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Cartografia da escravidão
"A Travessia da Calunga Grande" cataloga 507 imagens do Brasil escravocrata
João José Reis
especial para a Folha
Lembro-me daquela imagem televisiva da festa dos 500 anos: um homem negro arrastado pelos cabelos
"rastas" por soldados. O homem se
rebelava contra o racismo. O passado
não é tão passado quando vejo imagens
de escravos rebeldes sendo castigados
em praça pública no século 19. Quem
percorrer as páginas de "A Travessia da
Calunga Grande -Três Séculos de Imagens sobre o Negro no Brasil (1637-1899)" poderá entender melhor o que viu
na TV naquele dia. Era uma das muitas
projeções de um passado escravista do
qual ainda não nos livramos inteiramente.
Parte maior da história
A efeméride afinal serviu para alguma coisa. Este
livro, por exemplo, faz parte da coleção
"Uspiana - Brasil 500 Anos". Trata-se de
um excelente catálogo contendo 507
imagens do negro no tempo do Brasil escravocrata, a parte maior de nossa história. É assinado por Carlos Marcondes de
Moura, conhecido estudioso da experiência afro-brasileira, que abre a obra
com esclarecedora introdução.
O negro aqui figura como objeto do
olhar de artistas brancos, em geral europeus. Mas esse olhar não é sempre o
mesmo, e o objeto insiste em ser sujeito.
Do século 17 se destacam os pintores do
Brasil holandês, entre eles Frans Post e
Albert Eckhout, em cujas pinturas o escravo parece parte da paisagem. Senti
falta da única alusão iconográfica conhecida sobre o quilombo de Palmares, atribuída a Post, que ilustra "A História dos
Feitos" (1647), de Barleus.
Ali, sobre o mapa do Nordeste, Palmares contracena com um engenho, sugerindo a ameaça que representava ao projeto colonizador europeu.
E, já que falamos de escravos rebeldes, há representações iconográficas
de quilombos do século 18, um período
pobre de imagens sobre negros. A planta
de um quilombo na Bahia, de 1861, por
exemplo, detalha sistema de defesa, distribuição de casas e plantações, além de
moradores mortos durante o assalto da
tropa repressora. É conhecida pelos estudiosos da escravidão. Nessa coletânea, o
século fica representado principalmente
pelas figurinhas de Carlos Julião, que retrata ocupações, festas e religiosidade negras com um clima quase onírico. Uma
surpresa é um ex-voto que encena índios
canibais dilacerando corpos negros.
O século 19 é o mais fecundo em imagens. Aqui multiplica-se o número de
criadores e os meios de criação iconográfica, sendo introduzida a grande novidade do período, a fotografia. Além dos fartamente reproduzidos Jean-Baptiste Debret e Moritz Rugendas, muitos outros
artistas-viajantes menos conhecidos
participam da amostra. Segundo as contas de Moura, 45% das imagens do catálogo são desses estrangeiros. A literatura
de viagem, que teve grande voga no período, foi o principal veículo de divulgação dessas imagens. Repleto de julgamentos preconceituosos, que com frequência reduziam os negros a um estado
de barbárie -no que não diferia muito
da visão da elite local-, esse gênero literário, lido e visto criticamente, tem sido
fonte inestimável para a história social e
cultural da escravidão. Os viajantes são
assim usados pelo melhor da recente historiografia brasileira, ao lado de outras
fontes.
Mundo urbano
Os temas e situações retratados são os mais variados,
mas dizem respeito principalmente ao
mundo urbano, negligenciando o rural,
onde a imensa maioria
dos escravos viviam. Foram as cidades, sobretudo
o Rio de Janeiro, o local de
pouso e morada predileto
dos pintores, desenhistas,
caricaturistas e fotógrafos, fossem estrangeiros
ou brasileiros. Foi nelas
que os artistas observaram africanos serem desembarcados,
examinados e vendidos no mercado, trabalhando nos mais diversos misteres,
apanhando de senhores, feitores e policiais, curando parceiros, atendendo a ritos religiosos e fúnebres, exibindo no
corpo as marcas e modas de suas nações,
se divertindo das mais diversas maneiras.
Uma grande lição dessas imagens é que
o negro não se apresenta apenas como
vítima, submisso e derrotado. Elas são
eloquentes em demonstrar que, além da
rebeldia insinuada pelos castigos, criatividade cultural, ousadia estética, afirmação pessoal e até ascensão social fizeram
parte de sua trajetória, sobretudo no Oitocentos. Ao lado de escravos, aqui encontramos políticos, advogados, literatos, indivíduos e famílias afluentes, todos
a testemunhar a complexa experiência
negra ao longo dos três séculos cobertos
por essas imagens. Sob o horror da escravidão e do racismo sobreviveu um espírito livre, criativo e empreendedor.
Um espírito que, no Brasil de hoje, continua buscando mais espaço para se expressar.
João José Reis é professor do departamento de
história da Universidade Federal da Bahia, autor,
entre outros, de "A Morte É uma Festa" (Companhia das Letras).
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