São Paulo, Domingo, 11 de Abril de 1999
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"A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", do sociólogo alemão Max Weber, é escolhido como o melhor livro de não-ficção do século
O século de Max

JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

Por bem mais do que uma simples sutileza fonética, o século que poderia ter sido o de Marx acabou se tornando o de Max.
Max Weber (1864-1920) lecionava na Universidade de Heidelberg e estava com 40 anos quando publicou "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo".
Não se tratava apenas de se contrapor ao peso determinante da economia na estruturação e funcionamento de um modelo social, conforme reivindicado pelo marxismo. Ao mobilizar sua imensa erudição para tentar explicar a significação cultural dos valores protestantes na geração do modelo capitalista de sociedade, Weber em verdade construiu uma complexa e magnífica máquina conceitual, sem a qual o moderno pensamento sociológico com certeza não teria nascido.
Pois "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo" foi escolhido como o mais importante escrito teórico publicado no século 20 por dez intelectuais convidados pela Folha para elaborar a lista dos cem melhores livros de não-ficção ou ensaios do século. Uma outra obra de Weber, "Economia e Sociedade", ocupa a terceira colocação (leia os dez mais votados na pág. ao lado e os demais 90 escolhidos às págs. 5-6 e 5-7).
A dupla eleição de Weber já daria uma coloração bastante germânica ao topo dessa lista de livros de não-ficção julgados fundamentais. Mas há outros autores que utilizaram a mesma língua, o alemão, nas dez primeiras colocações. O austríaco Ludwig Wittgenstein comparece com duas obras -"Tractatus Logico-Philosophicus" e "Investigações Filosóficas". Há ainda o também Sigmund Freud ("Mal-Estar na Civilização"), o alemão Martin Heidegger ("Ser e Tempo") e também Theodor Adorno e Max Horkheimer, co-autores de "Dialética do Esclarecimento".
Entre os dez primeiros colocados, apenas três têm outra origem linguística: John Maynard Keynes, economista inglês e autor de "Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda", e os antropólogos Marcel Mauss ("Ensaio sobre a Dádiva"), francês, e Claude Lévi-Strauss ("Tristes Trópicos"), francês de origem belga.
Além de elaborarem a lista dos 30 textos teóricos estrangeiros mais importantes neste século, os dez intelectuais convidados pela Folha elegeram os 30 livros de não-ficção ou ensaios brasileiros mais importantes de todos os tempos (leia nas págs. 5-8 e 5-9).
Participaram da escolha o crítico literário e escritor Modesto Carone, o antropólogo Roberto DaMatta, o físico Rogério Cézar de Cerqueira Leite, o economista Eduardo Giannetti, os historiadores Evaldo Cabral de Mello e Nicolau Sevcenko e os professores de filosofia Maria Sylvia Carvalho Franco, Olgária Matos, Bento Prado Jr. e Renato Janine Ribeiro (leia sobre os critérios de escolha nesta pág.).
Um único trabalho brasileiro, "Os Sertões", de Euclides da Cunha, aparece na lista dos cem mais importantes livros de não-ficção deste século.
Sobre o fato de Max Weber ocupar a primeira e a terceira colocações, Maria Sylvia Carvalho Franco comenta: "Sua erudição deixa tudo ao redor dele muito empalidecido". Quanto à predominância de autores de língua alemã na relação final dos ensaios deste século, Nicolau Sevcenko diz que isso se deve, "com certeza", ao fato de a Alemanha e a Áustria terem funcionado como "caixa de ressonância, como laboratório de metabolização de idéias nascidas num século de grandes e traumáticos conflitos".
Evaldo Cabral de Mello nota que "a função do tempo é decantar a moda". Autores que já foram objeto de forte modismo aparecem na lista do Mais! em posição secundária, como o alemão Herbert Marcuse, ou são ignorados, como o francês Louis Althusser.
Há décadas atrás, o filósofo francês Michel Foucault afirmava que o século 20 seria também o século de Marx, de Freud e de Nietzsche -prognóstico que não se confirma, segundo a relação publicada neste caderno. Para Modesto Carone, "o "engano" de Foucault é um fato de atualidade, que não pode ser negado, pois ele próprio está hoje bastante esquecido". O crítico ressalta que "não se pode tirar nenhuma conclusão definitiva a partir dessa lista, porque ela reflete condições do momento histórico, como não poderia deixar de ser". Para Carone, no entanto, em geral, todos os autores citados na lista são de importância "para a formação de qualquer brasileiro culto". "É, como tal, ela deve ser levada em conta", diz.
É bem verdade que Freud aparece duas vezes na relação dos 30 maiores ensaios, mas, para alguns dos intelectuais, a posição final (quarto lugar) alcançada pelo fundador da teoria psicanalítica não foi satisfatória. "Eu acredito que Freud deveria estar em primeiro lugar, mais como filósofo do que como criador da psicanálise", diz Bento Prado Jr. "Freud foi o autor do grande pensamento revolucionário", defende Cerqueira Leite. Os dois professores refletem uma das grandes certezas deste século: bem mais do que a teoria do inconsciente em sua dimensão clínica, deve-se a Freud um novo conceito de homem, sobre o qual muitos, mesmo quando vozes discordantes, foram obrigados a se posicionar.
Quanto a Marx e Nietzsche, que realizaram toda sua obra no século 19, mas cuja influência atravessa todo este século, Olgária Matos afirma que ambos estão presentes nos efeitos diretos de seus conceitos em dezenas dos livros citados, sobretudo em "Dialética do Esclarecimento", de Adorno e Horkheimer, que ocupa na lista a segunda posição. "Os que sumiram da lista foram os marxistas que transformaram o pensamento de Marx em estratégia política", diz ela. E entre esses "sumidos" há de Lênin a Mao Tse-tung e mais toda a burocracia dos partidos de esquerda que teorizou em causa própria.
"Dada a variedade do júri", diz Renato Janine Ribeiro, "é um resultado bastante razoável. Eu endossaria 80% da lista e acredito que os 20% restantes vieram de pessoas que acabaram por enriquecê-la".
Eduardo Giannetti constata que as obras foram certamente escolhidas com base na formação intelectual de cada um, com base na corrente a que se pertence e ainda levando em conta o momento em que a escolha ocorreu. Para ele, é positivo esse potencial de diversidade. Com o que concorda Roberto DaMatta, para quem a lista é uma prova da heterogeneidade da "intelligentsia" brasileira.
DaMatta crê, no entanto, prevalecer, no resultado final, o pensamento teórico da Universidade de São Paulo. Também para Cerqueira Leite, da Universidade Estadual de Campinas, o resultado é "mais para uspiano".
Há, por fim, as lacunas e as divergências quanto à classificação final. Janine Ribeiro lamenta a ausência de obras do poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz. Maria Sylvia diz o quanto é, a seu ver, importante, em razão da constante atualidade da questão do imperialismo, o pensamento de Rosa Luxemburgo, que ela indicou em quarto lugar, mas que só atingiu o 47º na apuração final. Bento Prado Jr. diz ser injusto o posicionamento relativamente secundário do filósofo francês Henri Bergson. Carone, por sua vez, colocaria Adorno na primeira posição na lista final, enquanto Cerqueira Leite lamenta que, por serem sobretudo pesquisadores na área das ciências humanas, os jurados não tenham dado importância maior a textos fundamentais das ciências exatas deste século -o mesmo que, afinal, descobriu a relatividade, criou a bomba atômica, levou o homem à Lua e realizou a clonagem de animais.


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