São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2006

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Sóbrio e erudito, "K.", do crítico Roberto Calasso, interpreta os romances do escritor tcheco a partir de sua biografia

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

P oucos textos na história da literatura têm uma fortuna crítica tão grande quanto a história do homem que chega "diante da lei" e ali permanece durante toda a vida, proibido de passar por um guardião. Trecho central de "O Processo", de Franz Kafka, a narrativa é assim explicada por Roberto Calasso em "K." (Cia. das Letras, trad. Samuel Titan Jr., 296 págs., R$ 46), ensaio publicado em 2002 sobre o escritor tcheco e agora lançado no Brasil: "São muitos os comentários e glosas da história (...). A mais longa e convincente foi escrita pelo próprio Kafka -e chama-se "O Castelo". Para entendê-la, é preciso substituir na história a palavra "lei" pela palavra "castelo". E então ler "O Castelo"." Há talvez algo de contraditório em um projeto analítico que, ao ser lido, sugere que se retorne à obra interpretada para "entendê-la": nada contra, na verdade, esse caminho de retorno, que pode ser muito eficaz. Mas fica a desconfiança de que a frase de efeito se esgota no efeito e que, efetivamente, a obra de um autor como Kafka continua bastante resistente à crítica.
Na prática, ela está sujeita com muita freqüência a leituras estapafúrdias, nas quais tudo é alegoria de tudo, ou a paráfrases construídas com maior ou menor grau de sofisticação, em que enredos são rearranjados e recontados na tentativa de, com isso, iluminar aspectos até então despercebidos.
É claro que a segunda opção deve ter um rendimento maior. O problema é que, no caso de Kafka, há uma compulsão quase irresistível em aliar a isso o confronto com as cartas e os diários e a tomá-los não "apenas" como construções literárias mas como balizas a guiar a compreensão, como se fosse possível a todo instante reescrever "O Outro Processo" [ed. Garamond], de Elias Canetti.
Um dos pontos que complicam o livro de Calasso é esse. Ele até constrói argumentos interessantes, principalmente no início do volume, quando tenta demonstrar que "O Processo" e "O Castelo" são romances muito próximos (no primeiro, Josef K. desejaria subtrair-se à "eleição"; no segundo, K. desejaria a "eleição": "ser escolhido, ser condenado: duas modalidades do mesmo procedimento"), ou em suas aproximações entre as várias mulheres retratadas nos textos e ao analisar como, com elas, o escritor engendra situações de carga erótica intensa.

Exagero
Mas o fato é que há muito exagero nas relações entre ficção e biografia ("... Nesses termos Kafka falava de seu porão a Felice, para assustá-la; e nesses termos Pepi falava do quarto das moças a K., para atraí-lo"; ou "a situação de Josef K. no início do processo é muito semelhante à de Franz Kafka na primavera de 1908...").
Outro ponto problemático (mas admito que isso pode ser cisma do leitor, aliás responsável pelo grifo abaixo) é o surgimento, vez ou outra, de frases como: "O objeto sobre o qual Kafka escreve é a massa da potência, ainda não dissociada, separada em seus elementos. É o corpo informe de Vrtra, que contém as águas, antes que Indra o trespasse com o relâmpago." De modo geral, o texto é sóbrio, erudito e monótono. Falta a ele o deslumbramento de um Canetti, no ensaio citado acima, ou a inventividade e graça de um Nabokov, que tratou de Kafka em suas "Lectures on Literature": isso para mencionar dois dos poucos outros autores a quem Calasso recorre com "admiração" no estudo (Musil também aparece na lista).
A críticos, quase não há referências, destacando-se uma, bastante irônica, a Benjamin e Adorno. O livro, contudo, tem seus méritos. Entre eles, talvez o principal seja provocar uma imensa vontade de reler Kafka, o que, no final das contas, não é pouca coisa.


ADRIANO SCHWARTZ é professor na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.


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