São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2006

Texto Anterior | Índice

+ (c)ultura

Torres globais

Ataques do 11 de Setembro, que estão fazendo cinco anos, modificam o ensino de história nas universidades dos EUA, que passa a ver o país no conjunto de forças da política mundial

JANNY SCOTT

O presente costuma modificar a maneira como os historiadores pensam o passado. O trauma do 11 de Setembro provavelmente não será exceção: cinco anos depois dos ataques contra Nova York e Washington, muitos historiadores dizem que suas conseqüências estão deixando marcas no modo de escrever e ensinar a história americana.
A história dos EUA está sendo menos estudada como a de um país-Estado claramente empacotado e mais em um contexto global, como parte de algo muito maior, dizem vários historiadores. A idéia dos Estados Unidos como império também está na moda. E os historiadores dão mais atenção hoje a temas como a história turbulenta dos direitos civis.
Existe um interesse crescente pela história do terrorismo, dos muçulmanos na América, dos conflitos e intercâmbios culturais internacionais. A história da política externa está sendo repensada, segundo alguns historiadores, com menos ênfase na Guerra Fria e mais nas políticas pós-coloniais. A revolução iraniana e a crise dos reféns de 1979 a 1981 parecem momentos decisivos, de um modo que antes não pareciam.
"Para os historiadores, a história nunca está gravada em pedra", disse Joanne Meyerowitz, professora de história e estudos americanos na Universidade Yale, que editou a coletânea de ensaios "History and September 11th" (Temple University Press, 2003).
"Ela é escrita e reescrita a cada geração. Os fatos do presente, da era contemporânea, sempre nos ajudam a reavaliar os acontecimentos passados. E os fatos do passado sempre nos ajudam a reavaliar a era em que vivemos."

Perplexidade
Parte dessa mudança foi uma reação ao grande interesse dos alunos. Em detalhes vívidos, os professores lembraram de aulas que deram imediatamente após os atentados -a fome de entendimento dos alunos, a percepção do 11/9 como um divisor de águas em suas vidas, a repentina sensação de vulnerabilidade. Nos dias e meses posteriores, dizem os historiadores, eles usaram a história para esclarecer um presente que causava perplexidade.
"Para nossos alunos, ficou muito claro que em tudo -desde o que sentem ao estar num aeroporto, as relações com colegas de classe muçulmanos ou o que pensam sobre a possibilidade de passar um ano no exterior- existe a sensação de que sua americanidade não está imune ao resto do mundo ou é profundamente influenciada pelo papel dos EUA e sua relação com o resto do mundo", disse Melani McAlister, professora de estudos americanos e relações internacionais na Universidade George Washington.
Os acadêmicos discordam sobre o sentido dessa revisão da história americana, às vezes seguindo linhas ideológicas. Enquanto muitos historiadores dizem que o 11/9 acelerou a tendência à "internacionalização" da história americana -examinando o que Thomas Bender, professor na Universidade de Nova York, chamou de "uma história comum com causas comuns para os fatos centrais da história americana"-, outros disseram que o 11/9 renovou seu interesse por uma idéia quase oposta, a da excepcionalidade americana.
A excepcionalidade americana, a visão de que os EUA são fundamentalmente diferentes de outros países desenvolvidos e têm uma função especial no mundo, caiu em desfavor aproximadamente na época da ascensão da nova história social, no fim dos anos 1960, disse Stephan Thernstrom, professor de história na Universidade Harvard que se descreve como neoconservador. Mas, desde o 11/9, disse que se sentiu cada vez mais atraído pela idéia.
Ele comparou sua reação ao momento atual com a maneira como "o conflito maciço com o fascismo e depois a Guerra Fria enfocaram nossa atenção no que é nossa civilização, por que ela é diferente das outras. Com isso veio um certo sentido de maior ligação com nossa civilização e um desejo de defendê-la e protegê-la".

O mundo exterior
Os historiadores muitas vezes acham que os eventos contemporâneos influenciam o estudo da história. A decepção com a Primeira Guerra inspirou uma interpretação revisionista da Guerra Civil, de que ela foi desnecessária, segundo o professor Bender e outros; essa visão foi contestada depois da Segunda Guerra Mundial. A revolução da era Reagan trouxe um novo interesse pela história do conservadorismo americano; o movimento feminino ajudou a tornar a história das mulheres um campo próprio.
Nos anos 1990, a globalização incentivou a chamada internacionalização da história americana, com crescente ênfase nas abordagens comparativas e transnacionais.
Por exemplo, alguns historiadores dizem que começaram a ver a Revolução Americana como o resultado de pressões fiscais generalizadas, resultado da disputa entre as potências imperiais, e não apenas como produto da taxação britânica.
"Demoramos um pouco para reconhecer como o mundo exterior era importante para nossa vida doméstica", disse Joyce Appleby, ex-presidente da Associação Histórica Americana. "Isso exige uma mudança de consciência. Você não está apenas contando a história americana e onde ela se liga a outro país; você vê a América no mundo, afetando o mundo."
Essa tendência se acelerou depois do 11 de Setembro. Jan Lewis, historiadora da Universidade Rutgers, em Newark, que está escrevendo um livro sobre a história americana entre 1760 e 1830, disse que está trabalhando em vários capítulos sobre a guerra com os franceses e indígenas e as origens da revolução. Ela se interessou pela história dos soldados europeus enviados para a América do Norte "para lutar em um episódio de uma enorme guerra internacional".
"Acho que eu não estava sintonizada com essa dimensão da história alguns anos atrás", disse Lewis. "Percebi que o que eu achava especialmente interessante era o conflito entre os oficiais britânicos, que eu chamaria de idealistas, e os que eram realistas. Certamente surgem questões semelhantes à guerra no Iraque."
Desde o final de 2004, foi publicada meia dúzia de livros sobre aspectos dos EUA como um império. Amy Kaplan, ex-presidente da Associação de Estudos Americanos, disse que o imperialismo americano, antes considerado uma preocupação da esquerda, se tornou tema de discussão em todo o espectro político.
"Somos um império? Nesse caso, em que sentido?", disse Michael H. Hunt, professor de história na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill, descrevendo o debate. "É comparável a outros impérios? É igual a Roma?"
"Misturada a essa questão do império há a questão da hegemonia: você entende império apenas em termos formais de controle ou é mais global e sistêmico e talvez não necessariamente territorial?"
Mary L. Dudziak, professora de direito, história e ciência política na Universidade do Sul da Califórnia, disse que seus alunos exigiram que os professores dessem atenção ao lugar dos EUA no mundo. Eles ficaram subitamente interessados pelo islã. McAlister, da Universidade George Washington, disse que, quando começou a lecionar, em 1996, "você quase precisava discutir por que alguém, num curso de história americana, deveria pensar em questões globais".
A história das liberdades ou direitos civis também atraiu novo interesse. Eric Foner, professor de história na Universidade Columbia que se descreve como liberal, disse que os anos passados desde o 11 de Setembro enfocaram a atenção no que ele chama de "altos e baixos na história da liberdade em nosso país. Não é uma característica constante na sociedade americana; o respeito pelas liberdades civis é na verdade bastante recente e frágil".

Tirania da maioria
Thomas L. Haskell, historiador da Universidade Rice que se declara politicamente independente, cita trechos de Alexis de Tocqueville sobre a tirania da maioria em seu curso sobre a história intelectual e cultural dos EUA.
Depois de assistir à cobertura da mídia sobre o atentado ao World Trade Center, ele lembra que foi imediatamente dar uma aula e fez a previsão de que as liberdades civis "levariam uma surra".
Ele baseou sua previsão ou declaração no passado -o "medo do comunismo" logo depois da Primeira Guerra, a prisão dos nipo-americanos depois de Pearl Harbor. Em uma entrevista, o professor Haskell disse que reprova os professores que fazem propaganda, mas acredita que eles devem identificar seus valores diante dos alunos. Por isso, disse que fez questão de chamar a atenção dos alunos para a questão da tortura.
Tendo passado 11 meses em Saigon como assessor da Marinha vietnamita durante a Guerra do Vietnã, ele disse que se considera em condições de contestar as sugestões do governo de George W. Bush de que a natureza da ameaça terrorista justifica afrouxar as regras dos métodos de interrogatório. Disse que procurou oportunidades no material de ensino para levantar essa questão.
Haskell afirmou ter sofrido uma espécie de inversão em seu próprio pensamento.
"A terrível crueza e a brutalidade envolvidas na colonização da Virgínia no século 17 assumem uma nova relevância", disse. "Acho que todos os episódios de superioridade desenfreada começam a se encaixar em um padrão que nos faz perguntar: o que há na cultura americana que nos coloca repetidamente nessa posição?"


Este texto saiu no "New York Times".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


Texto Anterior: + lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.