São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2006

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+ (C)ultura

A arte engajada

Mais importante poeta francês vivo, Yves Bonnefoy fala da relação com a pintura, defende o papel da crítica e diz que sua função é descobrir a verdade

PATRICK KÉCHICHIAN

A obra poética e também crítica de Yves Bonnefoy é uma das mais vivas e dinâmicas de nossos tempos -e também uma das mais comentadas. Obra em perpétua construção, ela nunca se fecha em si mesma. Quer ele se interrogue sobre a pintura ou a literatura, desde Piero della Francesca e Goya até Mallarmé, Yves Bonnefoy permanece sempre um homem de diálogo e de busca. À margem de vários livros que acaba de lançar [leia texto nesta página], respondeu sobre o sentido de seu trabalho.

 

PERGUNTA - Quais são, a seu ver, as relações entre pensamento e criação poética? Em que o poema tem, ou não, a proeminência sobre o trabalho especulativo ou analítico?
YVES BONNEFOY
- Compreendo que o sr. me coloque essa pergunta já de início, pois acabo de publicar quatro livros curtos que parecem distanciar-se do projeto da poesia, que pode parecer ser simplesmente o de escrever poemas -ou seja, reunir tudo o que somos nas perspectivas de uma existência, e não sob o olhar de um pensamento. A poesia é uma intensificação de nossa relação com os outros e com o mundo. É uma busca do imediato, com um saber encerrado nessa proximidade, mas um saber que não pode ser reduzido às redes da significação, que são o domínio da filosofia. Sim, para nos movermos dessa maneira, mais além da significação, é preciso atravessá-la com conhecimento de causa, senão permaneceremos inconscientemente prisioneiros de suas formas pouco aparentes, prisioneiros de uma pseudo-evidência que não é senão o pressentimento sonhado da realidade imediata, e não a própria realidade. Vem daí a necessidade de uma reflexão, para a qual pode ajudar a pesquisa filosófica, que analisa as falsas aparências de todo pensamento. A filosofia mais conceitual pode ajudar a poesia a livrar-se de alguns de seus extravios e, desse modo, ser mais plena e especificamente ela mesma. Mas é preciso continuar a afirmar que a poética deve conservar sua proeminência. Desejo que a intuição que a anima siga adiante, voltando-se para ver se a reflexão filosófica a acompanha.

PERGUNTA - O sr. está familiarizado com os mitos e seu estudo, mas não se rende diante do fascínio que eles podem exercer. Como esses mitos, que são capítulos daquilo que o sr. chama de "imaginário metafísico", não o distanciam do real, que continua a ser seu horizonte?
BONNEFOY
- É uma pergunta vasta, pois o mito das civilizações arcaicas, preocupadas em conferir um rosto a suas estruturas sociais, não guarda muita relação com aquilo que Ticiano ou Poussin colocam em cena em seus quadros. Mas vamos nos ater hoje a esse mito herdado da cultura greco-romana, um mito de entrada em cena interpretado, uma ficção que certamente encerra a memória de uma transcendência freqüentemente decidida divina, mas que a refrata por meio dos estratos de situações vividas no lugar terrestre. E isso por meio da graça da imaginação, que se compraz em dotar seus significantes -apesar de eles serem meramente humanos- de uma realidade sonhada que é superior à nossa realidade simples. São mitos que casam céu e terra, amor sagrado e amor profano.

PERGUNTA - Com certeza precisamos nos precaver contra esses belos mitos na poesia, à medida que confortam a necessidade de sonhar que nos faz esquecer nossa finitude. Mas como podemos nos precaver quando não conhecemos aquilo contra o qual nos precavemos?
BONNEFOY
- É preciso antes reconhecer que, se essa espécie de mito é ilusão, ao menos quando fala dos deuses, não deixa de ser verdade que ela nos oferece as chaves de uma transcendência autêntica na medida em que implica essas figuras divinas em circunstâncias humanas que, por serem tão facilmente "reinfladas" -como diz o Fauno em Mallarmé-, comprovam que possuem mais substância e profundidade do que o pensamento conceitual reconhece. Assim, o mito nos leva ao respeito pelo existir humano -ele nos predispõe a amar.


A poesia não é uma solidão -ela é, antes, o político em sua origem: ao mesmo tempo a fundação do grupo social e a dissipação das utopias

E, com isso, nos esclarece sobre o que acontece em nossa relação com o mundo: sobre nossas dúvidas e nossos temores, tanto quanto sobre nossa capacidade de confiança e consentimento. Devo muito a determinados mitos; sinto que eles aderem fortemente à escrita dedicada à poesia. Eu diria que falam dela quando acreditam que a poesia fala deles. É uma pena para nosso passado religioso que este não tenha se interessado antes ou por mais tempo pelo cristianismo helenizado que revitalizou o Ocidente no Renascimento.

PERGUNTA - O cristianismo, o sr. diz, possui a "intuição essencial" que ultrapassa "os mitos e dogmas que o vestem". Diz também que o que importa "é a pessoa, em seu instante e em seu lugar". Como distinguir a imanência de sua finalidade?
BONNEFOY
- Sua intuição, sob sua "vestidura de mitos"? Sim, eu sei até que ponto importa, até que ponto é decisiva a valorização cristã do "aqui e agora" por meio da divinização de um homem que sofreu e morreu "sob Pôncio Pilatos", desse modo fazendo da história o lugar da busca por um sentido na profundidade de uma natureza em condições, desde então, de tornar-se uma terra. Esse fato humano identificado com sua condição encarnada, essa "imanência", como o sr. diz, é de fato a única realidade, e o cristianismo a afirmou. Exceto por ter rapidamente se retratado com grandes doses de dogmas que falam de uma outra vida e utilizam aquela para empobrecer esta. E por que seria preciso temer que essa imanência -sim, gosto dessa palavra- permaneça aquém de sua própria "finalidade"? Esta última é, para cada pessoa, a consciência plena de seu valor absoluto. Quanto mais ela se assumir como ser finito, mais se identificará com os aspectos fundamentais de sua condição mortal e mais chance terá de aceder a sua plenitude de vida simples, mais além de todas as reduções que querem transformar as religiões ou os sistemas filosóficos em dogmas.

PERGUNTA - Apesar dos muitos caminhos que o sr. traça, detendo-se sobre a literatura tanto quanto sobre a pintura, o sr. não parece ter como meta constituir sua obra como uma soma, uma totalidade. Como o sr. definiria o tipo de conhecimento que determina seu trabalho?
BONNEFOY
- Eu me reprovaria se cedesse à tentação de uma obra concebida como totalidade, com uma ordem interior para reunir suas partes. Essa ordem seria ainda uma dessas imagens de mundo das quais a poesia quer se libertar. É inteiramente outra a relação que busca criar. Uma única grande intenção nela, é verdade, é esse retorno ao imediato, mais além das fragmentações e das solidões da palavra comum. Vem daí a obrigação, para os praticantes da poesia, de lembrar-se da tarefa que o uso desse recurso lhes exige, tendo como conseqüência para eles a verificação e reafirmação de um pequeno número de idéias fundamentais, idéias que, eu sei bem, reaparecem com freqüência demasiada em meus escritos. Mas, para que esses pensamentos permaneçam vivos e se aprofundem, é preciso evidentemente buscar aquilo que não se reduz ou que não quer se reduzir. De imediato, é toda a diversidade da busca artística ou filosófica ao longo dos séculos que se impõe à nossa atenção. Com um elemento a mais: para podermos nos manter atentos a essa experiência grandiosa e multiforme, precisamos confiar menos no intelecto e mais na simpatia, já que esta é a única que pode abrir para nós a interioridade, nos revelar a totalidade da obra ou do autor que escolhemos. Quero acreditar que o que me move, quando me debruço sobre pintores ou poetas, não são minhas convicções já estabelecidas, mas pulsões inconscientes cujo sentido ainda preciso descobrir, tanto quanto devo compreender as outras. E essas pulsões conduzem a direções imprevistas, e eis que isso desmonta o sonho que eu poderia nutrir de construir um belo edifício.

PERGUNTA - Não obstante tudo isso, qual é o valor dessas somas?
BONNEFOY
- Elas valem na medida em que são significantes, e podem ser os significantes de um sonho, precisamente de um sonho que se encontra dentro de cada um de nós e que, portanto, exige nossa atenção e reflexão -e, novamente, a mesma simpatia. Um sonho e o orgulho. O Deus que se afastou do mundo ocidental deixou para trás uma ilusão que ainda beneficia o demônio, que ainda sobrevive a Deus, pelo menos por algum tempo: a ilusão de acreditar que, se não somos mais do que transitórios em nossos corpos, nem por isso deixamos de ser espíritos capazes do ilimitado no plano do conhecimento.

PERGUNTA - O sr. é o poeta francês vivo que suscitou e ainda suscita o maior número de comentários. Como o sr. opera a junção entre o diálogo pedido por esses comentários e a tarefa solitária do poeta?
BONNEFOY
- Solitária a tarefa do poeta? Não. Quando ele se sente chamado, é verdade que está só e não pode deixar de está-lo, já que o chamado ecoa no mais íntimo do que ele é, entre suas recordações e seus desejos.
Mas ele não estaria à altura de responder a essa exigência se não percebesse que o faz apenas mal, deixando-se apegar a sonhos, do que decorre que ele precisa se reavaliar, ou seja, analisar essas miragens.
Mas ele não pode empreender esse trabalho a não ser que se coloque sob o olhar de outros, e disso decorre um segundo momento de sua criação, que se assemelha menos à poesia, mas que, na realidade, é sua própria alma: a obstinação e o reinício que, indo de encontro a tudo aquilo que a conhece pouco ou a censura, reafirma a importância de sua existência.
O poema é declarado apenas arte, mas, na verdade, nessa admissão ele dá provas de verdade. Ele abre o campo de uma busca pela verdade na qual está implicado o outro, na qual uma comunidade se constrói pela necessidade de dissociar o verdadeiro do falso, o palpável do ilusório.
A poesia não é uma solidão -ela é, antes, o político em sua origem: ao mesmo tempo a fundação do grupo social e a dissipação das utopias, que poderiam induzir o grupo social ao engano.
Conseqüência: quem pretende fazer poesia deve levar a sério o que a crítica lhe diz. Mas será que eu, de minha parte, sou capaz dessa escuta? Talvez não -é tão difícil!


Esta entrevista saiu no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.

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