviagem, filiação a Dante, pode ser lida no canto 26 da "Divina Comédia", em que o próprio poeta e Virgílio se deparam com Ulisses em chamas no oitavo círculo do inferno. Ali estão os maus conselheiros. Ulisses e Diómedes condenados por terem tido a idéia do invasor cavalo de Tróia. Ulisses recalca o sentimento de piedade para que possa entregar-se exclusivamente ao "ardor", que o leva a enfrentar o desconhecido. Atiçado pelo ardor da aventura, agora sucumbe em chamas no inferno. Virgílio pede a Ulisses que revele as circunstâncias da sua morte. Ulisses narra-lhe a última viagem.
No canto 26, Dante opera uma significativa mudança nas circunstâncias que encerram a viagem/vida de Ulisses. Em lugar do retorno a Ítaca e aos braços de Penélope, como ensina a lição clássica, fá-lo vítima de naufrágio frente ao monte do Purgatório. Esse deslocamento, como nos ensina John Freccero, nosso guia pela selva dantesca, só é possível porque a uma primeira morte, a morte do corpo, se segue "la seconda morte", a morte da alma: Escreve Freccero: "Devemos notar rapidamente que a distinção entre as duas espécies de morte é útil para explicar a diferença entre a morte natural de Ulisses, totalmente irrelevante para Dante, e a morte por naufrágio, que ele inventou" (11).
Voltemos a Lévi-Strauss: "Mas o problema persiste: como o etnógrafo pode escapar da contradição que resulta das circunstâncias de sua escolha? Tem diante dos olhos, tem à sua disposição, uma sociedade: a sua; por que resolve menosprezá-la e reservar a outras sociedades escolhidas dentre as mais longínquas e as mais diferentes uma paciência e uma dedicação que sua determinação recusa aos compatriotas?" (pág. 362).
Apesar do ódio que nutre à viagem, apesar da vergonha e repulsa que experimenta diante da lembrança dos antigos feitos, o viajante escreve "Tristes Trópicos", epitáfio das suas viagens e aventuras. Escreve-o como se narrasse uma história que finda num duplo naufrágio. Primeiro. O naufrágio da Europa diante do monte do Purgatório: "A aventura ao coração do Novo Mundo significa antes de mais nada que ele não foi o nosso, e que carregamos o crime da sua destruição" (pág. 371).
Segundo. O naufrágio do etnógrafo diante dos indígenas. À peroração que faz Ulisses aos tripulantes do barco: "Não fostes feitos pra viver quais brutos,/ mas pra seguir virtude e sapiência" (26, 119-120), segue-se o castigo que vem da montanha: "Que da nova terra veio um furacão" (26, 137), e a tempestade só pára até que "o mar (esteja) sobre nós cerrado" (26, 142). Em busca da salvação, na viagem do livro que se fecha, vaga o etnógrafo. "Adeus, selvagens!, adeus, viagens!" (pág. 392). "A vida social consiste em destruir o que lhe confere seu aroma" (pág. 363). O etnógrafo não precisa mais de palavras, permanece num espaço entre, "aquém do pensamento e além da sociedade" (pág. 392). A lição do silêncio.


Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico de literatura, autor de "Em Liberdade", "Keith Jarret no Blue Note", "Stella Manhattan" (Rocco) e "Nas Malhas da Letra" (Companhia das Letras), entre outros. Este trabalho é uma versão da primeira parte de um longo ensaio sobre o conceito de viagem em Lévi-Strauss e Antonin Artaud. Foi lido no Sétimo Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada, em julho de 2000.


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