São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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O SOCIÓLOGO ANALISA A DIFERENÇA ENTRE ANTISEMITISMO, ANTIJUDAÍSMO E ANTIISRAELISMO E PREVÊ UM FUTURO SINISTRO PARA AS RELAÇÕES ENTRE ÁRABES E JUDEUS

A DIALÉTICA DOS DOIS ÓDIOS

14.abr.2002/Associated Press
Representante da comunidade judaica francesa olha para túmulo marcado com uma suástica em cemitério de Estrasburgo (França)


Edgar Morin
especial para o "Le Monde"

Há palavras que devem ser reexaminadas; é o caso de anti-semitismo. De fato, essa palavra substituiu o antijudaísmo cristão, o qual concebia os judeus como portadores de uma religião culpada de ter condenado Jesus, isto é -embora seja uma expressão absurda para um Deus ressuscitado-, culpada de deicídio.
Já o anti-semitismo nasceu do racismo e concebe os judeus como pertencentes a uma raça inferior ou perversa, a raça semita. A partir do momento em que o antijudaísmo se desenvolveu no mundo árabe, ele mesmo semita, a expressão se torna aberrante, e convém voltar à idéia de antijudaísmo, sem referência ao "deicídio".
Há palavras que devem ser distinguidas, como o anti-sionismo do antiisraelismo, o que não impede que ocorram deslocamentos de sentido de umas às outras. De fato, o anti-sionismo nega não apenas a instalação judaica na Palestina, mas essencialmente a existência de Israel como nação. Ele não reconhece que o sionismo, no século dos nacionalismos, corresponde à aspiração de inumeráveis judeus, rejeitados pelas nações, a constituir a sua própria.
Israel é a concretização nacional do movimento sionista. O antiisraelismo tem duas formas: a primeira contesta a instalação de Israel em terras árabes, se confunde com o anti-sionismo, mas reconhecendo implicitamente a existência da nação israelense. A segunda partiu de uma crítica política, agora global, da atitude do poder israelense diante dos palestinos e diante das resoluções da ONU que pedem o retorno de Israel às fronteiras de 1967.
Como Israel é um Estado judeu e como em grande parte os judeus da diáspora, sentindo-se solidários com Israel, justificam seus atos e sua política, ocorreram então deslocamentos do antiisraelismo ao antijudaísmo. Esses deslocamentos são particularmente importantes no mundo árabe e, mais amplamente, muçulmano, onde o anti-sionismo e o antiisraelismo vão produzir um antijudaísmo generalizado.
Há um antijudaísmo francês que seria a herança, a continuação ou a persistência do velho antijudaísmo cristão e do velho anti-semitismo europeu? É a tese oficial israelense, retomada pelas instituições ditas comunitárias e por certos intelectuais judeus.
Ora, é preciso considerar que, após a colaboração dos anti-semitas franceses com o ocupante hitlerista e a descoberta do horror do genocídio nazista, houve um enfraquecimento por desconsideração do velho anti-semitismo nacionalista racista; houve, paralelamente, em conseqüência da evolução da Igreja Católica, um definhamento do antijudaísmo cristão que fazia do judeu um deicida, seguido do abandono dessa imputação grotesca. Certamente, continuam existindo focos em que o antigo anti-semitismo é reavivado, e resíduos das representações negativas associadas aos judeus persistem em diferentes partes da população; e, no inconsciente francês, persistem enfim vestígios ou raízes da "inquietante estranheza" do judeu, como o testemunhou a enquete "La Rumeur d'Orléans" [O Boato de Orléans, 1969], de que sou o autor.
Mas as críticas à repressão israelense ou mesmo o próprio antiisraelismo não são produtos do velho antijudaísmo. Pode-se mesmo dizer que houve na França, a partir de sua criação acompanhada de ameaças mortais, uma atitude globalmente favorável a Israel. Este foi visto, de início, como nação-refúgio de vítimas de uma horrível perseguição, que mereciam uma solicitude particular. Foi visto, ao mesmo tempo, como uma nação exemplar em seu espírito comunitário encarnado nos kibutz, em sua energia criadora de uma nação moderna, única em sua democracia no Oriente Médio. Acrescentemos que muitos sentimentos racistas se desviaram dos judeus para se fixar nos árabes, especialmente durante a guerra da Argélia, o que beneficiou ainda mais a imagem de Israel.
A visão benevolente de Israel transformou-se progressivamente a partir de 1967; ou seja, com a ocupação da Cisjordânia e da faixa de Gaza, com a resistência palestina, depois com a primeira Intifada, na qual um poderoso Exército reprimiu uma revolta de pedras, e a segunda Intifada, que foi reprimida por violências e rigores desproporcionais, Israel passou a ser visto cada vez mais como um Estado conquistador e opressor.


Quanto mais os judeus da diáspora se identificam com Israel, mais Israel é identificado com os judeus, mais o antiisraelismo se torna antijudaísmo

As colonizações que buscam incessantemente se apropriar de territórios palestinos, a repressão impiedosa, o espetáculo dos sofrimentos suportados pelo povo palestino, tudo isso determinou uma atitude globalmente negativa em relação à política do Estado israelense e suscitou um antiisraelismo no sentido político que demos a esse termo. Foi de fato a política de Israel que suscitou e amplificou essa forma de antiisraelismo, e não a ressurgência do anti-semitismo europeu. Mas esse antiisraelismo derivou muito pouco em antijudaísmo, na opinião pública francesa.
Em contrapartida, a repressão israelense e a negação israelense dos direitos palestinos produzem e fazem aumentar os deslocamentos do antiisraelismo para o antijudaísmo no mundo islâmico. Quanto mais os judeus da diáspora se identificam com Israel, mais Israel é identificado com os judeus, mais o antiisraelismo se torna antijudaísmo. Esse novo antijudaísmo muçulmano retoma os temas do arsenal antijudeu europeu (complô judaico para dominar o mundo, raça ignóbil) que criminaliza os judeus em sua totalidade. Com o agravamento do conflito israelo-palestino, esse antijudaísmo se difundiu e se agravou na população francesa de origem árabe, particularmente na juventude.
De fato, o que se observa não é o pseudodespertar do anti-semitismo europeu, mas o desenvolvimento de um antijudaísmo árabe. Ora, ao invés de reconhecer a causa desse antijudaísmo árabe, que está no centro da tragédia do Oriente Médio, as autoridades israelenses, as instituições comunitárias e alguns intelectuais judeus preferem ver nele a prova da persistência ou do renascimento de um inextirpável anti-semitismo europeu.
Dentro dessa lógica, toda crítica a Israel é vista como anti-semita, e muitos judeus se sentem então perseguidos nessa e por essa crítica. Na verdade, eles se degradaram na imagem de si mesmos, assim como na imagem de Israel que incorporaram à sua identidade. Identificaram-se com uma imagem de perseguidos; o Shoah [Holocausto] é o termo que estabelece para sempre sua condição de vítimas, de gentios; sua consciência histórica de perseguidos rechaça com indignação a imagem repressiva do Tsahal [Exército israelense] mostrada na televisão, logo substituída em seus espíritos pela das vítimas dos kamikases do Hamas, confundidos com os palestinos como um todo. Identificaram-se com uma imagem ideal de Israel, certamente a única democracia em meio a ditaduras, mas democracia limitada e que, como o fizeram muitas outras democracias, pode ter uma política colonial detestável. Identificaram-se com prazer com a interpretação biblicamente idealizada de que Israel é um povo de sacerdotes.
Os que são solidários incondicionalmente com Israel se sentem perseguidos interiormente pela desnaturação da imagem ideal de Israel. Esse sentimento de perseguição lhes mascara, evidentemente, o caráter perseguidor da política israelense.
Uma dialética infernal se instala. O antiisraelismo aumenta a solidariedade entre os judeus da diáspora e Israel. Este, por sua vez, quer mostrar aos judeus da diáspora que o velho antijudaísmo europeu se mostra de novo virulento, que a única pátria dos judeus é Israel e, por isso, tem necessidade de exacerbar o temor dos judeus e sua identificação com Israel.
Assim as instituições dos judeus da diáspora alimentam a ilusão de que o anti-semitismo europeu está de volta, quando se trata de palavras, de atos ou de ataques que emanam de uma juventude de origem islâmica oriunda da imigração. Já que toda crítica a Israel, segundo essa lógica, é anti-semita, os justificadores de Israel vêem essa crítica, de resto bastante moderada em todos os setores da opinião pública, como uma extensão do anti-semitismo.
E tudo isso, repetimos, serve ao mesmo tempo para ocultar a repressão israelense, para israelizar ainda mais os judeus e fornecer a Israel a justificação absoluta. A imputação de anti-semitismo, nesses casos, não tem outro sentido senão proteger Israel de toda crítica.
Se os intelectuais de origem judaica, no seio das nações de gentios, eram animados por um universalismo humanista, que contestava os particularismos nacionalistas e seus prolongamentos racistas, depois dos anos 1970 se operou uma grande mudança. A desintegração dos universalismos abstratos (stalinismo, trotskismo, maoísmo) determinou o retorno de uma parte dos intelectuais judeus ex-stalinistas, ex-trotskistas, ex-maoístas para a busca da identidade originária. Muitos daqueles que haviam identificado a União Soviética e a China à causa da humanidade, com a qual eles próprios se identificaram, se reconverteram, desiludidos, ao israelismo.
Intelectuais desmarxizados converteram-se à Torá. Uma intelligentsia judaica refere-se agora à Bíblia, vista como a fonte de todas as virtudes e de toda civilização. Ao passarem do universalismo abstrato ao particularismo judeu, aparentemente concreto, mas que é também abstrato à sua maneira (pois o judeocentrismo se abstrai do conjunto da humanidade), eles se fazem defensores e ilustradores do israelismo e do judaísmo, trazendo sua dialética e seus argumentos para condenar, como ideologicamente perversa e evidentemente anti-semita, qualquer atitude em favor das populações palestinas. Assim, muitos espíritos doravante judeocentrados são hoje incapazes de compreender a natural compaixão ante as desgraças dos palestinos. Vêem nisso não uma evidente reação humana, mas a inumanidade mesma do anti-semitismo.
A dialética dos dois ódios, dos dois desprezos, o desprezo do dominante israelense pelo árabe colonizado, mas também o novo desprezo antijudeu alimentado por todos os ingredientes do anti-semitismo europeu clássico, essa dupla dialética sustenta, amplifica e espalha os dois ódios e os dois desprezos.
Com o agravamento da situação em Israel-Palestina, a dupla intoxicação, a antijudaica e a judeocêntrica, irá se desenvolver onde quer que existam populações judaicas e muçulmanas.
Não resta dúvida de que os palestinos são os humilhados e ofendidos de hoje, e nenhuma razão ideológica poderia nos desviar da compaixão por eles. Certamente, é Israel que ofende e humilha. Mas, no terrorismo antiisraelense que se tornou antijudeu, há a ofensa suprema feita à identidade judaica: matar judeus indistintamente, homens, mulheres, crianças, fazer de todo judeu uma caça a abater, um rato a destruir, é uma afronta, uma ferida, um ultraje para toda a humanidade judaica. Atacar sinagogas e túmulos, isto é, profanar o que é sagrado, é considerar o judeu como imundo.
Certamente, um ódio terrível nasceu na Palestina e no mundo islâmico contra os judeus. E esse ódio, se visa à morte de todo judeu, comporta uma ofensa horrível. O antijudaísmo em expansão prepara um novo infortúnio judeu. E por isso, de forma ainda infernal, os que humilham e ofendem são eles próprios ofendidos e voltarão a ser humilhados. Piedade e comiseração já estão submersos pelo ódio e a vingança.
Há uma saída? A saída estaria na inversão da tendência: a diminuição do antijudaísmo por uma solução eqüitativa da questão palestina e uma política eqüitativa do Ocidente em favor do mundo árabe-muçulmano. Uma intervenção no nível internacional, contendo uma força de interposição entre as duas partes, seria a solução real. Mas essa solução real e também realista é hoje irrealista. Quantas tragédias, quantos desastres por vir, se não se conseguir fazer o realismo entrar no real?

Edgar Morin é sociólogo francês e autor de "A Religação dos Saberes" (Bertrand) e "O Método" (Sulina).
Tradução de Paulo Neves.


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