São Paulo, domingo, 11 de março de 2001

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A forma da violência

Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem
Estádio São Januário após a queda de um alambrado durante a final da Copa João Havelange


por Hans Ulrich Gumbrecht

Nunca houve mais razões que hoje, sobretudo no Brasil, para guardar distância de megaeventos esportivos. A maioria das construções onde eles ocorrem não oferece nem sequer o mínimo de segurança física às dezenas de milhares de espectadores a quem acolhe (quem tenha visto o estádio de São Januário do Vasco da Gama antes do acidente ocorrido há pouco só pode se admirar de que ele não tenha acontecido antes).
Na Europa, sobretudo no Reino Unido, o segmento pacífico das multidões futebolísticas está exposto à ameaça de "hooligans" vândalos, e pelo mundo afora o palco dos esportes profissionais é permeado de personagens indesejáveis a comandar a cena, sendo a "grana fácil" (em moeda corrente americana!) e, vez por outra, um tipo rançoso de nacionalismo as suas únicas motivações.
Na tentativa de evitar o jargão de um idealismo igualmente rançoso, uma exigência crítica mínima seria dizer que quem está fazendo fortuna nos esportes (e não há nada de intrinsecamente errado em fazer fortuna nos esportes) deveria pagar impostos sobre sua renda e ser obrigado a zelar ativamente pela segurança financeira futura dos atletas envolvidos. Além disso, alguns dos fãs mais velhos entre nós talvez sintam que o jogo de futebol (as coisas são com certeza diferentes em outros esportes) já não é tão belo como costumava ser em 1958 ou em 1970. Esse juízo bem pode ser mais do que a simples miopia daqueles entre nós que há muito deixaram para trás os anos de suas crises de meia-idade. Pois em verdade não terá alcançado a performance do futebol, na história recente, um nível de perfeição física que, embora admirável em e por si mesma, acabe sendo prejudicial a seu valor estético? Isso, aliás, seria somente uma razão a mais para tratar com carinho o estilo de jogo "não-atlético" de Romário (nas palavras dele).

Litania infinita Ora, é espantoso notar que, comparada a essa litania potencialmente infinita de queixas justificadas, a lista de motivos que nos ajuda a compreender por que os eventos esportivos resultam tão fascinantes é bastante atrofiada, altamente convencional e, pior de tudo, nunca se reporta ao prazer que indubitavelmente tiramos desses eventos. Alguns intelectuais são obcecados pela idéia de que os esportes "representam" algo diverso do que são (o que os transforma numa espécie de performance que requer interpretação). Quase nenhum dos incontáveis livros publicados sobre o beisebol nos Estados Unidos, por exemplo, se abstém de alegar que esse jogo representa e celebra a memória do passado -comparativamente- bucólico da nação. Quando críticos de futebol se fazem de intelectuais, nunca deixam de descobrir traços de identidade nacional nos diversos modos com que os diversos países interpretam esse jogo. Se não deixam de surgir sérias dúvidas com as consequências específicas dessa abordagem (parece funcionar para a imagem que os brasileiros gostam de ter de si mesmos, mas serão os italianos tão fominhas e sangues-frios quanto seus melhores times de futebol?), a sua principal deficiência reside na incapacidade de explicar por que tantos milhões de pessoas querem assistir a um jogo de futebol todos os dias. Certamente não por almejarem decifrar as alegorias de conceitos de identidade nacionais ou regionais.
A seguir, entre os frágeis argumentos que tratam de explicar esse fascínio, vem o truísmo pop-psicológico de que os "perdedores na vida" gostam de se identificar com os "vencedores no jogo". Não há como negá-lo, mas o que dizer daqueles times cujos fãs ficam tanto mais fiéis quanto menos campeonatos ganham (tal como o proverbial Boston Red Sox no beisebol e, por muitos anos no passado, o Corinthians no futebol brasileiro?). E como essa tese explica o fato de que os fãs sabem muito bem (e nisso concordam facilmente com os fãs do time adversário) se um jogo foi feio, bonito ou só divertido independentemente da vitória ou derrota de suas próprias cores?
Pensar sobre a questão de por que gostamos de esportes, desenvolver uma rematada estética dos esportes, é um sério desafio para nós intelectuais. É sério, em primeiro lugar, porque realmente não sabemos a resposta. Em segundo lugar, é sério porque não há provavelmente nenhum outro fenômeno que tenha assumido as dimensões dos esportes nas sociedades atuais, dimensões perante as quais as nossas ferramentas analíticas permaneceram muito ineficazes. Acima de tudo, porém, quero insistir que uma "estética dos esportes" filosoficamente séria não é necessária para dignificar os esportes. Se bilhões continuam a assistir a jogos de futebol, apesar de todos os escândalos recentes, isso prova que não há nada de que os esportes necessitem menos do que uma aura acadêmica. A necessidade, de fato, está do outro lado.
Levar esportes a sério como um fenômeno estético pode tornar conscientes a nós, intelectuais, de como têm sido inertes nossas conjeturas sobre os locais sociais da beleza. Sim, todos esses fenômenos culturais cujas "mortes" têm sido prematuramente anunciadas pelo humor pós-moderno, todas essas coisas oficialmente maravilhosas como livros, ópera, pintura ou balé ainda estão vivas. No entanto é lícito dizer que não há outro fenômeno na cultura contemporânea que leve o prazer da beleza a mais gente do que os esportes. Se deixamos de reconhecer esse fato é porque temos enormes dificuldades para separar a fruição da beleza dos rituais da "cultura elevada". Mas onde encontrar um ponto de partida para uma consideração mais séria dos esportes?
No que diz respeito à definição clássica do conceito de "estética", tal ponto de partida reside na incontroversa competência dos verdadeiros fãs de dizer se um jogo foi bonito ou feio -independentemente do placar final. Tal juízo será sempre ponto pacífico para quem aprecie o jogo, embora normalmente não sejam capazes de dizer com base em quais conceitos ou critérios acham-no belo. Ora, simples como possa parecer essa descrição, ela corresponde exatamente à resposta de Immanuel Kant à questão referente à especificidade do juízo estético. A especificidade do juízo estético, segundo Kant, repousa justamente em sua capacidade de produzir consenso baseado num juízo que não tem consciência de seus próprios critérios e conceitos -o que nos conduz a mais outra expressão famosa da "Terceira Crítica" de Kant (a sua "Estética").
Trata-se de sua descrição da fruição da beleza como "prazer livre de interesse". "Livre de interesse", nesse contexto, significa que, em relação a nossas situações práticas cotidianas, não temos razão (não temos fundamento, não temos "interesse") em achar "bonitas" ou "feias" as coisas que desfrutamos ou rejeitamos na experiência estética. Se nos sentimos atraídos por elas, não é porque sua presença irá, por exemplo, aumentar nossa fortuna ou melhorar nossa saúde. Isso é o que Kant adverte ao chamar o prazer estético "livre de interesse" e é isso que críticos e filósofos depois de Kant quiseram descrever quando falavam da "autonomia" ou da "insularidade" da arte.
No caso dos esportes, como um tipo de experiência estética, essa "autonomia" e "insularidade" mesmas se tornam evidentes na arquitetura do estádio. Os estádios geralmente viram suas costas, suas tristes fachadas, ao mundo cotidiano lá fora, enquanto o espaço interno a que abrem acesso e que encenam constitui uma esfera separada de nossas preocupações diárias -uma esfera em que, pela sua simples separação, começa a estimular o desejo. Aliás, é fato bem surpreendente e raras vezes notado que muitos de nossos estádios estejam situados no centro das cidades, o que implica que propriedades extremamente valiosas -extremamente desejáveis- não são usadas para nenhum propósito prático durante as horas normais de expediente.
Por serem inatingíveis pelos desígnios e motivações cotidianos, as interações que preenchem tais espaços autônomos não podem evitar ter o caráter de jogos. Isso implica, entre outras coisas, a substituição, para todos os participantes, das inexistentes motivações cotidianas sob as quais agem por diferentes conjuntos de normas. Por vezes essas regras emergem à medida que os jogadores se engajam em suas interações, por vezes -e esse é sempre o caso com os esportes- elas são estabelecidas previamente. Essas regras estruturam, sempre, as formas em que os atletas competem e determinam indiretamente as formas como os espectadores reagem à competição dos atletas.

Epifania como emergência de uma forma até então desconhecida é uma referência máxima para o prazer que sentimos ao assistir a esportes; todo fã é bom conhecedor do entusiasmo que nos domina quando um time avança numa sequência rítmica de passes e jogadas muitas vezes surpreendentes


Mas por que os atletas apreciam competir e por que nós, espectadores, apreciamos assistir-lhes? Jogar conforme certas regras não é necessariamente prazeroso, e prazeroso tampouco se dirá o esforço físico despendido pelos atletas -ou o alto grau de concentração reclamado aos espectadores. Em outras palavras: a definição da experiência estética mediante os conceitos de "autonomia" e "jogo" ainda não explica por que a experiência dos esportes é desfrutável.
Ouvi certa vez um atleta de calibre mundial, o californiano Pablo Morales, que ganhou medalhas de ouro em natação em duas Olimpíadas, descrever o humor que reúne os atletas e seus espectadores com uma fórmula admirável, uma fórmula que reputei mais complexa e adequada que qualquer outra visão teórica de que tinha notícia. "Praticar esportes e assistir a esportes", disse Morales, "é perder-se em concentrada intensidade". A palavra "perder-se" na expressão de Morales há de se referir à "insularidade" do evento em questão. Como dissemos antes, o evento a que assistimos absorve nossa atenção em um grau que acaba pondo entre parênteses qualquer percepção do mundo cotidiano circundante.
"Intensidade" indica um estado de tensão e hipersensibilidade que afeta ao mesmo tempo espíritos e corpos de atletas e espectadores. Com tal intensidade esperamos que coisas aconteçam a outros corpos e a nossos próprios corpos que, seja lá o que de fato aconteça, produzirá reações particularmente fortes (por vezes reações perigosamente fortes: quando, em seu estado de hipersensibilidade, as multidões -e de vez em quando os próprios atletas- perdem o controle).
Finalmente, essa tensão específica em que se unem os atletas e seus espectadores é "concentrada" -o que significa que não é simplesmente aberta a qualquer tipo de acontecimento. Qual é, então, o tipo específico de acontecimento em que atletas e espectadores se concentram? Qual é o acontecimento que realizará suas expectativas? O que eles esperam é uma epifania, isto é, a aparição súbita e transitória de algo que, ao menos durante o tempo de sua aparição, tenha substância e forma simultaneamente. Mas epifania significa, além disso, aparência-como-evento. O que aparece "como um evento" bem pode ser surpreendente -por exemplo: a defesa de um goleiro tal como você nunca viu antes.

Tensão concentrada Mas, para que seja um evento, basta na verdade que o que apareça produza uma descontinuidade -pois mesmo que apareça o que se esperava aparecer, ainda assim se altera uma dada situação, porque o que aparece não estava "lá" antes. Sabemos que, em dado momento, os times ganharão o campo e, por esperada que seja essa aparição, ela cria um instante de grande empolgação. Aquilo em que a tensão de atletas e espectadores se concentra, isto é, a epifania, é em cada caso uma relação específica entre uma substância, de um lado (e a substância é sempre um corpo ou vários corpos), e, de outro, uma forma.
Creio que podemos distinguir três tipos básicos dessas relações forma/substância nos esportes. Esportes há (os que menos aprecio) nos quais os juízes estimam o explícito valor estético de uma performance: ginástica olímpica, por exemplo, ou patinação artística, nado sincronizado ou adestramento. Nesses casos, um certo repertório de formas é predefinido, e a tensão, o ser-evento, a epifania, são produzidos pelos corpos sendo capazes (ou não) de preencher essa forma. A questão é saber, pois, se um corpo-como-substância surgirá para se adaptar a uma dada forma.
Diversa não é a questão de saber se um específico cantor de ópera, numa dada noite, será capaz de interpretar uma ária que de há muito conhecemos. As coisas são bem outras em eventos de atletismo. Antes de tudo, a elegância estética é aqui um subproduto -vitória e derrota dependem de níveis mensuráveis de performance. Entretanto somos capazes de dizer a diferença entre um estilo de corrida mais ou menos elegante, entre um lançamento de disco mais ou menos interessante. E assim é porque cada performance em questão (lançamento de disco, salto em distância, 400 metros com barreiras etc.) exige uma certa sequência de movimentos corporais -e o que apreciamos esteticamente é: seja a impressão de que esses diferentes movimentos se combinam numa unidade complexa que experimentamos como forma, seja que os movimentos recorrentes (de um corredor, por exemplo) permitem que aflore um certo ritmo. Pois o ritmo é aquele tipo de forma que coisas em movimento são capazes de conquistar.
Esportes coletivos produzem um tipo ainda mais complexo de epifania. Saber se os corpos podem corresponder às exigências de uma certa forma acha-se aqui fora de cogitação, porque não estão em jogo exigências formais preestabelecidas. O que esperamos, num estádio de futebol, por exemplo, é que o time em posse da bola avance produzindo a forma de uma bela jogada.
Tal forma, se surgir, é sempre um evento, porque nunca podemos ter certeza se acontecerá, sua emergência sendo sempre ameaçada pelos esforços defensivos do time adversário. Mas a bela jogada é também um evento no sentido de que a maioria dos espectadores jamais a viu antes e que, em muitos casos, ela de fato está sendo posta em ação desse modo pela primeira vez.
Acresça-se a isso que a forma da bela jogada é uma forma temporal, pois literalmente desaparece após surgir e jamais será posta em prática novamente do mesmo modo (nem jamais poderá captá-la uma fotografia); e é finalmente uma forma corporal, uma forma que ocupa espaço, uma forma em relação à qual os corpos dos espectadores num estádio podem posicionar a si próprios. Epifania como emergência de uma forma até então desconhecida é, sustento, uma referência máxima para o prazer que sentimos ao assistir a esportes. Todo fã é bom conhecedor do entusiasmo que nos domina quando um time avança numa sequência rítmica de passes e jogadas muitas vezes surpreendentes.
Esse entusiasmo é um deleite espiritual combinado com prazer físico, igual a uma respiração funda ou a uma gargalhada alegre. É um entusiasmo também a que nunca podemos nos agarrar, um entusiasmo, enfim, que é diferente do alívio que sentimos quando nosso time marca um gol. Sentimo-nos bem com o mundo "tal qual é" quando nosso time marca um gol, ao passo que a bela jogada é capaz de modificar o âmbito do que imaginamos possível.
Invocar essa sensação específica de entusiasmo seria um bom fecho para um ensaio escrito "em louvor da beleza atlética". Para rematar as coisas, podemos somente acrescentar outro parágrafo expressando, mais uma vez, profundo pesar sobre esses excessos de violência nos estádios que mancham nossa fruição dessas maravilhosas epifanias. Mas as coisas são mais complicadas. Há uma relação intrínseca entre esportes e violência, ao menos entre esportes coletivos e violência, e portanto é impossível separar claramente a beleza dos jogos da sua violência. Ora, o que é exatamente violência? É a performance de um poder. E o que é poder? Poder é a possibilidade de ocupar e bloquear espaços com corpos. Essa definição ainda vigora, por convencional que se possa ter tornado em sociedades modernas encobrir a base física do poder. Não há forma de poder que não se baseie em último recurso no domínio físico. Mas, nos esportes, as relações de poder não são nada encobertas.
Ocupar e bloquear espaços com corpos é justamente a essência dos esportes coletivos, e em esportes de equipe as relações de poder transformam-se em violência, em performance de poder, tão logo corpos que ocupam espaços e corpos que bloqueiam espaços entrem em efetivo contato físico.

Esportes com e sem contato É aí que podemos observar uma bifurcação entre dois tipos diferentes de esportes coletivos. Há o rúgbi, o futebol americano ou o hóquei no gelo, por exemplo, de um lado, os chamados "esportes de contato" -jogos que permitem e até estimulam o confronto físico violento (bem-sucedidos que sejam em proteger a saúde dos jogadores de várias maneiras). E há jogos como o futebol e o basquete -que tentam minimizar essa violência, embora sua principal idéia e princípio não possa evitar provocá-la.
Em teoria, o basquete seria um jogo sem nenhum contato corporal, e ao futebol caberia pelo menos banir qualquer tipo de violência -mas jogadores experientes de basquete e de futebol lhe dirão que não sofrem menos pancadas e contusões que os seus pares nos esportes de grupo oficialmente violentos.
Assim a diferença entre esses dois tipos de esporte de grupo não é uma diferença baseada na presença ou ausência de violência. Antes, sua diferença está nos modos diversos de encenar a violência. O futebol americano, o rúgbi ou o hóquei são eventos cruentos, têm uma tonalidade quase trágica -pois deixam acontecer o que (ao menos a certa disposição de espírito) mais tememos: o embate violento de corpos. O (não tão) secreto herói do futebol americano é um jogador da defesa, e o tipo de jogo que os espectadores mais sofisticados apreciam de fato é o chamado "golpe seco" ("clean hit").
O golpe seco é uma violência executada pelo defensor golpeando um atacante no ponto certo, com impulso máximo, no momento exato, com um efeito imediato que muitas vezes causa, aliás, uma reviravolta no jogo. O golpe seco empresta forma à violência maximizando seu efeito e minimizando sua duração. Nesse sentido, é análogo ao nocaute no boxe ou à estocada final desfechada por um grande toureiro. O golpe seco é uma celebração pública da violência e da dor -mas é também o exato contrário do jogo feio em que um jogador agarra a camisa do adversário e retarda seu movimento, sem na verdade detê-lo.

O herói Garrincha Meu herói de todos os tempos no futebol, de modo bastante sugestivo, a meu ver, é Mané Garrincha. Não havia nada de cruento em seu jogo e, ao invés de "trágicos", havia a tentação de dizer que os efeitos de seu jogo no campo eram "cômicos" ou talvez mesmo "cínicos". Contudo a violência também se fazia presente quando Garrincha driblava por entre a defesa adversária. Era a violência potencial dos defensores a quem cabia marcá-lo -e digo violência "potencial" porque os defensores adversários nunca eram realmente capazes de detê-lo.
Garrincha deu uma forma a essa violência ameaçadora porque tinha maneiras várias de provocá-la, fazendo com que o ímpeto dela se perdesse na direção errada, no espaço vazio -arrancando risos dos fãs às expensas de seus adversários. Mas esse jogo "sem corpo", "livre de violência" da estrela futebolística, só pode ser vivenciado contra a tela de fundo da violência que ele provoca -ele consiste em evitar a violência e conferir à violência uma forma por meio dessa própria esquivança.
O que não funciona, contudo, é aquele contraste demasiado ideal entre esportes de grupo "bons" e "limpos", que proíbem o contato corporal, de um lado, e, de outro, esportes de contato "ruins", cujas regras permitem que os jogadores sejam alvo de violência. Não é de surpreender, contudo, que essa distinção ingênua se tenha tornado a visão de pais norte-americanos politicamente corretos que forçam seus filhos a jogar futebol simplesmente porque lhes falta a sensibilidade para as formas sutis de o futebol encenar a violência. Cada enterrada no basquete, como um ato de humilhação pública que se segue à incursão no espaço adversário, deixa claro que a proibição de contatos corporais antes intensifica que exclui a violência em jogo.

Não há forma de poder que não se baseie em último recurso no domínio físico; ocupar e bloquear espaços com corpos é justamente a essência dos esportes coletivos, e em esportes de equipe as relações de poder transformam-se em violência, em performance de poder, tão logo corpos que ocupam espaços e corpos que bloqueiam espaços entrem em efetivo contato físico


Podem a violência e a beleza andarem juntas? Será que nossa tese sobre o fascínio dos esportes coletivos estar na epifania das formas que são, em última análise, formas de violência, será que essa tese não deturpa a alegação de que assistir a esportes é um prazer estético? Há uma dupla associação que promove essa dúvida, e acredito serem duplamente infundadas. A primeira associação vincula beleza e moralidade e sustenta então que a violência corrompe a experiência da beleza. Contra tal associação, argumento que a experiência estética é "neutra" em relação a valores morais. É com certeza agradável que o herói moralmente positivo seja também bem-apessoado, mas estamos todos familiarizados com o apelo do vilão esteticamente aprazível. A segunda associação aqui em jogo equipara a violência ao mal. Embora seja bastante incomum questionar essa equiparação, estamos talvez suficientemente afastados do mundo cartesiano no qual só o espírito contava, suficientemente afastados para indagar se não haverá situações em que, ao menos, a violência seria o mal menor.
Seja qual for a resposta a essas perguntas, tornamos mais complexa, em considerável medida, nossa definição implícita da "experiência estética" mediante essa reflexão sobre o fascínio dos esportes. Partimos das descrições de Kant sobre o juízo estético como um juízo sem conceitos estáveis nem critérios e sobre o prazer estético como "prazer livre de interesse". De lá para cá, a tentativa de identificar aquilo em que nos concentramos em situações de prazer estético nos pôs bem mais próximos a uma definição de Martin Heidegger (que, a propósito e muito seriamente, adorava assistir a futebol). "Arte é portanto", escreve Heidegger, "o devir e o acontecer da verdade. Surge a verdade, pois, do nada? Com certeza o faz, se por verdade se entende o simples não daquilo que é, e se pensarmos naquilo que é como um objeto no sentido comum".
Sem entrar em detalhes interpretativos, é óbvio que Heidegger imagina a arte como "ser-evento" ("devir e acontecer"); é óbvio também que imagina aquilo que acontece na arte, que imagina a "verdade", como algo não puramente espiritual ("aquilo que é como um objeto no sentido comum"). Não há dúvida de que a definição heideggeriana da arte é bem próxima do conceito de "epifania". O que me leva a pensar que gostar de esportes talvez nem seja particularmente excêntrico como um modo de experiência estética.

Tradução de José Marcos Macedo.


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