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O homem que inspirou Matrix
Em entrevista à Folha, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que está lançando no Brasil "Vida Líqüida",
diz que Jean Baudrillard foi fundamental para a crítica dos fetiches contemporâneos
MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!
Crítico da sociedade
de consumo e da
massificação das relações humanas, o
sociólogo francês
Jean Baudrillard, que morreu
na terça-feira passada aos 77
anos, foi um dos pensadores
mais presentes -e contestados- no debate público desde
o fim dos anos 1960.
Noções como simulacro e hiper-realidade ganharam o
mundo por meio de seus escritos e de suas intervenções, como na série "Matrix" -embora
afirmasse que esta foi "uma interpretação incorreta de sua
obra" (leia seus conceitos-chave na pág. ao lado).
Germanista de formação,
iniciou a carreira na Universidade de Paris, em Nanterre,
que vivia a ebulição do pré-Maio de 68.
Afinado com as posições do
situacionismo de Guy Debord e
da semiótica de Roland Barthes, Baudrillard aliou a contundente crítica à "sociedade
de espetáculo" do primeiro à
análise dos signos sociais presente na obra do segundo.
Embora dono de vasta bibliografia -como "O Sistema
dos Objetos" (1968) e "A Sociedade de Consumo" (1970)-, foi
coerente com seu modo de
pensar e não constituiu escola
nem seguidores.
Por isso, chegou a ser visto
como o "anti-Bourdieu", referência ao mestre da sociologia
que dominou o pensamento
-e a burocracia- do meio universitário francês nas últimas
décadas do século passado.
Essa foi uma das razões porque sempre foi mais ouvido fora da França -sobretudo nos
Estados Unidos.
Na linha de frente
Suas posições sempre o colocaram na linha de frente do debate público -ainda que suas
avaliações errassem o alvo em
várias ocasiões.
Nos anos 1970, previu que a
Guerra do Vietnã seria um "álibi" para os EUA incorporarem
a China e a Rússia.
Já ao afirmar que a Guerra do
Golfo (1991) "não existiu", procurou diagnosticar o caráter
"cirúrgico" de uma guerra "virtual", em que "o inimigo não é
mais do que um número no
computador".
Após o 11 de Setembro, previu o fim das "mitologias do futuro" -"o progresso, a tecnociência e a história".
Em 1996, foi alvo, assim como Deleuze, Guattari e Lyotard, da paródia criada por Alan
Sokal na revista "Social Text",
em que o físico da Universidade
de Nova York atacou o estilo
"difícil" e "vazio" dos pós-modernos (leia entrevista com Sokal na pág. seguinte).
Contudo permanece inatacável a importância de Baudrillard como destruidor de fetiches contemporâneos, como
defende o sociólogo polonês radicado na Inglaterra Zygmunt
Bauman.
Autor de "Vida Líqüida"
(Jorge Zahar, trad. Carlos Alberto Medeiros, 210 págs., R$
36), que está saindo no Brasil,
Bauman afirma que o pensador
francês foi "o supremo especialista em rasgar máscaras e desmascarar fetiches".
Ele "fez um trabalho absolutamente necessário em um
mundo obcecado pelas imagens", diz na entrevista abaixo,
concedida à Folha.
Mas, lembra Bauman, ao levar ao limite a sua iconoclastia,
Baudrillard encontrou -escondido atrás das máscaras-
apenas o "vazio".
FOLHA - Qual é a importância das
idéias de Baudrillard hoje?
ZYGMUNT BAUMAN - Jean Baudrillard foi o maior iconoclasta
de nossa época, o supremo especialista em rasgar máscaras e
desmascarar fetiches...
Diferentemente de outros,
ele se recusou a proclamar o
"fim" de qualquer coisa (da
ideologia, utopia, filosofia, história ou o que seja), tentando,
em vez disso, demonstrar a impossibilidade de resolver as
questões de sua validade.
Ele empurrou a arte da iconoclastia a extremos que outros não desejaram ou não puderam alcançar.
Fez um trabalho absolutamente necessário em um mundo obcecado pelas imagens, em
que a condição preliminar para
qualquer tentativa de melhorar
a situação é resistir ao poder sedutor das imagens e escapar de
seu encantamento. Realizou à
perfeição essa tarefa de "limpar
o terreno".
Mas parou nesse ponto. Ao
levar as iniciativas iconoclastas
além de seus limites anteriores,
aproximou-se perigosamente
do niilismo...
Como o herói de Ibsen, Peer
Gynt, pensando em seu "eu autêntico" como uma espécie de
cebola, não encontrou um núcleo duro quando descascou a
última camada, apenas o nada.
Assim, Baudrillard, depois de
arrancar todas as máscaras que
o mundo supostamente usava,
se deparou com o vazio.
Ele limpou o terreno potencial da construção, mas um cemitério de máscaras e fetiches
se mostrou inadequado para
sustentar qualquer edifício...
FOLHA - Quais obras e conceitos de
Baudrillard permanecerão?
BAUMAN - Não sou profeta nem
vidente, e em nosso mundo veloz as obras tendem a ser rapidamente esquecidas, enquanto
o destino dos conceitos tende a
ser caprichoso.
Mas certamente optaria pela
idéia de "simulacro" e sua aplicação à percepção de tudo o que
parece "realidade", mas da qual
não podemos dizer onde está a
diferença entre "representação" e "o que é representado".
Simulacro não é simulação
-neste caso, ninguém apenas
mente ou age sob falsas pretensões. De maneira semelhante
aos problemas psicossomáticos, as dores do paciente são genuínas, e todos os sintomas do
sofrimento estão presentes -
mesmo que não seja possível
descobrir as "causas orgânicas"
da doença.
Então, o paciente está doente
ou não? Mente ou fala a verdade? Bem, Baudrillard apenas
repetiria, como Pôncio Pilatos:
"O que é a verdade?". Pergunta
que, como você se lembra, nem
ele respondeu...
FOLHA - O sr. é um crítico dos "muros universitários", como um obstáculo ao livre pensamento. Baudrillard, como um dos últimos intelectuais envolvidos no debate público,
foi o último livre-pensador? Nesse
caso, sua morte representa o fim de
uma era?
BAUMAN - Não ouse proclamar
o fim dos intelectuais, do debate público ou do livre pensamento! Sua morte foi anunciada muitas vezes, mas, como
uma fênix, sempre se reergueu
das cinzas, mesmo que sob uma
forma diferente.
E lembre-se também de que
Baudrillard passou a maior
parte da vida dentro dos "muros universitários" e foi um
professor zeloso, que viajou ao
redor do mundo dando seminários em universidades.
É verdade que as pressões
das rotinas universitárias em
nossa sociedade de mercado
não encorajam o livre pensamento e afastam a grande
maioria dos acadêmicos das
responsabilidades intelectuais.
Mas o papel do intelectual
sempre foi uma vocação da minoria, enquanto alguns conseguiram permanecer livres até
em campos de concentração...
FOLHA - Qual será o futuro da sociologia?
BAUMAN - Creio que em nenhum outro momento a sociologia foi tão necessária quanto
hoje, embora os tipos de serviços que foi preparada para oferecer na fase "sólida" da modernidade não sejam mais muito solicitados (alguns sociólogos americanos, por exemplo,
temem "perder o contato com a
agenda pública").
Em nossa época, diversas
"funções públicas" foram abandonadas pelas instituições públicas e "terceirizadas" para
iniciativas de mercado ou "subsidiarizadas" para a "política de
vida" individual.
Como afirmou [o sociólogo]
Ulrich Beck, hoje espera-se que
os indivíduos construam individualmente, usando recursos
individuais, soluções individuais para problemas comuns e
produzidos socialmente.
Diante dessa tarefa, todos
precisamos ter conhecimento
confiável sobre os modos como
os "fatos da vida" são produzidos e nos confrontam como
realidade imutável.
Essas fontes e raízes não podem ser apreendidas dentro da
experiência individual e permaneceriam invisíveis sem a
ajuda da sociologia.
FOLHA - Por que o sr. prefere o termo "modernidade líqüida" a "pós-modernidade"?
BAUMAN - "Pós-modernidade"
foi temporariamente útil para
mim como uma espécie de conceito "improvisado".
Sugeria, corretamente, que
as condições de vida já são um
tanto diferentes do que pensamos que seriam as condições
modernas, mas era descomprometido sobre a natureza dessa
diferença.
Também sugeria, erradamente, que a modernidade
"terminou" e já estamos em outra era... O conceito de "modernidade líqüida" evita esse último erro e enfatiza que somos
tão, senão mais, modernos
quanto nossos pais e avós.
Sugere que, no fundo de todas as outras (numerosas) diferenças, está a nova "liquidez"
-a incapacidade endêmica de
nossa sociedade, e de qualquer
parte dela, de manter sua forma
por algum período de tempo.
FOLHA - Em "Amor Líqüido", o sr.
afirma que o amor é hoje identificado pela "racionalidade do consumidor". O consumo, como em Baudrillard, é a "bête noire" da sociedade
contemporânea?
BAUMAN - Não tanto o consumo (afinal, essa é a eterna necessidade de todo ser humano),
mas o consumismo: a tendência a perceber o mundo como
basicamente um enorme recipiente dos potenciais objetos
de consumo e de moldar todas
as relações humanas conforme
o padrão de consumo.
Assim, o outro (parceiro,
amigo, vizinho, parente) é
"bom" desde que traga satisfação e pode (ou deve) ser descartado quando a satisfação
acabe ou se mostre não tão boa
quanto se esperava ou quanto a
que outra pessoa talvez pudesse fornecer em seu lugar.
Outros seres humanos se tornam descartáveis e facilmente
substituíveis -como os bens de
consumo são ou deveriam ser.
Afinal, não fazemos juramento
de eterna fidelidade a celulares,
televisores, computadores, carros, geladeiras e outros bens de
consumo.
Quando eles param de funcionar ou são superados por
ofertas novas e mais atraentes,
nos separamos deles com pouca tristeza e sem escrúpulos...
Na verdade, tendemos a comemorar a substituição!
Mas esse "padrão consumista" é contrário aos princípios
que conduzem nossos relacionamentos amorosos.
Se for aplicado, torna impossível a relação amorosa realmente satisfatória. Ele envenena a parceria com desconfiança
mútua e a enche de constante
incerteza quanto às intenções
do parceiro. Amplia qualquer
desavença mínima a uma proporção gigantesca, dando motivos suficientes para terminar e
recomeçar em outro lugar.
Assim como devolvemos
uma mercadoria imperfeita à
loja, exigindo nosso dinheiro de
volta...
Sob a pressão do consumismo, as relações amorosas se
transformam em episódios
amorosos: tornam-se frágeis,
quebradiças, não-confiáveis
-antes uma fonte de medo, ao
invés de alegria.
FOLHA - Em "Vida Líqüida", o sr. diz
que vivemos sob condições de constante incerteza. Como essas novas
condições modificam nossa percepção do mundo político?
BAUMAN - A incerteza, o medo
do desconhecido, das ameaças
imprevisíveis e inomináveis ao
corpo humano, à propriedade,
ao esquema de vida são uma
matéria-prima facilmente reciclada em capital político.
A promessa de "ser duro"
com criminosos, estranhos,
imigrantes, mendigos e todas
as outras pessoas vistas como
incômodos e potenciais perigos
se torna uma arma preferida
em disputas políticas.
Os governos são capazes de
aparecer como guardiões da segurança e salvadores de catástrofes indizíveis, que, de outro
modo, sem sua vigilância e empenho, poderiam afetar seus
súditos, enquanto os partidos
de oposição desenvolvem um
"benefício próprio" ao convencer os cidadãos de que os verdadeiros perigos são muito maiores do que os governos deixam
perceber.
Jogar com os sentimentos de
insegurança e os medos resultantes se torna hoje o principal
veículo de dominação política.
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