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Uma meticulosa geometria do nada
João Almino
especial para a Folha
A mitologia individual do poeta
português Herberto Helder está
empenhada em criar ou descobrir o mundo, nomeando as coisas e suas imagens: "A poesia é um baptismo atónito, sim uma palavra/ surpreendida para cada coisa" ("Os Selos");
"Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a
palavra./ Toco a palavra apaixonante, se
toco a mulher/ com seu gato, pedra, peixe, luz e casa./ A mulher da palavra. A Palavra" ("A Colher na Boca").
Já se disse ser uma poesia surrealista.
Mas o trabalho apurado e rigoroso dessa
poesia com a imagem e com a palavra,
metendo "as mãos no idioma", está longe da escrita automática dos surrealistas.
Mais do que sonhar, se deixa sonhar, faz
o "inventário do sono" ("Os Selos") e
disseca a matéria do sonho já sonhado.
Associa o concreto ao metafísico, o cotidiano ao eterno. Uma imagem, uma mulher a lavar pratos: "O quotidiano estelar
das matérias: aço, louça" ("Os Selos, Outros, Últimos").
Uma simples garrafa com água: "... Esta coluna de água, bastam-lhe o/ peso
próprio,/ o ar à roda,/ ter sido olhada não
como imagem de uma garrafa/ mas como concreta e contínua forma;/ ou subir
na memória/ de alguém, que,/ vendo-a,/
sabe que vai desaparecer e arrebata,/
num afluxo molecular,/ não o nome dela: coluna ou garrafa ou centro do planeta, masà" ("Do Mundo", em "Poesia Toda", Assírio & Alvim, 1996).
Será preciso prova mais concreta de
que o cotidiano é a matéria, é o espírito,
são a permanência e os processos, é o
mundo? Palavras básicas, desse cotidiano eterno -nuvem, vento, ouro, astros,
cometas, estrela; chamas e fogo, noite,
luz e sombras; o caos, a eletricidade, o
medo; pulmões, umbigo, sangue, boca,
voz, palavra, poesia, mulher, amor,
Deus- irrompem em imagens surpreendentes.
Disse o crítico português Eduardo Prado Coelho que, nesse poeta, as palavras
dispersas se juntam umas às outras não
como ímãs que se atraem, mas seguindo
um princípio próximo dos sistemas
quânticos: "Quaisquer palavras que se
"desentranhem" do mesmo caos inicial
sustentam entre si relações que ultrapassam a gramática estabilizada das analogias". E acrescentou: "O que o texto institui é essa função de onda que as torna definitivamente não-separáveis".
O objeto que se cria
A poesia de
Herberto Helder dá a impressão de que
não comenta o mundo, de que não o descreve, de que as palavras não se referem a
um objeto, elas são a realidade mesma de
uma emoção, o objeto que se cria. E, no
entanto, a origem que detona o processo
criativo, o caos inicial do qual provêm as
palavras juntadas no poema tem aspecto
simples: "Basta um nome aprendido a
dormir, o movimento dos dedos/ em redor do copo"; (...) "sou elementar, anjos
são os primeiros nomes". Independente,
Herberto Helder escreve uma poesia difícil de classificar, mas de marca constante e inconfundível. Indiferente aos que
passam apressados vestindo as correntes
da moda, o poeta está plantado num cruzamento, a contemplar solitário a paisagem -ao mesmo tempo interna e externa, próxima e cósmica, concreta e abstrata- que cria com o mito cotidiano e
subvertido.
É surpreendente que assim seja, quando se sabe que pratica a poesia da vertigem e do desequilíbrio e o quanto sua vida teve de instável, durante os anos em
que sobrevivia à custa de empregos temporários.
Como em outra época o fizeram Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, esse poeta
nascido em 1930 no Funchal, Ilha da Madeira, que veio aos 16 anos para Lisboa,
inova a lírica portuguesa e exerce notável
influência sobre as novas gerações literárias em Portugal. De hábitos simples,
avesso a homenagens, evita entrevistas e
encontros literários por entender que o
que tem a dizer está em seus escritos. Na
década de 50, com vinte e poucos anos,
quase emigrou para o Brasil, como suas
duas irmãs. Depois de trabalhos temporários e de viagens por países da Europa
e da África, vive atualmente em Cascais.
É autor de mais de 20 livros de poesia,
entre os quais: "O Amor em Visita"
(1958), "A Colher na Boca" (1961), "Lugar" (1962), "Electronicolírica" (1964),
"Retrato em Movimento" (1967), "Antropofagias" (1971), "Photomaton &
Vox" (1979), "Os Selos" (1989), "Os Selos, Outros, Últimos" (1990); e "Do Mundo" (1994). A mais recente edição de sua
"Poesia Toda" foi publicada pela Assírio
& Alvim, de Lisboa, em 1996. Dedicou-se
também à ficção, havendo publicado o
livro de contos "Os Passos em Volta",
considerado uma revelação de vanguarda, por sua renovação da técnica e da linguagem, quando apareceu em 1963.
Elipse e concisão
"Apresentação do
Rosto", uma prosa poética fragmentada,
foi proibido pela censura quando apareceu em 1968, mesmo ano em que, por
apoiar a publicação de um livro do marquês de Sade, Herberto Helder foi condenado num processo judicial, mas, em
virtude da repercussão do episódio, obteve a suspensão da pena. Foi também
um dos responsáveis pela publicação
"Poesia Experimental 1", aparecida em
Lisboa em abril de 1964. Além disso, verteu para o português -e recriou nesse
processo- poemas do Antigo Egito, do
Velho Testamento, árabes, africanos, japoneses e de outras regiões do Oriente,
dos indígenas de diferentes partes da
América etc. ("O Bebedor Noturno", de
1961-66, e "As Magias", de 1987).
Território mágico
Existe uma harmonia na sua produção poética de "A
Colher na Boca", de 1961, a "Do Mundo",
de 1994, harmonia cujo território é o do
caos e da desarmonia. Concisa e elíptica,
no poema longo; observando as coisas
existirem por si mesmas sempre a partir
de um "eu" ("as coisas pensam todas ao
mesmo tempo", em "Do Mundo"; ou:
"Em transe: eu sou a coisa", em "Os Selos"); instaurando um território simultaneamente "mágico e tecnológico", no dizer da inglesa Juliet Perkins, autora do livro "The Feminine in the Poetry of Herberto Helder", a poesia de Herberto Helder é igual a si mesma, porque surpreende e inova a cada metáfora.
Se sua poesia é metafórica, a metáfora
não apóia uma descrição da realidade
nem serve à sua representação. Ela é frequentemente a própria realidade do poema, que deixa o significado sem chão,
suspenso no sublime.
Desarrumação do mundo
Existe uma pansubjetivação, que curiosamente
não leva a uma poesia confessional. Ao
contrário, se inscreve num processo de
impersonalização e de objetivação, pois
o "eu", assim como Deus ou a coisa, se
identifica com o objeto, com o mundo, se
dissolve nele, vê e ouve a partir das perspectivas variadas de um indefinido espaço cósmico. O "eu" é parte da matéria, da
substância do mundo: "Se afinal a substância/ de alguém que pôs a mão no fogo
é igual à substância do fogo/ enquanto
grita"//; "A substância de um homem e
de uma estrela; a mesma/"; (...) "Guio-me pelas luas no ar desfraldado e grito de
água para água...".
Poesia urgente
Como disse Maria
Lúcia dal Farra em seu livro pioneiro
-"Alquimia da Linguagem - Leitura da
Cosmogonia Poética de Herberto Helder"-: "Pela desarrumação do mundo
sacramentado e pela depuração alquímica da palavra, essa poesia se aplica no ofício de obtenção do vazio, na senda do silêncio veemente". Ao tentar captar o
abismo que separa o mundo dele mesmo, ela deixa como rastro uma "sintaxe
alucinada" (Prado Coelho) ou "de desabitação" (Dal Farra), bem como uma
meticulosa geometria do nada. É urgente
que o Brasil conheça melhor a poesia
desse poeta que, como um personagem
seu de "Os Passos em Volta", faz, "com o
inexplicável ardor de quem se inicia na
eternidade", uma "viagem sem fé, inconsequente", "possuído pelos dons infernais com que se cria um estilo sem tempo nem lugar".
João Almino é escritor e diplomata, autor dos romances "Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo" e "Samba-Enredo" (Marco Zero).
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