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Ponto de fuga
A pausa que refresca
Numa de suas vindas a São Paulo, Baudrillard pediu para rever "uma bunda" que o encantara em visita anterior; nenhum monumento oficial marcara o filósofo,
mas a publicidade
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
O slogan de São Paulo nos
anos 1950 era "a cidade
que mais cresce no
mundo". Para as comemorações de seu quarto centenário,
Oscar Niemeyer criou uma voluta ascendente que deveria ser
um monumento e terminou
não sendo.
Afirmou-se porém como um
símbolo em sentido pleno: os
paulistanos reconheciam-se
nele pela beleza nítida das formas seguras, que pareciam
conter um orgulho firme de
progresso. Dizem que, para essa invenção tão feliz, Niemeyer
teria se inspirado em um gráfico que atestava a expansão da
cidade.
De fato, naqueles anos prósperos, São Paulo crescia muito
e rapidamente. Rapidamente
demais, porém. Brotaram predinhos neutros e banais, em
desordem, sem planejamentos
dignos desse nome, à mercê
certamente dos interesses
imobiliários os mais ávidos. Via
de regra, o material empregado
era de péssima qualidade.
Não é preciso exame microscópico nem estudos estatísticos para constatá-lo: basta levantar os olhos para os grandes
paredões cegos que formam as
laterais dos prédios. Difícil
achar um que não esteja maculado por manchas de vazamentos, recoberto por pústulas de
salitre. Esses construtores ou
empreiteiros chegaram ao sentido mais substancial do lema
proclamado pela arquitetura
moderna, "less is more". More
money, of course.
Fluxo
Tudo é feio e ordinário na arquitetura média, de consumo,
em São Paulo. A paisagem paulistana evoca podridão, monturo. Nem por isso a cidade é menos fascinante. Não graças a
qualquer beleza descortinada.
Pode-se amá-la, sem demagogia, por sua população, pela evidente intensidade humana, pela energia concentrada que a
movimenta. A beleza de São
Paulo está no seu estresse.
Pop Art
Mas ninguém agüenta estresse o tempo todo. Com adrenalina baixa, São Paulo ficaria
só com a visão acinzentada dos
resíduos decompostos, não fossem os outdoors, os cartazes, as
imagens que a publicidade espalha. Eles concorrem com
aqueles paredões encardidos e
manchados, fazendo vibrar cores, rostos, corpos. Trazem humor, imaginário, erotismo.
[O curador] Nelson Brissac
conta que, numa de suas vindas
a São Paulo, Jean Baudrillard
pediu para rever "uma bunda"
que o encantara em visita anterior. Nenhum monumento oficial marcara o filósofo, mas um
enorme painel que ficava no
largo do Arouche, uma publicidade sabe-se lá para que, pois as
bundas vendem qualquer coisa.
Encalacrado nos engarrafamentos ou desviando o olhar
por uma janela mais elevada ou
ainda andando pelas ruas, depara-se com a fantasia dessas
imagens. Curiosamente, elas ficam na memória mais do que
os próprios produtos anunciados. Isso, porém, é problema de
marqueteiros e publicitários.
Importa o fato de que fazem
sonhar.
Agora há uma lei, decreto ou
qualquer coisa assim, dos que
mandam e querem solucionar
problemas com uma penada.
Parece que ela vai suprimir essas visões. Vamos ser obrigados
a nos contentar com os paredões sujos e, como embelezamento, com estátuas que o poder público oferece: o duque de
Caxias, o Simon Bolívar, o Pedro Álvares Cabral...
Haja estômago.
Modos
São Paulo é São Paulo: nem
Londres, nem Paris, nem Roma, nem Nova York podem lhe
servir de modelo. Só vai melhorar com atenção cuidadosa em
intervenções delicadas, ponto
por ponto. Respeitando a desordem que faz dela o que é. Recuperando os traços culturais
que são os seus, sem artifícios
autoritários, sem soluções miraculosas. Estamos bem longe
da conta.
jorgecoli@uol.com.br
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