São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2001

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Proferidas nos EUA em 1944, conferências do sociólogo resumem as principais idéias de sua obra

Uma síntese do Brasil de Freyre

Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha

Inúmeros são os estudos que procuram oferecer ao público universitário uma introdução à instigante obra de Gilberto Freyre. Nas décadas de 80 e 90, especialmente, refletindo a crescente revalorização das pesquisas do sociólogo, vieram a público muitos desses estudos introdutórios, alguns de qualidade inquestionável. Todavia, sem desconsiderar os méritos desses bons comentadores, a melhor introdução à leitura do Brasil elaborada por Freyre continua sendo um livro dele mesmo, intitulado "Interpretação do Brasil - Aspectos da Formação Social Brasileira como Processo de Amalgamento de Raças e Culturas". A obra, que acaba de ser reeditada pela Companhia das Letras, reúne seis conferências que o sociólogo pernambucano proferiu na Universidade do Estado de Indiana em 1944. Trata-se de um livro de síntese, no qual Freyre procura oferecer aos seus leitores norte-americanos uma via eficiente de acesso à analise do Brasil que vinha desenvolvendo em livros como "Casa-Grande & Senzala" (1933), "Sobrados e Mucambos" (1936), "Nordeste" (1937) e "Problemas Brasileiros de Antropologia" (1943). A esse público norte-americano, o sociólogo apresenta uma interpretação da evolução histórica e social do país -dos antecedentes europeus à década de 40 do século 20- centrada na idéia de que os povos miscigenados são, devido à sua capacidade de "suportar e harmonizar" as contradições, mais "ricos e culturalmente mais complexos" que "os povos de raciamento simples".

Zona de transição
Essa exaltação nada discreta, mas bastante refletida da miscigenação -Freyre diz querer expressar "uma filosofia do "fusionismo" ético e social brasileiro"-, tem lugar já na primeira conferência, dedicada ao estudo dos antecedentes europeus do descobrimento do Brasil. O sociólogo procura demonstrar aí que a história da Península Ibérica é a história de uma "zona de transição", onde a cultura e o povo do Velho Mundo se misturaram com os povos e com as culturas vindas da África e da Ásia. Daí, paradoxalmente, os tais antecedentes europeus da história do Brasil não serem "puramente europeus". A segunda conferência apresenta aos americanos os "fundadores do Brasil": os fundadores "verticais", homens sedentários, solidamente instalados nos engenhos construídos ao longo da costa; e os fundadores "horizontais", homens mestiços e aventureiros, que avançaram sertão adentro e promoveram a "autocolonização" do país. É digno de nota que Freyre, em a "Interpretação do Brasil", dedique uma atenção toda especial a esses brasileiros miscigenados que levaram a cabo a conquista do sertão, digno de nota porque, em seus livros anteriores, os senhores de engenho do litoral, com suas casas-grandes e senzalas, são os grandes protagonistas. O regionalismo brasileiro, sua história, seus problemas, suas virtudes e suas potencialidades, ocupa a terceira conferência, cujo núcleo é uma discussão sobre a necessidade de criar no Brasil um Estado que mantivesse a unidade política e cultural do país sem desrespeitar a autonomia e as culturas de suas diversas regiões. A defesa dessa sociedade plural, tolerante com as diferenças, é desdobrada na quarta conferência, dedicada a analisar as "condições étnicas e sociais do Brasil moderno". Deparamos aqui com a polêmica e afamada tese de Freyre de que a democracia racial característica da sociedade brasileira levaria, mais cedo ou mais tarde, à construção de uma democracia social e política.

Fatores étnicos
Dessa análise das condições internas para a constituição e desenvolvimento de uma sociedade mestiça, Freyre se desloca, na quinta conferência, para a apresentação da política externa do Estado brasileiro vista à "luz dos fatores étnicos e sociais que a condicionam". Infelizmente, os radicais deslocamentos sofridos no panorama internacional nos últimos 50 anos fizeram com que muitas das idéias contidas nessa conferência envelhecessem. De qualquer modo, ao leitor de hoje não deixará de interessar a crítica que o sociólogo dirige ao "arianismo" norte-americano, segundo ele um grave obstáculo ao bom relacionamento entre os Estados Unidos e um país de população miscigenada como o Brasil. A última conferência retoma o tema da sociedade mestiça e múltipla a partir de uma leitura da produção artística e literária local. Entre os muitos pontos abordados, merece especial destaque a análise que o sociólogo faz da literatura de sua época, análise na qual procura demonstrar como a maior complexidade da sociedade brasileira havia permitido a emergência de uma geração de literatos -os "modernistas", em São Paulo, e os "regionalistas", no Nordeste- interessada em se libertar dos modelos europeus e construir uma literatura que realmente refletisse a diversidade cultural brasileira.

Contraponto ao arianismo
"Interpretação do Brasil", como se vê, é um livro de temática variada, no qual Freyre oferece um excelente panorama da sua abordagem inovadora do processo de formação, consolidação e desenvolvimento do país. O livro, porém, não é somente uma peça introdutória. O seu grande contributo para o debate nacional está na defesa lúcida e bem fundamentada que apresenta do povo mestiço.
A linha de argumentação aí contida, é bom lembrar, não somente serviu de contraponto ao "arianismo" de muitos intelectuais (nacionais e estrangeiros) da época, mas também, e sobretudo, colaborou para transformar a mestiçagem racial e cultural de mácula em orgulho nacional, de empecilho ao desenvolvimento do Brasil em traço distintivo e grande contributo do país à história dos povos.


Jean Marcel Carvalho França é doutor em literatura comparada e autor de, entre outros, "Visões do Rio de Janeiro Colonial" e "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial", ambos pela ed. José Olympio.



Interpretação do Brasil
360 págs., R$ 26,00
de Gilberto Freyre. Cia. das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/ 3846-0801).





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