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O escândalo do nazismo de cara nova
JOSÉ GALISI FILHO
especial para a Folha
"Regras para um Parque Humano", o "paper" de 43 páginas
lido por Sloterdijk no castelo de
Elmau, na Alta Baviera, em colóquio internacional sobre Heidegger, ultrapassou as fronteiras da
tolerância e do consenso sobre os
quais se alicerça a intelligentsia
alemã, desencadeando um ajuste
de papéis nas relações entre a mídia e os intelectuais.
Desde a "Polêmica dos Historiadores" ("Historikerstreit"), em
1984, sobre o revisionismo do
passado nazista, que consolidava
o papel hegemônico de Habermas
como a autoconsciência da esfera
pública, no início da longa coalização conservadora de Kohl, poucas discussões mobilizaram o debate público nessa escala e intensidade. Como declarou o "Frankfurter Allgemeine Zeitung", o
"pathos" antidemocrático do discurso de Sloterdijk seria, de fato, a
"fundação metafísica" da República de Berlim e o sintoma do horizonte intelectual decorrente de
uma nova constelação de poder.
Seria preciso distinguir, no entanto, pelo menos duas polêmicas
em curso. A primeira envolveria a
genética, já que o discurso de Sloterdijk se propunha a reinterpretar a mitologia do Além-do-Homem nietzschiano em nova base
epistêmica, no território inaugurado pela clonagem. As regras
desse "Parque Humano" constituiriam uma modalidade de "metanorma" para além do humanismo clássico, baseada num conceito ampliado de humanidade, para
o qual não existiria ainda nenhuma regra e, portanto, uma normatividade que se projete sobre o devir do homem para modelá-lo
moral e geneticamente ou para
"autodomesticá-lo", nas palavras
de Sloterdijk, eliminando o que é
espúrio em sua natureza.
Eugenia disfarçada
A intervenção era também uma
provocação calculada, com a ambiguidade dos malabarismos verbais típicos de seu estilo, mas o tiro saiu pela culatra, pois ficou claro a todos que Sloterdijk estava falando, de fato, de eugenia, seleção
genética por uma "elite", ou mesmo técnicas abortivas pré-natais,
palavras que são um tabu absoluto para os alemães.
Se, diante da televisão, Sloterdijk afirma, com seu mestre Heidegger, que essas técnicas de seleção garantiriam a "entrega amorosa do Ser", como um presente
de chegada à vida, apenas, contudo, para os que são "convidados"
a nascer, passagens do discurso
como essas parecem não deixar
qualquer dúvida sobre a recaída
fascistóide de um ex-intelectual
de esquerda convertido em "jovem conservador": "No futuro será necessário jogar este jogo ativamente e formular um código de
técnicas antropológicas. Um tal
código modificaria a posteriori a
significação do Humanismo clássico...". Ou adiante: "Temos de
entender que desde sempre os homens foram "fabricados" por uma
combinação de regras de classes e
castas, regras de casamento e educação; trata-se sempre de uma seleção. Neste meio tempo, novas
possibilidades de otimização da
espécie humana estão à vista".
Ou, ainda pior, a "autodomesticação" nietzschiana de Sloterdijk
descobre "novas qualidades" no
curso de nossa evolução.
Acusado de não assumir seu
próprio argumento, Sloterdijk defende-se, afirmando que seria
preciso distinguir uma "medicina
genética legítima para a otimização do indivíduo e uma biopolítica ilegítima para grupos". Ele não
estaria propondo uma "elite genética desatrelada do resto da humanidade", mas uma nova base
de normatividade para esse desenvolvimento. Em outras palavras, se até agora a engenharia genética despertava no grande público sentimentos difusos na expressão inocente da ovelha Dolly,
o "paper" de Sloterdijck deu a ela
finalmente o rosto de Nietzsche e
o sotaque do chauvinismo alemão.
A reação a essas liberdades verbais de Sloterdijk foi violenta. O
redator-chefe do "Die Zeit", Thomas Assheuer, denomina o paper
de Sloterdijk de "Projeto Zaratustra", um escândalo intelectual que
avança nas "visões de mundo delirantes de Nietzsche e Heidegger". Acuado, Sloterdijk desvia o
foco do debate e, no mesmo jornal, lança um ataque pessoal a
Jürgen Habermas ("A Teoria Crítica Está Morta"), a quem acusa
em carta aberta de "jacobinismo
intelectual". Daí origina-se uma
segunda polêmica, envolvendo o
significado e o futuro da Teoria
Critica, seja como instituição acadêmica ou como expressão teórica -para Sloterdijk- de um
consenso já superado politicamente.
Equívoco grosseiro
Já em seu último livro, "Esferas", lançado pouco antes da polêmica, Sloterdijk preparava esse
ataque a Habermas, blasfemando
contra o Estado de Bem-Estar Social como a instância que "priva o
homem de seu verdadeiro destino". Agora, com Nietzsche, Heidegger e metáforas tomadas de
empréstimo da biologia molecular, comete o equívoco grosseiro
de identificar a Teoria Crítica na
pessoa de Habermas -o único
que, efetivamente, já havia liquidado a Teoria Crítica com o "linguistic turn" de sua "Teoria da
Ação Comunicativa".
Nessa mesma carta, Sloterdijk
referia-se ao passado da Teoria
Crítica -sob a égide de Adorno
na Escola de Frankfurt e depois
representada por Habermas na
República de Bonn, ambas as formações alicerçadas numa democracia ainda precária-, em que a
legitimidade intelectual nasce necessariamente da má consciência
em relação ao passado. Para romper com essa má consciência "paterna", Sloterdijk invoca outros
"mestres" intelectuais na trilha
oposta daquela fundada por Kant.
A resposta de Habermas no "Die
Zeit" é fulminante e bem curta.
Há espíritos "grandes" e "pequenos" na tradição. Geralmente são
os "pequenos" que atendem ao
chamado quando invocados, tomando grupos e pessoas como reféns de idéias estapafúrdias.
Em mais um editorial de primeira página do "Die Zeit", Assheuer afirma que as vagas metáforas de genética que Sloterdijk alinha em nome de um acerto de
contas com o "Humanismo" derrogado não são outra coisa senão
a expressão acabada da legitimação da injustiça social que se segue ao desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social. Com o
fim dessa medida de justiça, os
mais fracos serão e já estão sendo
de fato exterminados pela economia global.
Se o humanismo está liquidado,
se no lugar da ideologia e da política temos a genética, então o desemprego em massa não é mais
um escândalo, e, portanto, Sloterdijk teria finalmente dado forma
mental à Nova República Berlinense.
José Galisi Filho é doutorando em germanística na Universidade de Hannover (Alemanha) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal (Capes).
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