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O homem cinema
O biógrafo Antoine de Baecque diz em entrevista à Folha que tentou desvendar a vida real por trás do mito; prestes a fazer 80 anos, Godard lança o novo filme, "Socialismo", em maio, em Cannes
LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS
Um é o cineasta mais
estudado, debatido
e polêmico da
França, um dos
criadores da nouvelle vague. Seu nome é uma
espécie de palavra-slogan que
significa cinema.
O outro é um historiador e
jornalista, especialista no movimento de vanguarda do cinema francês da virada dos anos
50/60, autor de uma biografia
de Truffaut (em coautoria com
Serge Toubiana, ed. Record),
ex-diretor da revista "Cahiers
du Cinéma" e ex-editor de cultura do jornal "Libération".
Quando Antoine de Baecque
resolveu fazer a biografia de
Jean-Luc Godard, o cineasta
não se mostrou entusiasta. Dizia que sua obra é que interessa, não sua vida. Mas a editora
Grasset comprou imediatamente a ideia.
O resultado é uma obra de
944 páginas -"Godard"-, em
que o nome está sutilmente dividido (GOD numa linha, ARD,
na outra).
Trata-se de um livro magistral sobre a vida e a obra de um
dos maiores cineastas do século 20, que fará 80 anos em 3 de
dezembro e cujo primeiro filme, "Acossado" ("À Bout de
Souffle"), foi lançado exatamente há 50 anos, em março de
1960. E já nasceu clássico, revolucionando a linguagem cinematográfica.
Assim como Godard, De
Baecque lê o "L'Equipe", diário
especializado em esportes. O
jornal está sobre a mesa de
centro em sua casa, enquanto
recebe a Folha para esta entrevista exclusiva.
Apesar de autor da primeira
biografia de Godard a ser escrita na França, De Baecque não
viu a obra que o cineasta vai
apresentar em maio, em Cannes. "Socialisme" [Socialismo,
com lançamento no Brasil previsto para 2011] tem no elenco
a cantora Patti Smith, o filósofo
francês Alain Badiou e o historiador palestino Elias Sanbar.
O filme deve, sem dúvida,
provocar polêmica. Afinal, não
é esse o maior prazer do controvertido Godard?
FOLHA - Quem é Jean-Luc Godard?
ANTOINE DE BAECQUE - Como ele
mesmo diz, "eu sou uma lenda
viva". É um mito.
Acho que ele tem razão, Godard diz a verdade. O que é uma
lenda viva? É um nome -Godard- que significa cinema no
mundo inteiro; é uma espécie
de palavra-slogan que quer dizer cinema.
Foi algo que aconteceu muito
rapidamente, e ele viveu grande parte de sua vida sob esse
peso. A partir disso, era preciso
tentar ver o que havia por trás.
O interessante é esquecer um
pouco a lenda, confrontá-la
com os fatos e atos de uma vida.
FOLHA - O que encontrou além do
mito?
DE BAECQUE - Não há na vida de
Godard segredos que expliquem seu personagem, seu destino, sua genialidade. Não é como Truffaut...
Este era um bastardo, que tinha uma espécie de trauma de
infância que fazia com que o
pequeno Truffaut estivesse
sempre presente, não muito
longe do homem que se construiu justamente para superar
esse trauma, o fato de não ter tido pai e não ter sido amado.
Em Godard, não há segredo
de família, exceto quando se fala de rupturas, pequenas decisões em sua vida que explicam
o personagem -sobretudo a
ruptura com a família, quando
decidiu fazer cinema.
FOLHA - Por que precisou romper
com a família para fazer cinema?
DE BAECQUE - Godard vem de
uma grande família protestante, rica, culta, uma espécie de
aristocracia do espírito. Na
França, os Monod são uma
grande família, que queria uma
cultura nobre para o filho mais
velho -e não o cinema.
Essa ruptura foi acompanhada de uma série de outras, muitas vezes violentas em relação
ao meio familiar, o que tornou
Godard um adolescente ladrão.
Furtou muitas coisas de muitas
pessoas, inclusive em família.
Por exemplo, um livro original autografado por Paul Valéry, que roubou da grande biblioteca de seu avô -a grande
figura da família e amigo daquele poeta. Furtou um livro da
coleção do avô para vender.
Isso culminou em seu banimento pelos Monod. Foram essas rupturas que fizeram com
que Godard se construísse como Godard.
Ele renegou muito a si mesmo, mudou bastante de rumo,
numa contradição permanente
consigo mesmo. De certa forma, isso faz parte de sua própria mitologia, algo que ele
mesmo dissera em entrevistas.
FOLHA - O interessante no livro é
acompanhar a realização de cada filme, suas relações com os produtores, com os atores. Tudo isso torna a
biografia uma fonte inesgotável para os cinéfilos.
DE BAECQUE - Sim, mas também
é uma biografia de cineasta.
Espero mexer com o discurso estabelecido dos godardianos. Sobre ele, existe um discurso onipresente, extremamente importante, que respeito, que li e que até mesmo contribuí para criar.
Mas gostaria que o livro destruísse essa ideia forte -a de
que a vida de Godard não tem
importância e de que seus filmes podem ser compreendidos
sem passar por ela.
FOLHA - Como surgiu a ideia da
biografia?
DE BAECQUE - Eu já havia tido
contato com Godard, tinha feito entrevistas com ele quando
dirigia os "Cahiers du Cinéma"
e quando fui editor de cultura
do "Libération".
Nas entrevistas, ele é o contrário de um bom assunto biográfico: não gosta de falar de
sua vida, não gosta que falem de
si e é muito desconfiado. O que
me levou a escrever o livro foi
essa dificuldade.
FOLHA - Foi a editora quem encomendou o livro ou o sr. o propôs?
DE BAECQUE - Fui eu que propus,
dizendo que tinha vontade de
fazer uma coisa impossível, escrever uma vida de Godard. A
editora topou, mas Godard não
estava de acordo.
FOLHA - O sr. o contatou?
DE BAECQUE - Eu disse que iria
escrever a vida dele.
FOLHA - E como ele reagiu?
DE BAECQUE - Ele me disse: "Você não vai conseguir; de qualquer forma o importante é a
obra, não a pessoa".
FOLHA - Evidentemente, o sr. não
concorda com isso.
DE BAECQUE - Ao contrário, acho
que a vida de Godard tem um
duplo interesse. Ela é feita de
contradições, de rupturas, de
mil encontros. Ele viveu no
mundo do cinema de maneira
intensa e tem uma vida densa,
uma existência rica, ao contrário do que ele mesmo diz.
Sua vida é tão fascinante pelo
modo como ilumina a vida de
seus contemporâneos.
Seu cinema e seu modo de viver são o que capta as diferentes épocas que atravessou. Minha ambição é, como digo na
introdução do livro, conhecer o
gosto do café de Godard.
Ele disse de maneira virulenta, um pouco insolente: "De
que serve saber que tomo café
de manhã?", isso para dizer que
a vida não tem importância.
Godard tem o gênio de
apreender o que faz a vida de
uma época; ele é o melhor radar para captar isso e devolvê-lo com um estilo particular.
FOLHA - O sr. diz que seu livro
"atrairá o descontentamento de Godard, sua contestação humilhante,
até mesmo uma carta de insultos, e
o opróbrio dos godardianos do mundo todo". Por quê?
DE BAECQUE - O que me deixa feliz é que o livro está sendo bem
recebido pelos não godardianos. Godard o recebeu, mas ainda não se manifestou. Penso
que dirá algo sobre ele, pois
apresentará "Socialismo" em
Cannes, em maio. Acho que irá
reconhecer que representa
muito trabalho, que é benfeito,
mas não poderá deixar de dizer
que não é assim que se compreendem seus filmes. E acho
que ficará furioso com algumas
passagens.
FOLHA - Por exemplo?
DE BAECQUE - Suas relações interpessoais, suas relações com
as mulheres. Ele não gosta de
falar disso, das rupturas difíceis, dos mortos que o cercam.
Acho indispensável falar disso para tornar a vida de Godard
compreensível. Penso que não
irá reagir bem. Será que vai escrever uma carta, me humilhar
em público?
FOLHA - O sr. diz que Godard é, ainda hoje, um dos artistas mais célebres, mais comentados e mais analisados do mundo. Por quê?
DE BAECQUE - É um personagem
que fascina muita gente. Cresci
vendo filmes como "Salve-se
Quem Puder - A Vida", "Passion", "Carmen de Godard". Eu
tinha 20 anos.
Ao mesmo tempo em que os
de Truffaut, como "O Homem
Que Amava as Mulheres", "A
Mulher do Lado" , que me deram vontade de escrever sobre
o cinema, fizeram de mim o que
me tornei. Isso me formou.
FOLHA - O sr. diz que Godard "soube moldar seu próprio personagem
de bufão midiático, de Diógenes comunicador". Acontece que o bufão
é também um melancólico. Ele é tudo e o contrário de tudo, um paradoxo ambulante?
DE BAECQUE - Godard é feito de
contrastes, de paradoxos. É extremamente generoso, mas
muito centrado em si mesmo,
egocêntrico. Também pode ser
extremamente doce e violento,
pudico e extrovertido, terno e
perverso. Mas está mais para o
lado da melancolia, de uma forma de tristeza, de tragédia.
FOLHA - De misantropia também?
DE BAECQUE - Sim. É uma pessoa
para quem o fato de não estar
bem é inspirador. Ele sempre
filmou pessoas que carregavam
um mal-estar, fez filmes que
acabam sempre mal.
É essa infelicidade, um estado do ser, o mal-estar, o trauma
em relação à história, às mulheres, à família, em relação a si
mesmo, à sua própria personalidade, que o inspiram. É muito
mais o cineasta de personagens
habitados pela infelicidade do
que de personagens felizes.
FOLHA - O sr. é autor de uma biografia e um dicionário Truffaut e de
um livro sobre a nouvelle vague. O
atual cinema francês está à altura de
Truffaut e Godard? Quais são os
grandes talentos atuais?
DE BAECQUE - Desde a nouvelle
vague, desde os anos 60, todos
os anos muitos iniciantes fazem um primeiro ou um segundo filme. Isso é muito importante na França, mais que em
outros países. É uma constante
no cinema francês. De maneira
geral, um terço dos filmes franceses são um primeiro ou um
segundo filme.
FOLHA - E esses jovens cineastas
chegam a construir uma carreira?
DE BAECQUE - Mais ou menos,
assim como na nouvelle vague.
Naquela época, havia 120 cineastas que fizeram um primeiro filme em três anos e, depois, somente 10 ou 15 continuaram -cerca de 10%.
Hoje, é a mesma coisa, talvez
um pouco mais. A nouvelle vague legou a essa juventude a
vontade de fazer cinema. Ser
artista, hoje, passa pelo cinema.
FOLHA - Mas, na França, há o Estado com as subvenções e toda sorte
de ajuda...
DE BAECQUE - As subvenções
ajudam, mas existe a vontade
de fazer cinema quando se é jovem, e isso vem da nouvelle vague. Mas o que falta, hoje, é a
polêmica, uma certa violência,
rebelião. Isso foi o que Truffaut
e Godard encarnaram quando
eram críticos, nos anos 60.
Hoje, o cinema francês é bastante consensual, falta-lhe aspereza. É muito diversificado,
mas falta agressividade. Há
herdeiros de um ou de outro.
FOLHA - Justamente. O que Godard representa hoje para um jovem cineasta?
DE BAECQUE - Acho que duas
coisas contraditórias: de um lado, o velho babaca no panteão
metido a dar lições. Godard
gostou de fazer esse papel e
acabou detestado por isso mesmo. O velho que vem nos contar como se faz cinema, que era
melhor antes.
Essa é a imagem do "Godard
que pertence ao passado, isso
não nos interessa mais". A outra é a de Godard como "meu irmão visionário, a inspiração direta, espécie de Rimbaud".
Nas escolas de arte, nas escolas de cinema, essa imagem de
Godard é muito importante.
FOLHA - E prevalece sobre a outra?
DE BAECQUE - Podem coabitar. A
influência de Godard perdura e
é algo que me parece importante -e não só na França.
FOLHA - Logo, ele não é uma figura
do passado...
DE BAECQUE - Seus filmes perturbam, estimulam esses jovens, sem passar pela história
do cinema. Existem no presente e ainda repercutem -isso é o
que faz a força de Godard.
O cinema de Truffaut é mais
datado, mas tem muita influência por sua vida. Em Truffaut, o
que conta é a maneira de viver,
de amar o cinema, sua maneira
de amar os filmes.
FOLHA - O que mais ficou de Truffaut, em sua opinião, é o lado de crítico de cinema?
DE BAECQUE - É mais o homem
Truffaut que tem significado
para o cinema. Já em Godard, o
que mais fica é a forma, a obra.
FOLHA - E, assim como Godard e
Truffaut, o sr. não teve nunca vontade de fazer cinema, de ser cineasta?
DE BAECQUE - Fiz documentários. O último, "Deux de la Vague" [Dois da Onda, escrito por
ele e dirigido por Emmanuel
Laurent, com estreia no Brasil
prevista para 28/5], trata da
amizade e da ruptura entre
Truffaut e Godard. É um filme
de imagens de arquivo, e não é a
mesma coisa que fazer cinema
como cineasta.
FOLHA - Godard foi acusado de antissemitismo. O que o sr. pensa dessa acusação?
DE BAECQUE - É um contrassenso. Godard é antissionista, seu
pensamento se reformou no
início dos anos 1970, como denúncia do imperialismo americano e do expansionismo do
Estado de Israel, por solidariedade com a causa palestina.
Isso o leva a uma visão da história como uma espécie de maldição ligada ao extermínio dos
judeus, ao Holocausto, que para ele é o acontecimento central do século 20.
Ele não é negacionista; ele
diz que as vítimas se transformaram em carrascos.
FOLHA - Godard cultiva o gosto pelo paradoxo e pela provocação. Com
"Socialisme", seu novo filme, quem
ele quer provocar?
DE BAECQUE - Quer provocar
uma discussão sobre a morte
do comunismo, como o filósofo
Alain Badiou, que faz o papel de
um filósofo no filme e diz que
"o comunismo é uma ideologia
com o futuro diante dela".
Acho que se encontraram em
torno dessa ideia e se entendem perfeitamente, ao pensarem que o futuro da utopia é o
socialismo.
Isso é bastante provocador
num mundo como o nosso, que
quis enterrar o comunismo.
GODARD
Autor: Antoine de Baecque
Editora: Grasset (França)
Quanto: 25, R$ 59 (944 págs.)
ONDE ENCOMENDAR - Livros em
francês podem ser encomendados
pelo site
www.alapage.com
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