São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2006

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Ponto de fuga

O apocalipse abjeto



Em "A Possibilidade de uma Ilha", são fortes e dolorosas as reflexões sobre o sentimento de envelhecer, sobre a fragilidade dos afetos, sobre o esgotamento do desejo e a nostalgia do vigor


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O novo livro de Michel Houellebecq, "A Possibilidade de uma Ilha" [Record], foi lançado por estes dias no Brasil. De todos os seus romances, é o mais confessional e o mais irregular.
A trama se passa num futuro próximo. Daniel1, humorista de profissão, é o narrador principal. Sua história vem entrecortada pelos comentários feitos séculos depois por clones longínquos desse primeiro Daniel, de números 24 e 25. A clonagem foi o meio pelo qual os humanos obtiveram a imortalidade, graças às pesquisas estimuladas pela seita de Elohim.
A humanidade quase inteira, recusando cada vez mais a velhice e o sofrimento, aderira a essa nova religião, que, misturando DNA e ETs, oferecia uma tranqüila eternidade na Terra. Os seguidores de Elohim, no livro, significam uma referência sem disfarce aos raelianos que existem de fato (para quem quiser, o site desses iluminados é www.rael.org). Daniel1 tem pontos em comum circunstanciais com o próprio Houellebecq (diretor de curta-metragem, morador da Espanha, ambos com sucesso e riqueza, interessados pelos raelianos/elohimitas).
Mas, sobretudo, é ao fundar sua carreira na provocação pseudocrítica, nas piadas politicamente incorretas, contra os árabes, os judeus, os católicos e o que mais se queira; é, ao calcular com cinismo suas estratégias vitoriosas, que o humorista Daniel1 se decalca no escritor Houellebecq.
Essa suposta semelhança explicaria as piores páginas, entre elas as cenas sexuais, cuja escrita é sem convicção. Como se o autor dissesse: "Tais trechos são necessários aqui porque o leitor espera um pouco de sacanagem apimentada". Nesses casos, as palavras se alinham mecânicas, como para cumprir uma obrigação ritual e desgastada. Também os personagens que compõem a seita são fantoches esquemáticos.

Arúspice
Se a hipótese de uma igualdade entre Daniel1 e Houellebecq for justa, aquilo que um diz sobre sua profissão corresponderia à lucidez do outro.
Ambos vêem seus contemporâneos como seres infelizes, desesperançados, mergulhados numa sociedade que reduziu os indivíduos a insignificâncias. Para os talentos espertos resta o oportunismo: "Em suma, como todos os bufões desde a origem, eu era uma espécie de colaboracionista".
São páginas dolorosas e fortes. Como são fortes e dolorosas as reflexões sobre o sentimento de envelhecer, sobre a fragilidade dos afetos, sobre o esgotamento do desejo, sobre a nostalgia do vigor. Uma antologia composta apenas por esses momentos reflexivos formaria um livro de grande moralista, no sentido clássico da palavra.

Salpico
"A Possibilidade de uma Ilha", fragmentos: "O que é um cão, a não ser uma máquina de amar? Apresentam-lhe um ser humano, dando-lhe a missão de amá-lo -e, por mais desgracioso, perverso, deformado ou estúpido que seja, o cão o ama". "A vida do homem se decompõe em duas partes: a primeira, em que ejacula cedo demais; a segunda, em que não consegue a ereção." "Eu começava a sentir que, fraco e frouxo, renascia nem mesmo um desejo de fato -pois a palavra me parece, apesar de tudo, pressupor uma crença mínima na possibilidade de sua realização-, mas a lembrança, o fantasma do que poderia ter sido um desejo. Eu via se perfilar a cosa mentale, o último tormento(...)"; "(...) tornei-me cada vez mais malévolo e, em conseqüência, cada vez mais cáustico; o sucesso, nessas condições, termina por chegar".

jorgecoli@uol.com.br


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