São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma meticulosa geometria do nada

João Almino
especial para a Folha

A mitologia individual do poeta português Herberto Helder está empenhada em criar ou descobrir o mundo, nomeando as coisas e suas imagens: "A poesia é um baptismo atónito, sim uma palavra/ surpreendida para cada coisa" ("Os Selos"); "Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra./ Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher/ com seu gato, pedra, peixe, luz e casa./ A mulher da palavra. A Palavra" ("A Colher na Boca").
Já se disse ser uma poesia surrealista. Mas o trabalho apurado e rigoroso dessa poesia com a imagem e com a palavra, metendo "as mãos no idioma", está longe da escrita automática dos surrealistas. Mais do que sonhar, se deixa sonhar, faz o "inventário do sono" ("Os Selos") e disseca a matéria do sonho já sonhado. Associa o concreto ao metafísico, o cotidiano ao eterno. Uma imagem, uma mulher a lavar pratos: "O quotidiano estelar das matérias: aço, louça" ("Os Selos, Outros, Últimos").
Uma simples garrafa com água: "... Esta coluna de água, bastam-lhe o/ peso próprio,/ o ar à roda,/ ter sido olhada não como imagem de uma garrafa/ mas como concreta e contínua forma;/ ou subir na memória/ de alguém, que,/ vendo-a,/ sabe que vai desaparecer e arrebata,/ num afluxo molecular,/ não o nome dela: coluna ou garrafa ou centro do planeta, masà" ("Do Mundo", em "Poesia Toda", Assírio & Alvim, 1996).
Será preciso prova mais concreta de que o cotidiano é a matéria, é o espírito, são a permanência e os processos, é o mundo? Palavras básicas, desse cotidiano eterno -nuvem, vento, ouro, astros, cometas, estrela; chamas e fogo, noite, luz e sombras; o caos, a eletricidade, o medo; pulmões, umbigo, sangue, boca, voz, palavra, poesia, mulher, amor, Deus- irrompem em imagens surpreendentes.
Disse o crítico português Eduardo Prado Coelho que, nesse poeta, as palavras dispersas se juntam umas às outras não como ímãs que se atraem, mas seguindo um princípio próximo dos sistemas quânticos: "Quaisquer palavras que se "desentranhem" do mesmo caos inicial sustentam entre si relações que ultrapassam a gramática estabilizada das analogias". E acrescentou: "O que o texto institui é essa função de onda que as torna definitivamente não-separáveis".

O objeto que se cria
A poesia de Herberto Helder dá a impressão de que não comenta o mundo, de que não o descreve, de que as palavras não se referem a um objeto, elas são a realidade mesma de uma emoção, o objeto que se cria. E, no entanto, a origem que detona o processo criativo, o caos inicial do qual provêm as palavras juntadas no poema tem aspecto simples: "Basta um nome aprendido a dormir, o movimento dos dedos/ em redor do copo"; (...) "sou elementar, anjos são os primeiros nomes". Independente, Herberto Helder escreve uma poesia difícil de classificar, mas de marca constante e inconfundível. Indiferente aos que passam apressados vestindo as correntes da moda, o poeta está plantado num cruzamento, a contemplar solitário a paisagem -ao mesmo tempo interna e externa, próxima e cósmica, concreta e abstrata- que cria com o mito cotidiano e subvertido.
É surpreendente que assim seja, quando se sabe que pratica a poesia da vertigem e do desequilíbrio e o quanto sua vida teve de instável, durante os anos em que sobrevivia à custa de empregos temporários.
Como em outra época o fizeram Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, esse poeta nascido em 1930 no Funchal, Ilha da Madeira, que veio aos 16 anos para Lisboa, inova a lírica portuguesa e exerce notável influência sobre as novas gerações literárias em Portugal. De hábitos simples, avesso a homenagens, evita entrevistas e encontros literários por entender que o que tem a dizer está em seus escritos. Na década de 50, com vinte e poucos anos, quase emigrou para o Brasil, como suas duas irmãs. Depois de trabalhos temporários e de viagens por países da Europa e da África, vive atualmente em Cascais.
É autor de mais de 20 livros de poesia, entre os quais: "O Amor em Visita" (1958), "A Colher na Boca" (1961), "Lugar" (1962), "Electronicolírica" (1964), "Retrato em Movimento" (1967), "Antropofagias" (1971), "Photomaton & Vox" (1979), "Os Selos" (1989), "Os Selos, Outros, Últimos" (1990); e "Do Mundo" (1994). A mais recente edição de sua "Poesia Toda" foi publicada pela Assírio & Alvim, de Lisboa, em 1996. Dedicou-se também à ficção, havendo publicado o livro de contos "Os Passos em Volta", considerado uma revelação de vanguarda, por sua renovação da técnica e da linguagem, quando apareceu em 1963.

Elipse e concisão
"Apresentação do Rosto", uma prosa poética fragmentada, foi proibido pela censura quando apareceu em 1968, mesmo ano em que, por apoiar a publicação de um livro do marquês de Sade, Herberto Helder foi condenado num processo judicial, mas, em virtude da repercussão do episódio, obteve a suspensão da pena. Foi também um dos responsáveis pela publicação "Poesia Experimental 1", aparecida em Lisboa em abril de 1964. Além disso, verteu para o português -e recriou nesse processo- poemas do Antigo Egito, do Velho Testamento, árabes, africanos, japoneses e de outras regiões do Oriente, dos indígenas de diferentes partes da América etc. ("O Bebedor Noturno", de 1961-66, e "As Magias", de 1987).

Território mágico
Existe uma harmonia na sua produção poética de "A Colher na Boca", de 1961, a "Do Mundo", de 1994, harmonia cujo território é o do caos e da desarmonia. Concisa e elíptica, no poema longo; observando as coisas existirem por si mesmas sempre a partir de um "eu" ("as coisas pensam todas ao mesmo tempo", em "Do Mundo"; ou: "Em transe: eu sou a coisa", em "Os Selos"); instaurando um território simultaneamente "mágico e tecnológico", no dizer da inglesa Juliet Perkins, autora do livro "The Feminine in the Poetry of Herberto Helder", a poesia de Herberto Helder é igual a si mesma, porque surpreende e inova a cada metáfora.
Se sua poesia é metafórica, a metáfora não apóia uma descrição da realidade nem serve à sua representação. Ela é frequentemente a própria realidade do poema, que deixa o significado sem chão, suspenso no sublime.

Desarrumação do mundo
Existe uma pansubjetivação, que curiosamente não leva a uma poesia confessional. Ao contrário, se inscreve num processo de impersonalização e de objetivação, pois o "eu", assim como Deus ou a coisa, se identifica com o objeto, com o mundo, se dissolve nele, vê e ouve a partir das perspectivas variadas de um indefinido espaço cósmico. O "eu" é parte da matéria, da substância do mundo: "Se afinal a substância/ de alguém que pôs a mão no fogo é igual à substância do fogo/ enquanto grita"//; "A substância de um homem e de uma estrela; a mesma/"; (...) "Guio-me pelas luas no ar desfraldado e grito de água para água...".

Poesia urgente
Como disse Maria Lúcia dal Farra em seu livro pioneiro -"Alquimia da Linguagem - Leitura da Cosmogonia Poética de Herberto Helder"-: "Pela desarrumação do mundo sacramentado e pela depuração alquímica da palavra, essa poesia se aplica no ofício de obtenção do vazio, na senda do silêncio veemente". Ao tentar captar o abismo que separa o mundo dele mesmo, ela deixa como rastro uma "sintaxe alucinada" (Prado Coelho) ou "de desabitação" (Dal Farra), bem como uma meticulosa geometria do nada. É urgente que o Brasil conheça melhor a poesia desse poeta que, como um personagem seu de "Os Passos em Volta", faz, "com o inexplicável ardor de quem se inicia na eternidade", uma "viagem sem fé, inconsequente", "possuído pelos dons infernais com que se cria um estilo sem tempo nem lugar".


João Almino é escritor e diplomata, autor dos romances "Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo" e "Samba-Enredo" (Marco Zero).


Texto Anterior: Herberto Helder: A menstruação quando na cidade passava
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.