São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2000

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Obra lançada nos EUA confronta afirmação da individualidade com a ânsia de totalidade do mito da caverna

Freud e Platão na arena



Richard Rorty
especial para "The NYT Book Review"



A filosofia e a psicanálise são tão relacionadas quanto a fusão e a fissão. Os filósofos procuram pontos em comum, os psicanalistas buscam idiossincrasias. Desde Platão os filósofos tentam responder à pergunta: "O que é uma vida boa para um ser humano?". Essa pergunta pressupõe um "tamanho único" para qualquer pessoa -que todos temos o mesmo mecanismo embutido ("razão", "natureza humana") que nos conduz ao mesmo objetivo. Todos estamos aqui pelo mesmo propósito. A filosofia nos ajudará a entender qual é esse propósito e o fará nos desviando da aparência em direção à realidade -da aparência do mundo, visto de um ângulo meramente subjetivo, para como ele é objetivamente e, portanto, do que apenas parece bom para o que é realmente bom. Jonathan Lear, que é professor de filosofia na Universidade de Chicago e também psicanalista, começou como comentarista de Platão e Aristóteles, mas logo se fascinou por Freud. Freud diz que cada pessoa é conduzida pela vida por um mecanismo diferente, um conjunto único de fantasias erráticas, em geral inconscientes, que determinam o que cada um considerará uma vida feliz e plena.

Natural e duvidoso Lear passou grande parte de sua carreira intelectual tentando entender a tensão entre a afirmação de Platão e Aristóteles de que alguns objetivos são naturais aos seres humanos e a dúvida de Freud sobre a possibilidade de classificar as vidas do fetichista por pés, do avaro acumulador, do penitente autoflagelador, do pedófilo, do poeta romântico e do candidato a dominador do mundo em termos de maior ou menor naturalidade. Freud pode afirmar que a sociedade deve intervir para evitar a concretização de alguns desses objetivos (por exemplo, o do pedófilo e o do dominador do mundo). Mas, fora a utilidade social, há pouco espaço no pensamento de Freud para uma visão objetiva, neutra e livre de fantasias, na qual os objetivos do pedófilo, do penitente e do filósofo possam ser ordenados hierarquicamente. Essa profunda diferença entre a visão platônica ou aristotélica e a freudiana é ocultada pelo fato de que Freud fantasiava ser um cientista obstinado em busca da verdade objetiva e por sua afirmação de que a psicanálise é capaz de trazer os pacientes de volta à realidade. Mas a realidade em questão não é o "realmente real" de Platão. Quando a utilidade social é deixada de lado, a realidade em questão é apenas algo em que o paciente deveria acreditar para evitar a internação ou para ser um pouco menos infeliz. Por todos esses motivos, não há muitas pessoas que apreciem igualmente Platão e Freud, e menos ainda pessoas capazes de se movimentar entre as discussões contemporâneas entre os filósofos e a literatura psicanalítica, altamente técnica, com tanta facilidade quanto Lear -uma facilidade que se revelou na admirada coleção de ensaios "Open Minded" (De Mente Aberta, Harvard University Press, EUA), publicada há dois anos. O novo livro de Lear, "Happiness, Death and the Remainder of Life" (Felicidade, Morte e o Restante da Vida), é muito mais ousado e instigante que o antecessor. No brilhante capítulo final, Lear interfere com firmeza e até entusiasmo em favor de Freud e contra Platão. Esse capítulo se concentra no "mito da caverna" -a história que Platão conta em "A República" sobre como o uso da razão pode nos libertar da caverna escura do mundo das aparências e nos conduzir para o mundo real, em que os objetos são vistos como realmente são, irradiados pela luz que flui do que Platão chamou de Bem. Esse movimento ascendente em direção à luz, culminando numa visão gloriosamente unificada do todo, foi elaborado por Agostinho, Espinosa e Hegel e se tornou a metáfora central -a fantasia central- da filosofia ocidental. No relato de Lear, Freud acreditou nessa fantasia "até o momento em que escreveu "Além do Princípio do Prazer" (1920)", mas, "na perspectiva dessa obra, a metáfora da caverna dá uma falsa visão da totalidade das possibilidades humanas". Pois em seu último período Freud nos ajudou a ver que "toda a metáfora da caverna (...) é mais uma visão restrita" dessa totalidade. Ao abandonar essa metáfora, diz Lear, Freud atingiu "uma profunda rejeição (...) da compreensão teleológica do ser humano". Ele nos fez ver que qualquer suposto limite à gama de possibilidades humanas, qualquer contexto religioso ou filosófico em que pretendamos incluir toda a gama de possíveis vidas humanas, sempre será a projeção de determinada opção dentre essas possibilidades, o exercício de uma fantasia particular, uma imagem da existência humana numa perspectiva particular.

Fantasia particular
A lição que Lear tira da realização de Freud não é que "o homem é uma paixão fútil", como Sartre, mas algo mais parecido com a feliz percepção de Nietzsche de que o horizonte se desloca junto conosco, de que haverá um contexto além de cada contexto, uma perspectiva que transcende qualquer perspectiva anterior. Mas tanto Nietzsche como Lear admitem que essa mesma imagem de expansão infinita é desenhada de uma determinada perspectiva, concretiza uma fantasia particular e não pode querer representar o único objetivo verdadeiro da vida humana.
Lear vai além de Freud de diversas maneiras, as quais Nietzsche teria endossado de bom grado. Ele escreve, por exemplo, que, "se considerarmos a civilização em si numa rota de evolução que inclui o judaísmo, o cristianismo, a psicanálise (...), veremos a psicanálise como herdeira dos problemas de seus precursores. (...) Se o judaísmo é o pai, e o cristianismo, a mãe, como posso encontrar meu lugar? A resposta certa não é -como fez Freud- tentar responder a essa pergunta, mas romper com a fantasia que a formula". Assim como devemos abandonar a idéia de que a reflexão revelará um objetivo que foi definido antes de todos nós, também devemos desistir da idéia de que nossa civilização, ou nossa espécie, segue um caminho que de alguma forma foi traçado antes. Deve-se abandonar a teleologia em pequena e em grande escala.
Nesse trecho e em vários outros, Lear critica muitas idéias tardias e estranhas de Freud. Ele não acha que "instinto de morte" seja um nome adequado para o impulso que nos leva a desprezar e transcender qualquer visão proposta do bem. A agressão, ele afirma, não é produto de um impulso especial. Ela "emerge de um colapso dos esforços da mente para fazer sentido", da incapacidade da fantasia de coordenar tudo, sem deixar restos. Esse colapso pode ser "o motivo para a agressão, mas também pode ser motivo de criatividade e crescimento. Também pode ocasionar absolutamente nada, apenas uma interrupção momentânea do fluxo normal de atividade mental". O resultado desse "corte", ele continua, pode ser a caída na psicose permanente, a conversão à religião ou ao ateísmo, o início de um tratamento psicanalítico de sucesso, a construção de um novo sistema filosófico ou apenas um hiato na rotina.
A maneira original e frutífera de Lear unir a filosofia e a psicanálise se dá por meio da analogia entre o fracasso das descrições filosóficas da natureza humana em abranger todas as possibilidades humanas e o fracasso da fantasia do analisando em manter afastado tudo o que ele prefere não saber. Assim como nunca haverá o tipo de visão absoluta e incorrigível do todo que Platão desejava, nunca haverá o que Lear chama de "pessoa psicologicamente sábia", alguém que atingiu a "normalidade psíquica absoluta". O fato de não poder existir tal pessoa "não é, contrariando Freud, tanto uma limitação da psicanálise quanto uma celebração das possibilidades humanas".
O livro de Lear demora um pouco para decolar, infelizmente. Começa com uma leitura bastante calculada, embora criativa, da "Ética a Nicômaco" de Aristóteles -livro que só os professores de filosofia amam. Mas os potenciais leitores não devem desanimar diante do título enigmático de Lear nem de seu trajeto em ziguezague até o último capítulo, arena do confronto entre Platão e Freud. A encenação da luta é admirável, e o livro interessará qualquer pessoa que tenha sido marcada por um desses homens.


Richard Rorty é filósofo americano, professor na Universidade de Stanford e autor, entre outros, de "Para Realizar a América" (DP&A) e "Ensaios sobre Heidegger e Outros" (Relume-Dumará).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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