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Proferidas nos EUA em 1944, conferências do sociólogo resumem as principais idéias de sua obra
Uma síntese do Brasil de Freyre
Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha
Inúmeros são os estudos que procuram oferecer ao público universitário
uma introdução à instigante obra de
Gilberto Freyre. Nas décadas de 80 e
90, especialmente, refletindo a crescente
revalorização das pesquisas do sociólogo, vieram a público muitos desses estudos introdutórios, alguns de qualidade
inquestionável. Todavia, sem desconsiderar os méritos desses bons comentadores, a melhor introdução à leitura do
Brasil elaborada por Freyre continua
sendo um livro dele mesmo, intitulado
"Interpretação do Brasil - Aspectos da
Formação Social Brasileira como Processo de Amalgamento de Raças e Culturas".
A obra, que acaba de ser reeditada pela
Companhia das Letras, reúne seis conferências que o sociólogo pernambucano
proferiu na Universidade do Estado de
Indiana em 1944. Trata-se de um livro de
síntese, no qual Freyre procura oferecer
aos seus leitores norte-americanos uma
via eficiente de acesso à analise do Brasil
que vinha desenvolvendo em livros como "Casa-Grande & Senzala" (1933),
"Sobrados e Mucambos" (1936), "Nordeste" (1937) e "Problemas Brasileiros de
Antropologia" (1943).
A esse público norte-americano, o sociólogo apresenta uma interpretação da
evolução histórica e social do país -dos
antecedentes europeus à década de 40 do
século 20- centrada na idéia de que os
povos miscigenados são, devido à sua capacidade de "suportar e harmonizar" as
contradições, mais "ricos e culturalmente mais complexos" que "os povos de raciamento simples".
Zona de transição
Essa exaltação
nada discreta, mas bastante refletida da
miscigenação -Freyre diz querer expressar "uma filosofia do "fusionismo"
ético e social brasileiro"-, tem lugar já
na primeira conferência, dedicada ao estudo dos antecedentes europeus do descobrimento do Brasil. O sociólogo procura demonstrar aí que a história da Península Ibérica é a história de uma "zona
de transição", onde a cultura e o povo do
Velho Mundo se misturaram com os povos e com as culturas vindas da África e
da Ásia. Daí, paradoxalmente, os tais antecedentes europeus da história do Brasil
não serem "puramente europeus".
A segunda conferência apresenta aos
americanos os "fundadores do Brasil":
os fundadores "verticais", homens sedentários, solidamente instalados nos
engenhos construídos ao longo da costa;
e os fundadores "horizontais", homens
mestiços e aventureiros, que avançaram
sertão adentro e promoveram a "autocolonização" do país. É digno de nota que
Freyre, em a "Interpretação do Brasil",
dedique uma atenção toda especial a esses brasileiros miscigenados que levaram a cabo a conquista do sertão, digno
de nota porque, em seus
livros anteriores, os senhores de engenho do litoral, com suas casas-grandes e senzalas, são os
grandes protagonistas.
O regionalismo brasileiro, sua história, seus problemas, suas virtudes e suas potencialidades, ocupa a terceira conferência, cujo
núcleo é uma discussão sobre a necessidade de criar no Brasil um Estado que
mantivesse a unidade política e cultural
do país sem desrespeitar a autonomia e
as culturas de suas diversas regiões. A defesa dessa sociedade plural, tolerante
com as diferenças, é desdobrada na
quarta conferência, dedicada a analisar
as "condições étnicas e sociais do Brasil
moderno". Deparamos aqui com a polêmica e afamada tese de Freyre de que a
democracia racial característica da sociedade brasileira levaria, mais cedo ou
mais tarde, à construção de uma democracia social e política.
Fatores étnicos
Dessa análise das condições
internas para a constituição e desenvolvimento de
uma sociedade mestiça,
Freyre se desloca, na
quinta conferência, para a
apresentação da política externa do Estado brasileiro vista à "luz dos fatores étnicos e sociais que a condicionam". Infelizmente, os radicais deslocamentos sofridos no panorama internacional nos últimos 50 anos fizeram com que muitas das
idéias contidas nessa conferência envelhecessem. De qualquer modo, ao leitor
de hoje não deixará de interessar a crítica
que o sociólogo dirige ao "arianismo"
norte-americano, segundo ele um grave
obstáculo ao bom relacionamento entre
os Estados Unidos e um país de população miscigenada como o Brasil.
A última conferência retoma o tema da
sociedade mestiça e múltipla a partir de
uma leitura da produção artística e literária local. Entre os muitos pontos abordados, merece especial destaque a análise que o sociólogo faz da literatura de sua
época, análise na qual procura demonstrar como a maior complexidade da sociedade brasileira havia permitido a
emergência de uma geração de literatos
-os "modernistas", em São Paulo, e os
"regionalistas", no Nordeste- interessada em se libertar dos modelos europeus e construir uma literatura que realmente refletisse a diversidade cultural
brasileira.
Contraponto ao arianismo
"Interpretação do Brasil", como se vê, é um
livro de temática variada, no qual Freyre
oferece um excelente panorama da sua
abordagem inovadora do processo de
formação, consolidação e desenvolvimento do país. O livro, porém, não é somente uma peça introdutória. O seu
grande contributo para o debate nacional está na defesa lúcida e bem fundamentada que apresenta do povo mestiço.
A linha de argumentação aí contida, é
bom lembrar, não somente serviu de
contraponto ao "arianismo" de muitos
intelectuais (nacionais e estrangeiros) da
época, mas também, e sobretudo, colaborou para transformar a mestiçagem
racial e cultural de mácula em orgulho
nacional, de empecilho ao desenvolvimento do Brasil em traço distintivo e
grande contributo do país à história dos
povos.
Jean Marcel Carvalho França é doutor em literatura comparada e autor de, entre outros, "Visões
do Rio de Janeiro Colonial" e "Outras Visões do Rio
de Janeiro Colonial", ambos pela ed. José Olympio.
Interpretação do Brasil
360 págs., R$ 26,00
de Gilberto Freyre. Cia. das Letras (r. Bandeira Paulista, 702,
conjunto 32, CEP 04532-002,
SP, tel. 0/xx/11/ 3846-0801).
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