São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2001

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Cartografia da escravidão

"A Travessia da Calunga Grande" cataloga 507 imagens do Brasil escravocrata

João José Reis
especial para a Folha

Lembro-me daquela imagem televisiva da festa dos 500 anos: um homem negro arrastado pelos cabelos "rastas" por soldados. O homem se rebelava contra o racismo. O passado não é tão passado quando vejo imagens de escravos rebeldes sendo castigados em praça pública no século 19. Quem percorrer as páginas de "A Travessia da Calunga Grande -Três Séculos de Imagens sobre o Negro no Brasil (1637-1899)" poderá entender melhor o que viu na TV naquele dia. Era uma das muitas projeções de um passado escravista do qual ainda não nos livramos inteiramente.

Parte maior da história
A efeméride afinal serviu para alguma coisa. Este livro, por exemplo, faz parte da coleção "Uspiana - Brasil 500 Anos". Trata-se de um excelente catálogo contendo 507 imagens do negro no tempo do Brasil escravocrata, a parte maior de nossa história. É assinado por Carlos Marcondes de Moura, conhecido estudioso da experiência afro-brasileira, que abre a obra com esclarecedora introdução. O negro aqui figura como objeto do olhar de artistas brancos, em geral europeus. Mas esse olhar não é sempre o mesmo, e o objeto insiste em ser sujeito. Do século 17 se destacam os pintores do Brasil holandês, entre eles Frans Post e Albert Eckhout, em cujas pinturas o escravo parece parte da paisagem. Senti falta da única alusão iconográfica conhecida sobre o quilombo de Palmares, atribuída a Post, que ilustra "A História dos Feitos" (1647), de Barleus. Ali, sobre o mapa do Nordeste, Palmares contracena com um engenho, sugerindo a ameaça que representava ao projeto colonizador europeu. E, já que falamos de escravos rebeldes, há representações iconográficas de quilombos do século 18, um período pobre de imagens sobre negros. A planta de um quilombo na Bahia, de 1861, por exemplo, detalha sistema de defesa, distribuição de casas e plantações, além de moradores mortos durante o assalto da tropa repressora. É conhecida pelos estudiosos da escravidão. Nessa coletânea, o século fica representado principalmente pelas figurinhas de Carlos Julião, que retrata ocupações, festas e religiosidade negras com um clima quase onírico. Uma surpresa é um ex-voto que encena índios canibais dilacerando corpos negros. O século 19 é o mais fecundo em imagens. Aqui multiplica-se o número de criadores e os meios de criação iconográfica, sendo introduzida a grande novidade do período, a fotografia. Além dos fartamente reproduzidos Jean-Baptiste Debret e Moritz Rugendas, muitos outros artistas-viajantes menos conhecidos participam da amostra. Segundo as contas de Moura, 45% das imagens do catálogo são desses estrangeiros. A literatura de viagem, que teve grande voga no período, foi o principal veículo de divulgação dessas imagens. Repleto de julgamentos preconceituosos, que com frequência reduziam os negros a um estado de barbárie -no que não diferia muito da visão da elite local-, esse gênero literário, lido e visto criticamente, tem sido fonte inestimável para a história social e cultural da escravidão. Os viajantes são assim usados pelo melhor da recente historiografia brasileira, ao lado de outras fontes.

Mundo urbano
Os temas e situações retratados são os mais variados, mas dizem respeito principalmente ao mundo urbano, negligenciando o rural, onde a imensa maioria dos escravos viviam. Foram as cidades, sobretudo o Rio de Janeiro, o local de pouso e morada predileto dos pintores, desenhistas, caricaturistas e fotógrafos, fossem estrangeiros ou brasileiros. Foi nelas que os artistas observaram africanos serem desembarcados, examinados e vendidos no mercado, trabalhando nos mais diversos misteres, apanhando de senhores, feitores e policiais, curando parceiros, atendendo a ritos religiosos e fúnebres, exibindo no corpo as marcas e modas de suas nações, se divertindo das mais diversas maneiras.
Uma grande lição dessas imagens é que o negro não se apresenta apenas como vítima, submisso e derrotado. Elas são eloquentes em demonstrar que, além da rebeldia insinuada pelos castigos, criatividade cultural, ousadia estética, afirmação pessoal e até ascensão social fizeram parte de sua trajetória, sobretudo no Oitocentos. Ao lado de escravos, aqui encontramos políticos, advogados, literatos, indivíduos e famílias afluentes, todos a testemunhar a complexa experiência negra ao longo dos três séculos cobertos por essas imagens. Sob o horror da escravidão e do racismo sobreviveu um espírito livre, criativo e empreendedor. Um espírito que, no Brasil de hoje, continua buscando mais espaço para se expressar.


João José Reis é professor do departamento de história da Universidade Federal da Bahia, autor, entre outros, de "A Morte É uma Festa" (Companhia das Letras).


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