São Paulo, domingo, 11 de março de 2007

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O homem que inspirou Matrix

Em entrevista à Folha, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que está lançando no Brasil "Vida Líqüida", diz que Jean Baudrillard foi fundamental para a crítica dos fetiches contemporâneos

MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!

Crítico da sociedade de consumo e da massificação das relações humanas, o sociólogo francês Jean Baudrillard, que morreu na terça-feira passada aos 77 anos, foi um dos pensadores mais presentes -e contestados- no debate público desde o fim dos anos 1960.
Noções como simulacro e hiper-realidade ganharam o mundo por meio de seus escritos e de suas intervenções, como na série "Matrix" -embora afirmasse que esta foi "uma interpretação incorreta de sua obra" (leia seus conceitos-chave na pág. ao lado). Germanista de formação, iniciou a carreira na Universidade de Paris, em Nanterre, que vivia a ebulição do pré-Maio de 68. Afinado com as posições do situacionismo de Guy Debord e da semiótica de Roland Barthes, Baudrillard aliou a contundente crítica à "sociedade de espetáculo" do primeiro à análise dos signos sociais presente na obra do segundo.
Embora dono de vasta bibliografia -como "O Sistema dos Objetos" (1968) e "A Sociedade de Consumo" (1970)-, foi coerente com seu modo de pensar e não constituiu escola nem seguidores. Por isso, chegou a ser visto como o "anti-Bourdieu", referência ao mestre da sociologia que dominou o pensamento -e a burocracia- do meio universitário francês nas últimas décadas do século passado. Essa foi uma das razões porque sempre foi mais ouvido fora da França -sobretudo nos Estados Unidos.

Na linha de frente
Suas posições sempre o colocaram na linha de frente do debate público -ainda que suas avaliações errassem o alvo em várias ocasiões. Nos anos 1970, previu que a Guerra do Vietnã seria um "álibi" para os EUA incorporarem a China e a Rússia. Já ao afirmar que a Guerra do Golfo (1991) "não existiu", procurou diagnosticar o caráter "cirúrgico" de uma guerra "virtual", em que "o inimigo não é mais do que um número no computador".
Após o 11 de Setembro, previu o fim das "mitologias do futuro" -"o progresso, a tecnociência e a história". Em 1996, foi alvo, assim como Deleuze, Guattari e Lyotard, da paródia criada por Alan Sokal na revista "Social Text", em que o físico da Universidade de Nova York atacou o estilo "difícil" e "vazio" dos pós-modernos (leia entrevista com Sokal na pág. seguinte). Contudo permanece inatacável a importância de Baudrillard como destruidor de fetiches contemporâneos, como defende o sociólogo polonês radicado na Inglaterra Zygmunt Bauman. Autor de "Vida Líqüida" (Jorge Zahar, trad. Carlos Alberto Medeiros, 210 págs., R$ 36), que está saindo no Brasil, Bauman afirma que o pensador francês foi "o supremo especialista em rasgar máscaras e desmascarar fetiches".
Ele "fez um trabalho absolutamente necessário em um mundo obcecado pelas imagens", diz na entrevista abaixo, concedida à Folha. Mas, lembra Bauman, ao levar ao limite a sua iconoclastia, Baudrillard encontrou -escondido atrás das máscaras- apenas o "vazio".

 

FOLHA - Qual é a importância das idéias de Baudrillard hoje?
ZYGMUNT BAUMAN
- Jean Baudrillard foi o maior iconoclasta de nossa época, o supremo especialista em rasgar máscaras e desmascarar fetiches... Diferentemente de outros, ele se recusou a proclamar o "fim" de qualquer coisa (da ideologia, utopia, filosofia, história ou o que seja), tentando, em vez disso, demonstrar a impossibilidade de resolver as questões de sua validade.
Ele empurrou a arte da iconoclastia a extremos que outros não desejaram ou não puderam alcançar. Fez um trabalho absolutamente necessário em um mundo obcecado pelas imagens, em que a condição preliminar para qualquer tentativa de melhorar a situação é resistir ao poder sedutor das imagens e escapar de seu encantamento. Realizou à perfeição essa tarefa de "limpar o terreno".
Mas parou nesse ponto. Ao levar as iniciativas iconoclastas além de seus limites anteriores, aproximou-se perigosamente do niilismo...
Como o herói de Ibsen, Peer Gynt, pensando em seu "eu autêntico" como uma espécie de cebola, não encontrou um núcleo duro quando descascou a última camada, apenas o nada. Assim, Baudrillard, depois de arrancar todas as máscaras que o mundo supostamente usava, se deparou com o vazio.
Ele limpou o terreno potencial da construção, mas um cemitério de máscaras e fetiches se mostrou inadequado para sustentar qualquer edifício...

FOLHA - Quais obras e conceitos de Baudrillard permanecerão?
BAUMAN
- Não sou profeta nem vidente, e em nosso mundo veloz as obras tendem a ser rapidamente esquecidas, enquanto o destino dos conceitos tende a ser caprichoso. Mas certamente optaria pela idéia de "simulacro" e sua aplicação à percepção de tudo o que parece "realidade", mas da qual não podemos dizer onde está a diferença entre "representação" e "o que é representado".
Simulacro não é simulação -neste caso, ninguém apenas mente ou age sob falsas pretensões. De maneira semelhante aos problemas psicossomáticos, as dores do paciente são genuínas, e todos os sintomas do sofrimento estão presentes - mesmo que não seja possível descobrir as "causas orgânicas" da doença.
Então, o paciente está doente ou não? Mente ou fala a verdade? Bem, Baudrillard apenas repetiria, como Pôncio Pilatos: "O que é a verdade?". Pergunta que, como você se lembra, nem ele respondeu...

FOLHA - O sr. é um crítico dos "muros universitários", como um obstáculo ao livre pensamento. Baudrillard, como um dos últimos intelectuais envolvidos no debate público, foi o último livre-pensador? Nesse caso, sua morte representa o fim de uma era?
BAUMAN
- Não ouse proclamar o fim dos intelectuais, do debate público ou do livre pensamento! Sua morte foi anunciada muitas vezes, mas, como uma fênix, sempre se reergueu das cinzas, mesmo que sob uma forma diferente. E lembre-se também de que Baudrillard passou a maior parte da vida dentro dos "muros universitários" e foi um professor zeloso, que viajou ao redor do mundo dando seminários em universidades.
É verdade que as pressões das rotinas universitárias em nossa sociedade de mercado não encorajam o livre pensamento e afastam a grande maioria dos acadêmicos das responsabilidades intelectuais. Mas o papel do intelectual sempre foi uma vocação da minoria, enquanto alguns conseguiram permanecer livres até em campos de concentração...

FOLHA - Qual será o futuro da sociologia?
BAUMAN
- Creio que em nenhum outro momento a sociologia foi tão necessária quanto hoje, embora os tipos de serviços que foi preparada para oferecer na fase "sólida" da modernidade não sejam mais muito solicitados (alguns sociólogos americanos, por exemplo, temem "perder o contato com a agenda pública"). Em nossa época, diversas "funções públicas" foram abandonadas pelas instituições públicas e "terceirizadas" para iniciativas de mercado ou "subsidiarizadas" para a "política de vida" individual.
Como afirmou [o sociólogo] Ulrich Beck, hoje espera-se que os indivíduos construam individualmente, usando recursos individuais, soluções individuais para problemas comuns e produzidos socialmente. Diante dessa tarefa, todos precisamos ter conhecimento confiável sobre os modos como os "fatos da vida" são produzidos e nos confrontam como realidade imutável.
Essas fontes e raízes não podem ser apreendidas dentro da experiência individual e permaneceriam invisíveis sem a ajuda da sociologia.

FOLHA - Por que o sr. prefere o termo "modernidade líqüida" a "pós-modernidade"?
BAUMAN
- "Pós-modernidade" foi temporariamente útil para mim como uma espécie de conceito "improvisado". Sugeria, corretamente, que as condições de vida já são um tanto diferentes do que pensamos que seriam as condições modernas, mas era descomprometido sobre a natureza dessa diferença. Também sugeria, erradamente, que a modernidade "terminou" e já estamos em outra era... O conceito de "modernidade líqüida" evita esse último erro e enfatiza que somos tão, senão mais, modernos quanto nossos pais e avós.
Sugere que, no fundo de todas as outras (numerosas) diferenças, está a nova "liquidez" -a incapacidade endêmica de nossa sociedade, e de qualquer parte dela, de manter sua forma por algum período de tempo.

FOLHA - Em "Amor Líqüido", o sr. afirma que o amor é hoje identificado pela "racionalidade do consumidor". O consumo, como em Baudrillard, é a "bête noire" da sociedade contemporânea?
BAUMAN
- Não tanto o consumo (afinal, essa é a eterna necessidade de todo ser humano), mas o consumismo: a tendência a perceber o mundo como basicamente um enorme recipiente dos potenciais objetos de consumo e de moldar todas as relações humanas conforme o padrão de consumo.
Assim, o outro (parceiro, amigo, vizinho, parente) é "bom" desde que traga satisfação e pode (ou deve) ser descartado quando a satisfação acabe ou se mostre não tão boa quanto se esperava ou quanto a que outra pessoa talvez pudesse fornecer em seu lugar. Outros seres humanos se tornam descartáveis e facilmente substituíveis -como os bens de consumo são ou deveriam ser.
Afinal, não fazemos juramento de eterna fidelidade a celulares, televisores, computadores, carros, geladeiras e outros bens de consumo. Quando eles param de funcionar ou são superados por ofertas novas e mais atraentes, nos separamos deles com pouca tristeza e sem escrúpulos... Na verdade, tendemos a comemorar a substituição! Mas esse "padrão consumista" é contrário aos princípios que conduzem nossos relacionamentos amorosos.
Se for aplicado, torna impossível a relação amorosa realmente satisfatória. Ele envenena a parceria com desconfiança mútua e a enche de constante incerteza quanto às intenções do parceiro. Amplia qualquer desavença mínima a uma proporção gigantesca, dando motivos suficientes para terminar e recomeçar em outro lugar. Assim como devolvemos uma mercadoria imperfeita à loja, exigindo nosso dinheiro de volta...
Sob a pressão do consumismo, as relações amorosas se transformam em episódios amorosos: tornam-se frágeis, quebradiças, não-confiáveis -antes uma fonte de medo, ao invés de alegria.

FOLHA - Em "Vida Líqüida", o sr. diz que vivemos sob condições de constante incerteza. Como essas novas condições modificam nossa percepção do mundo político?
BAUMAN
- A incerteza, o medo do desconhecido, das ameaças imprevisíveis e inomináveis ao corpo humano, à propriedade, ao esquema de vida são uma matéria-prima facilmente reciclada em capital político.
A promessa de "ser duro" com criminosos, estranhos, imigrantes, mendigos e todas as outras pessoas vistas como incômodos e potenciais perigos se torna uma arma preferida em disputas políticas.
Os governos são capazes de aparecer como guardiões da segurança e salvadores de catástrofes indizíveis, que, de outro modo, sem sua vigilância e empenho, poderiam afetar seus súditos, enquanto os partidos de oposição desenvolvem um "benefício próprio" ao convencer os cidadãos de que os verdadeiros perigos são muito maiores do que os governos deixam perceber.
Jogar com os sentimentos de insegurança e os medos resultantes se torna hoje o principal veículo de dominação política.


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