São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2000

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+ 3 cartas

"Vem cá, Luiza/ Me dá tua mão/ O teu desejo é sempre o meu desejo/ Vem, me exorciza..." Luiza


Rio, 22 e 27/09/1958
Caro Vin
Achei a letra de "A Felicidade" ótima e cheia de "ninhos de passarinhos". O samba está muito bom e gostaria que estivesses aqui para ouvi-lo agora.
São cinco horas da manhã e eu rolei, rolei e não dormi de aflito. As modificações que fiz (perdão 1.000.000 de vezes poeta) com tua licença não alteraram em nada a beleza e a simplicidade da letra. O samba ficou ótimo, letra e música perfeitos e todo mundo gostou, exceto o (Marcel) Camus!
Ele já havia argumentado que quando o sol subia a música descia e eu "provei" a ele que a descida inundava tudo da luz preternatural quando as pequeninas notas encontravam sua TÔNICA.
Camus também dizia que quando, em outro trecho, a música devia descer, ela subia e eu tive de dizer-lhe que tudo que sobe desce moralmente e quando descemos aos olhos do pecata mundi a alma é inundada pela estática luz preternatural de mil sóis que brilham sempre no sempiterno.
Desde que partiste não te trai com outros parceiros. Fiz apenas duas melodias que te aguardam.
Bem Vin, é dia e os passarinhos pipilam na doçura agreste dos campos de asfalto. Morro de sono.
Adeus
Aguardo ordens
Queijos
Tomas
P.S. Se viesses por uma hora até o Rio era uma beleza.
Au revoir
Antoine Charles Jobin.

Ciudad de Santa Maria Porciuncula,
La Reina de Los Angeles,
Vina meu amor
(A eternidade do nosso amor foi reconhecida, há um mahakalpa atrás, pela polícia do espaço).
É isso mesmo, o produto do trabalho é o resultado. Era bom participar da vida, de tudo, mas, por hora, estou morando no quarto de Sartre, de onde só se sai quando a comida acaba, para ir ao mercado. Me julgo um herói; não ria. Um homem que saiu da "terra quente" e foi para a "terra fria" combater os bárbaros, sem maiores conhecimentos da língua e dos costumes e da guerra propriamente dita.
Morro depois, em solo pátrio, em consequência de ferimentos recebidos em combate. A estátua será roubada da praça numa noite úmida (O Rio é muito úmido... meu avô dizia) pois a vida, nesta altura, estará muito mais cara.
Vina, meu amor, vou ver se desamarro.
O Argentina deixa NY no dia 3 de março. Seria lindo pegar aquele avião que faz LA-Panamá-Rio! Hoje!! Mas não dá. Andar e mais andar e a vida a bordo. Socorro!
Aqui em LA não tem a umidade indispensável à vida dos ninfos. A pele racha e o ninfo desaparece, pois não têm existência real e seus ossos são feitos de espuma solidificada pelo poder das ilusões. Onde não dá taboa não dá ninfo.
Viva o Brejo!!! Umidade, marinha ou serrana, mas Umidade. O Rio é muito úmido, Petrópolis é muito úmido, Viva o Brejo! Ah! que vontade de gargarejar em coro o chopp do Velas, umidade por fora e por dentro, ninfos e ninfetas na roda.
A umidade facilita o contato, sabeis.
Aos beijos, Antonio Choppel vulgo Copélia.
Te vejo.
O inhambu gosta de chumbo 7. Já o macuco dá preferência ao chumbo 5.

Cartas enviada a Vinicius de Moraes



Desert Palm Springs, 23/12/1968
Meu querido
Muita saudade. Estou aqui na casa do Sina. Pra variar não tenho conseguido trabalhar com ele. Ontem dormi à meia-noite e acordei hoje muito cedo. Na hora do breakfast eu soube que nosso host pegou o avião à 1h30m da manhã, foi pra Las Vegas e voltou hoje às 9h30m. Acordou o piloto e foi jogar no Caesar's Palace. Aqui é Califórnia, sul de Los Angeles, no caminho para o México...
De manhã toco um violãozinho pra espantar o frio e a solidão, no meu quarto. O sol brilha sempre, mas o frio é demais. À uma da tarde, de suéter, camisa e camiseta vou até a beira da piscina tomar um solzinho gelado. No horizonte, perto, um pico de 4.000 m coberto de neve. Quando cheguei, onda de frio, snow storm, estava nevando em Los Angeles!!! o que não acontece há 30 anos. Achei uma biografia do Sergei Vasilyevich Rachmaninoff e estou lendo a vida toda dele. Vida muito dura.
Viveu setenta anos e acabou aqui na América. Neste momento escuto as vozes dos astronautas que estão a 200.000 milhas da Terra. Vejo a imagem da Terra televisada do espaço. Vejo a América do Sul e quase que posso ver o litoral do Rio onde você está.
No portão do Sina tem escrito: "No trespassing. Survivors will be prosecuted". E no tapete da varanda da entrada: "GO AWAY". A casa tem dois cachorros e o Sina não tem pena dos chatos e diz que ele só tem esta vida pra viver.
Já o Rachmaninoff se queixa de estar longe da família e da sua adorada Natasha e do desconforto das viagens.

Carta a Paulo Jobim



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