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"A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", do
sociólogo alemão Max Weber, é escolhido como o melhor livro de não-ficção do século
O século de Max
JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local
Por bem mais do que uma simples sutileza fonética, o século que
poderia ter sido o de Marx acabou
se tornando o de Max.
Max Weber (1864-1920) lecionava na Universidade de Heidelberg
e estava com 40 anos quando publicou "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo".
Não se tratava apenas de se contrapor ao peso determinante da
economia na estruturação e funcionamento de um modelo social,
conforme reivindicado pelo marxismo. Ao mobilizar sua imensa
erudição para tentar explicar a significação cultural dos valores protestantes na geração do modelo
capitalista de sociedade, Weber
em verdade construiu uma complexa e magnífica máquina conceitual, sem a qual o moderno
pensamento sociológico com certeza não teria nascido.
Pois "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo" foi escolhido como o mais importante escrito teórico publicado no século
20 por dez intelectuais convidados
pela Folha para elaborar a lista dos
cem melhores livros de não-ficção
ou ensaios do século. Uma outra
obra de Weber, "Economia e Sociedade", ocupa a terceira colocação (leia os dez mais votados na
pág. ao lado e os demais 90 escolhidos às págs. 5-6 e 5-7).
A dupla eleição de Weber já daria uma coloração bastante germânica ao topo dessa lista de livros de não-ficção julgados fundamentais. Mas há outros autores
que utilizaram a mesma língua, o
alemão, nas dez primeiras colocações. O austríaco Ludwig Wittgenstein comparece com duas
obras -"Tractatus Logico-Philosophicus" e "Investigações Filosóficas". Há ainda o também Sigmund Freud ("Mal-Estar na Civilização"), o alemão Martin Heidegger ("Ser e Tempo") e também Theodor Adorno e Max Horkheimer, co-autores de "Dialética
do Esclarecimento".
Entre os dez primeiros colocados, apenas três têm outra origem
linguística: John Maynard Keynes,
economista inglês e autor de
"Teoria Geral do Emprego, dos
Juros e da Moeda", e os antropólogos Marcel Mauss ("Ensaio sobre a Dádiva"), francês, e Claude
Lévi-Strauss ("Tristes Trópicos"), francês de origem belga.
Além de elaborarem a lista dos
30 textos teóricos estrangeiros
mais importantes neste século, os
dez intelectuais convidados pela
Folha elegeram os 30 livros de
não-ficção ou ensaios brasileiros
mais importantes de todos os tempos (leia nas págs. 5-8 e 5-9).
Participaram da escolha o crítico
literário e escritor Modesto Carone, o antropólogo Roberto DaMatta, o físico Rogério Cézar de
Cerqueira Leite, o economista
Eduardo Giannetti, os historiadores Evaldo Cabral de Mello e Nicolau Sevcenko e os professores de
filosofia Maria Sylvia Carvalho
Franco, Olgária Matos, Bento Prado Jr. e Renato Janine Ribeiro (leia
sobre os critérios de escolha nesta
pág.).
Um único trabalho brasileiro,
"Os Sertões", de Euclides da Cunha, aparece na lista dos cem mais
importantes livros de não-ficção
deste século.
Sobre o fato de Max Weber ocupar a primeira e a terceira colocações, Maria Sylvia Carvalho Franco comenta: "Sua erudição deixa
tudo ao redor dele muito empalidecido". Quanto à predominância de autores de língua alemã na
relação final dos ensaios deste século, Nicolau Sevcenko diz que isso se deve, "com certeza", ao fato
de a Alemanha e a Áustria terem
funcionado como "caixa de ressonância, como laboratório de
metabolização de idéias nascidas
num século de grandes e traumáticos conflitos".
Evaldo Cabral de Mello nota que
"a função do tempo é decantar a
moda". Autores que já foram objeto de forte modismo aparecem
na lista do Mais! em posição secundária, como o alemão Herbert
Marcuse, ou são ignorados, como
o francês Louis Althusser.
Há décadas atrás, o filósofo francês Michel Foucault afirmava que
o século 20 seria também o século
de Marx, de Freud e de Nietzsche
-prognóstico que não se confirma, segundo a relação publicada
neste caderno. Para Modesto Carone, "o "engano" de Foucault é
um fato de atualidade, que não pode ser negado, pois ele próprio está hoje bastante esquecido". O
crítico ressalta que "não se pode
tirar nenhuma conclusão definitiva a partir dessa lista, porque ela
reflete condições do momento histórico, como não poderia deixar
de ser". Para Carone, no entanto,
em geral, todos os autores citados
na lista são de importância "para
a formação de qualquer brasileiro
culto". "É, como tal, ela deve ser
levada em conta", diz.
É bem verdade que Freud aparece duas vezes na relação dos 30
maiores ensaios, mas, para alguns
dos intelectuais, a posição final
(quarto lugar) alcançada pelo fundador da teoria psicanalítica não
foi satisfatória. "Eu acredito que
Freud deveria estar em primeiro
lugar, mais como filósofo do que
como criador da psicanálise", diz
Bento Prado Jr. "Freud foi o autor
do grande pensamento revolucionário", defende Cerqueira Leite.
Os dois professores refletem uma
das grandes certezas deste século:
bem mais do que a teoria do inconsciente em sua dimensão clínica, deve-se a Freud um novo conceito de homem, sobre o qual
muitos, mesmo quando vozes discordantes, foram obrigados a se
posicionar.
Quanto a Marx e Nietzsche, que
realizaram toda sua obra no século
19, mas cuja influência atravessa
todo este século, Olgária Matos
afirma que ambos estão presentes
nos efeitos diretos de seus conceitos em dezenas dos livros citados,
sobretudo em "Dialética do Esclarecimento", de Adorno e Horkheimer, que ocupa na lista a segunda posição. "Os que sumiram
da lista foram os marxistas que
transformaram o pensamento de
Marx em estratégia política", diz
ela. E entre esses "sumidos" há
de Lênin a Mao Tse-tung e mais
toda a burocracia dos partidos de
esquerda que teorizou em causa
própria.
"Dada a variedade do júri", diz
Renato Janine Ribeiro, "é um resultado bastante razoável. Eu endossaria 80% da lista e acredito
que os 20% restantes vieram de
pessoas que acabaram por enriquecê-la".
Eduardo Giannetti constata que
as obras foram certamente escolhidas com base na formação intelectual de cada um, com base na
corrente a que se pertence e ainda
levando em conta o momento em
que a escolha ocorreu. Para ele, é
positivo esse potencial de diversidade. Com o que concorda Roberto DaMatta, para quem a lista é
uma prova da heterogeneidade da
"intelligentsia" brasileira.
DaMatta crê, no entanto, prevalecer, no resultado final, o pensamento teórico da Universidade de
São Paulo. Também para Cerqueira Leite, da Universidade Estadual
de Campinas, o resultado é "mais
para uspiano".
Há, por fim, as lacunas e as divergências quanto à classificação
final. Janine Ribeiro lamenta a ausência de obras do poeta e ensaísta
mexicano Octavio Paz. Maria
Sylvia diz o quanto é, a seu ver,
importante, em razão da constante atualidade da questão do imperialismo, o pensamento de Rosa
Luxemburgo, que ela indicou em
quarto lugar, mas que só atingiu o
47º na apuração final. Bento Prado
Jr. diz ser injusto o posicionamento relativamente secundário do filósofo francês Henri Bergson. Carone, por sua vez, colocaria Adorno na primeira posição na lista final, enquanto Cerqueira Leite lamenta que, por serem sobretudo
pesquisadores na área das ciências
humanas, os jurados não tenham
dado importância maior a textos
fundamentais das ciências exatas
deste século -o mesmo que, afinal, descobriu a relatividade, criou
a bomba atômica, levou o homem
à Lua e realizou a clonagem de animais.
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