São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997.



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CRÍTICA LITERÁRIA


Leyla Perrone-Moisés critica a leitura política da obra do poeta francês feita por Dolf Oehler


Baudelaire reabilitado

LEYLA PERRONE-MOISÉS
especial para a Folha

Que me desculpem meus amigos Roberto Schwarz e Modesto Carone, mas o livro de Dolf Oehler sobre Baudelaire (1) não me deixou "pasma" e "perplexa" como promete Roberto, na orelha do livro, nem dizendo "que coisa!", como vaticina Modesto em artigo do Mais! (2). Talvez porque eu não seja nem uma leitora marxista-ortodoxa do texto literário, nem a "leitora grã-fina" a que se refere Modesto. Como leitora contumaz de Baudelaire e da extensa bibliografia crítica sobre o poeta, fiquei apenas interessada e... reticente.
Dentro dos pressupostos e objetivos do crítico -uma "reabilitação" e uma "reinterpretação" do poeta, à luz da luta de classes que se travava na França por volta de 1848- o trabalho de Oehler é honesto (desde a exposição de seus princípios e objetivos), bem documentado, astucioso no uso e na interpretação das citações, original no cotejo com outros textos da época, elegante e claro no estilo. Essas qualidades lhe garantem um lugar honroso na bibliografia baudelaireana.
Que Baudelaire necessite e mereça ser reinterpretado, está fora de dúvida. Todos os grandes autores devem ser reinterpretados, não apenas porque a crítica para isso continua existindo, mas porque a capacidade de suscitar novas interpretações (diversas ou mesmo conflitantes) é uma prova da grandeza da obra. Que Baudelaire necessite ser "reabilitado", já me parece discutível. Reabilitado por quem? Quem foi que o colocou num lugar desonroso, de onde ele precise ser resgatado? Trata-se aí, evidentemente, de uma reabilitação ideológica. Embora o autor tome a precaução de dizer que não se trata de conceder "um salvo-conduto ideológico" (pág. 27), o livro todo mostra que é exatamente disso que se trata: dar um atestado de boa conduta política a Baudelaire, a Daumier e a Heine.
A reabilitação implica um sistema de inclusões e exclusões, e o de Oehler é claro. Merecem reabilitação: o Flaubert da "Education Sentimentale" (e só este!), Baudelaire, Heine e Proust ("que coisa!", digo eu, agora); eles foram "difamados" como elitistas (pág. 86). Por outro lado, o "jovem" Flaubert, Gautier e Mallarmé não merecem nenhuma reabilitação; eram mesmo horríveis elitistas (pág. 24).
Além desse objetivo de reabilitação ideológica, o crítico pretende ainda não apenas dar prosseguimento às análises de seus mestres Walter Benjamin, Sartre e Adorno, mas também mostrar-se mais clarividente do que estes. Benjamin, segundo ele, enganou-se quando viu em Baudelaire "um agente da insatisfação secreta de sua classe com a própria dominação" (pág. 16); não conseguiu orientar-se "na mata cerrada da recepção" de Baudelaire (pág. 24); errou na interpretação do uso da teoria das "correspondências" (pág. 192); sobretudo, não foi tão incisivo na afirmação do engajamento político de Baudelaire, como Oehler gostaria. Sartre incorreu num "lamentável engano" ao "nivelar" (sic, pág. 25) Baudelaire a Flaubert e Mallarmé, e isso por má influência de Valéry (elitista não-reabilitável, claro); e cometeu "um grave erro de cálculo" ao declarar que Flaubert e Baudelaire eram escritores apolíticos. Adorno insistiu no "erro amplamente difundido" de supor que Baudelaire voltou "sua máscara trágico-altiva às massas" (pág. 170). Ora, devo dizer que, lido o livro de Oehler, admirei ainda mais esses críticos, sobretudo Benjamin (imbatível), pela sutileza de suas análises, comparadas às quais as de Oehler ficam frequentemente unívocas e tendenciosas.
O método crítico de Oehler é, ao mesmo tempo, anacrônico e muito atual. Ele é anacrônico porque, como um marxista clássico, ele começa seu estudo por um "Painel histórico-estético da Monarquia de Julho (1830-1848)", o que pressupõe que a literatura é um efeito da história, e que esta explica aquela. Não era outro o método das velhos manuais literários positivistas, que obedeciam sempre ao mesmo esquema: painel histórico do século em questão, biografia dos autores, obras dos autores. No sentido da reabilitação do autor, também não faltaram, até meados de nosso século, estudos de Baudelaire por bons católicos mostrando o quanto, apesar de sua aparente imoralidade, ele foi religioso e, portanto, um fiel servidor de Deus. Também é preciso lembrar que o livro de Oehler foi publicado há quase 20 anos (1979), num momento em que a crítica marxista não via a necessidade de qualquer atualização.
Essas velhas maneiras de ler as obras literárias a partir da ideologia voltaram recentemente a ter grande prestígio, sobretudo nos Estados Unidos, com a onda do "politicamente correto", que encampa o "neomarxismo". Segundo Oehler, Baudelaire foi um poeta que militava pelos trabalhadores e pelas mulheres. Se os trabalhadores continuam não tendo poder nas universidades, as feministas têm, e podem gostar dessa faceta de Baudelaire. Na leitura de Oehler, a ênfase não é posta no Baudelaire amante das mulheres em geral, mas no Baudelaire partidário das inimigas da falocracia, pois "ele possuía uma sensibilidade bastante apurada para as formas especificamente modernas do amor, e desejava elevar as heroínas de sua poesia, justamente aquelas representantes daquela forma de amor que representava o maior dos escândalos para os homens da época: as lésbicas" (pág. 247). Como assim? Formas especificamente modernas do amor? Escândalo só para os homens daquela época? Mas não são essas curiosas afirmações de Oehler que incomodam. O que incomoda é o uso que ele faz dos textos de Baudelaire para comprová-las, afastando tudo o que seja prova do contrário. No caso das lésbicas, por exemplo, ele ressalta os trechos dos poemas em que o lesbianismo é exaltado e omite aqueles em que ele é qualificado como amor insatisfatório, infeliz e pecaminoso (desde o título dos poemas -"Femmes Damnées"- até estrofes inteiras dos mesmos). E quando são citados alguns versos em que Baudelaire fala das lésbicas como malditas, estes são atribuídos à esperteza do poeta para fugir da censura, ou a uma atitude irônica. Ora, as lésbicas eram um tema erótico, fantasia do desejo masculino comum no século 19. Veja-se toda a iconografia libertina, "La Fille aux Yeux d'Or", de Balzac, ou o famoso quadro de Courbet, "Mulheres Adormecidas".
Oehler afirma que "o jovem dândi observava o início do movimento feminista na época com a mesma simpatia com que observava o movimento operário" (pág. 256). Pergunto-me de onde ele tirou essa pérola. Certamente, não das cartas e do diário de Baudelaire (que ele evita citar, em geral), nos quais podemos ler, com todas as letras, a paixão mesclada de profundo desprezo que ele tinha pelas mulheres, aceitáveis apenas como prostitutas ou empregadas domésticas: "Les filles ou le pot-au-feu" (as prostitutas ou o as que preparam o cozido), as "duas únicas classes de mulheres possíveis" ("Conseils aux Jeunes Littérateurs"). Ou em "Fusées": "Amar as mulheres inteligentes é um prazer de pederasta". Ou, então, em "Mon Coeur Mis à Nu": "Por que o homem inteligente prefere as prostitutas às mulheres da sociedade, embora ambas sejam igualmente burras? Resposta a encontrar". Os dois tipos, como se sabe, encarnaram-se em sua vida na oposição Jeanne Duval/Madame Sabatier, respectivamente "demônio" e "anjo", segundo a dicotomia cara aos românticos e muito conhecida dos psicanalistas. Poderia dar muitos outros exemplos da misoginia do falocrata Baudelaire, mas eu não estou aqui para julgá-lo. Apenas não vejo, em parte alguma de sua obra ou de sua correspondência, qualquer indício de seu avançado feminismo.
Sua adesão ao proletariado também é bastante discutível. Que Baudelaire tenha ficado "deslumbrado e enternecido" (são as palavras que ele usou) com o "Canto dos Trabalhadores", de Pierre Dupont (episódio enfatizado por Oehler), é fato. Também é fato comprovado que ele tenha estado nas trincheiras de 1848. Mas dá para esquecer que ele pegou em armas gritando "Morte ao general Aupick!"? O poeta, então com 27 anos, tinha ódio de seu padrasto general e estava revoltado com a interdição judicial que o privava do usufruto de sua herança. É claro que o general Aupick representava todos os odiosos burgueses; mas a revolta de Baudelaire era tanto a do revolucionário convicto quanto a do filho traído e do burguês subitamente empobrecido. Não sou eu que estou dando uma interpretação psicológica do fato. O próprio Baudelaire, em "Mon Coeur Mis à Nu", é muito lúcido quanto à ambiguidade de sua atitude revolucionária: "Minha embriaguez em 1848. De que natureza era essa embriaguez? Gosto da vingança. Prazer natural da demolição. Embriaguez literária; lembranças de leituras".
Por mais que Oehler tente limpar do currículo de Baudelaire qualquer mancha ideológica, também não dá para esquecer que suas atitudes com relação ao Segundo Império foram pelo menos ambíguas: o antigo revolucionário solicitou a esse governo a Legião de Honra, obteve ajudas monetárias de Napoleão 3º, queria candidatar-se à Academia Francesa, tudo para impressionar bem sua mãe e ter sua herança de volta. Por que Oehler dá a Flaubert o epíteto desdenhoso de "rentier Flaubert" (que vive de rendas) e não dá a Baudelaire o de "herdeiro frustrado Baudelaire"? Aliás, tanto um como outro se mostraram burgueses ineptos na administração de seu capital; distraídos pela arte, acabaram pobres.
A adesão às revoluções do século 19 foi ambígua por parte da maioria dos artistas. Delacroix, citado sempre por Oehler como "o pintor do 'Massacre de Scio' e de 'A Liberdade sobre as Barricadas'±" (que ilustra seu livro e o artigo de Modesto Carone), era ainda menos ambíguo do que seu amigo e admirador Baudelaire. Segundo o testemunho de Dumas, Delacroix quase morreu de medo quando viu as barricadas de 1830 e, segundo ele mesmo, só pintou o quadro porque gostou das cores da bandeira tricolor contra o céu cinzento. Já em 1848, irritou-se com o vandalismo e os transtornos da vida cotidiana. Continuou sendo o mesmo dândi, e cada vez mais conservador. Preciso dizer que isso não diminui em nada a obra pictoricamente revolucionária de Delacroix?
Voltemos à alegada adesão de Baudelaire ao proletariado. As análises de Oehler se apóiam, de modo especial, no poema em prosa "Assommons les Pauvres" ("Espanquemos os Pobres", e não "Aniquilemos os Pobres", como está traduzido). É verdade que esse poema mostra uma consciência política e uma defesa mordaz dos pobres (pela via da ironia) muito diversa do paternalismo sentimental dos primeiros românticos. É tão verdade que vários críticos o haviam apontado antes de Oehler. Mas essa real simpatia de Baudelaire pelos pobres nunca foi, nem poderia ser, uma adesão em termos de classe. Baudelaire odiava a burguesia porque esta desprezava os poetas e porque sofreu na carne o poder maléfico do dinheiro. Mas nem por isso se sentiu igual às massas oprimidas. Situou-se, em suas próprias palavras, como um desclassificado, nem burguês, nem operário, nem lúmpem, mas membro daquela "classe" fora (e, para ele, acima) das classes, a "classe" marginal da aristocracia dos poetas: como Poe, antes dele, como Pessoa, depois dele. "Fundar uma nova espécie de aristocracia" era o objetivo do poeta-dândi ("Le Peintre de la Vie Moderne"). Embora lúcido, como cidadão, com relação à sociedade de seu tempo, como poeta Baudelaire não tinha qualquer objetivo de corrigi-la ou melhorá-la. Suas recusas de qualquer uso "utilitário" ou "moral" da poesia são de uma abundância e de uma frequência impressionantes, em especial nas "Notes sur Edgar Poe": "A poesia não tem outro objetivo a não ser ela mesma; ela não pode ter outro, e nenhum poema será tão grande, tão verdadeiramente digno do nome de poema, como aquele que foi escrito unicamente pelo prazer de escrever um poema". E, num artigo de 1851: "É doloroso notar que encontramos erros semelhantes em duas escolas opostas: a escola burguesa e a escola socialista. 'Moralizemos!'±' Moralizemos!', gritam as duas com uma febre de missionários. Naturalmente, uma prega a moral burguesa, e a outra a moral socialista. Desde então, a arte não é mais do que uma questão de propaganda".
Quanto ao outro texto analisado por Oehler, do "Salon de 1846", em que Baudelaire assume a postura do dândi que manda bater no "humilde e anônimo operário", porque ele não cuida das rosas nem dos perfumes, este me parece mais complexo do que "Assommons les Pauvres". O poeta-dândi é um provocador, isso faz parte do seu repertório de poses.
Mas o crítico marxista só vê, aí, uma sátira da ideologia burguesa. Além disso, o crítico distorce o texto de Baudelaire colocando entre aspas "o trabalhador pobre e anônimo, que quer ser livre e construir uma fábrica para flores e perfumes novos" (pág. 159), quando o que o poeta diz é: "Ele não quer mais trabalhar, humilde e anônimo trabalhador, nas rosas e nos perfumes públicos; ele quer ser livre, o ignorante, e é incapaz de fundar um ateliê de flores e de perfumarias novas". Será que basta ler apenas como uma antífrase?
O estranho sistema de provas utilizado por Oehler, para reabilitar ideologicamente Baudelaire, aparece claramente nas págs. 170-171 de seu livro. Contradizendo Adorno, quanto a Baudelaire ter voltado as costas às massas, ele dá uma citação do poeta em que ele ataca "os reis e a burguesia". Mas o que Baudelaire opõe aí à "democracia" (palavra que ele detestava, como Flaubert), à burguesia e à aristocracia é: "Tudo o que em arte representava o excesso na cor e na forma". Comentário de Oehler: "O ódio aristocrático aos reis e à burguesia vai de mãos dadas com a predileção por tudo o que é excessivo -na arte. Subentende-se aqui que as idéias sociais que esperávamos são cuidadosamente desviadas para o lado estético". Assim, quando o pé da letra não convém às suas expectativas, Oehler atribui a formulação a um maquiavelismo de Baudelaire. E, em seguida, o crítico dá um salto mortal: excesso na arte = satanismo = "adesão às classes inferiores".
Em sua preocupação constante de dar uma interpretação politicamente correta de Baudelaire, ficamos, assim, sabendo, através do livro, que o erotismo, o satanismo, o dandismo, a teoria das correspondências e tudo o mais, repostos em seu contexto de luta de classes, trabalham pela vitória do proletariado. Ora, que a arte de Baudelaire, como toda grande arte moderna, seja revolucionária e trabalhe, indiretamente, para uma transformação da realidade, parece-me perfeitamente correto. Mas não é necessário atribuir aos artistas uma ação consciente e efetiva sobre a sociedade, atropelando brutalmente certas evidências documentadas. Por exemplo, a religiosidade sempre declarada de Baudelaire. Seu erotismo depende inteiramente de haver Bem e Mal, Deus e Satã; sem a crença no pecado católico, as transgressões de Baudelaire não teriam, para ele, nenhum atrativo. "A volúpia única e suprema do amor jaz na certeza de fazer o mal" ("Fusées").
As famosas "correspondências", teoria mística do romantismo alemão e do sueco Swedenborg, que fascinou Baudelaire e tantos escritores do século 19, tornam-se, na leitura de Oehler, meras "operações da guerrilha semântica contra o público" (pág. 192). A própria arquitetura das "Fleurs du Mal" é atribuída, em sua macro e microestrutura, ao "ritmo das lutas de classe" (pág. 170). Aliás, o Mal referido no título nada mais é do que "nome dado por Baudelaire à ordem social burguesa e capitalista na qual ele vive e sofre".
Vamos e venhamos: mesmo sem pôr em causa essas interpretações, não são elas meio repetitivas, para não dizer redutoras? Além disso, é impossível não ver as contradições que elas contêm, com relação aos textos de Baudelaire. O Mal de Oehler é conotado negativamente ("a ordem social..."). O Mal de Baudelaire é por ele conotado positivamente, numa inversão da moral cristã; seu projeto é o de mostrar a beleza do Mal. Aliás, a expressão "flores do mal" foi colhida por Baudelaire num trecho de "Le Lys dans la Vallée" de Balzac (romance também influenciado pela teoria mística das correspondências), onde ela aparece como qualificativo das prostitutas.
No sistema de Oehler, o romantismo é condenado e, logicamente, Baudelaire fica isento do idealismo romântico. A grande arma de Baudelaire, segundo o crítico, é a ironia, e esta o distingue dos românticos idealistas. Ora, a ironia é uma característica do romantismo. Byron, por exemplo, foi um mestre no seu uso. As provas citacionais de Oehler são facilmente contestáveis. Na pág. 184, ele mostra como Baudelaire era avançado por ofender a lua, tema romântico por excelência. Acontece que "o jovem e eternamente apolítico Flaubert" (pág. 50), que ele não aprecia, tinha feito a mesma coisa aos 16 anos, no conto "Quidquid Volueris" (1837). O mesmo "alienado" Flaubert termina esse conto com o triunfo e a palavra final de um merceeiro, num tipo de ironia que Oehler aprecia em Baudelaire. Flaubert, como Baudelaire, pertencem ao chamado "segundo romantismo", quando a ironia romântica se volta contra ela mesma e, nesse sentido, eles são mais lúcidos do que os primeiros românticos, sem deixarem, entretanto, de ter uma concepção idealista da arte. Por isso há algo de profundamente trágico em ambos, nessa aliança de ideal romântico e desencanto moderno.
E que fim levou a arte poética de Baudelaire no livro de Oehler? Só é valorizada, em sua poética, o que serve ao político. Parece que os críticos marxistas não avançaram nem um passo além do marxismo clássico. O próprio Engels poderia inspirá-los a ir mais adiante. Numa carta a F. Mehring, em 14 de julho de 1893, ele dizia: "Nós todos colocamos, e fomos obrigados a colocar, a principal ênfase na derivação do político, do jurídico e de outras noções ideológicas, e das ações decorrentes dessas noções, de fatos econômicos básicos. Mas, ao fazer isso, negligenciamos o lado formal -os modos e meios pelos quais essas noções aparecem- e privilegiamos o conteúdo" (3). Essa autocrítica seria particularmente pertinente para a crítica de arte.
E, para terminar: qual a atualidade de Baudelaire, se nele valorizarmos apenas sua oposição à burguesia? Que público teria Baudelaire na sociedade de hoje, em que assistimos a lutas bem mais complexas do que a luta de classes do século 19? O operário de hoje continua não querendo "rosas e perfumes"; quer, como todas as classes, eletrodomésticos, automóvel e tênis Reebok. O merceeiro, estigmatizado por Baudelaire e Flaubert como modelo do pequeno burguês, já nem existe mais, substituído pelas grandes cadeias de supermercados. O burguês capitalista também não é mais um indivíduo, nem mesmo um tipo; foi substituído por poderes financeiros internacionais e anônimos. Essas transformações do capitalismo não invalidam Marx, até o confirmam para além de suas previsões mais pessimistas. E, justamente por isso, uma análise marxista da sociedade que se detenha na luta de classes do século 19 é insuficiente.
Por outro lado, uma análise da literatura do século 19, com o instrumental marxista do mesmo século, é perfeitamente adequada para esclarecer muitos aspectos da mesma, mas insuficiente para explicar a permanência das obras literárias. Essa permanência era um enigma para o próprio Marx: "A dificuldade não consiste em compreender que a arte grega e a epopéia estejam ligadas a certas formas do desenvolvimento social. A dificuldade consiste em compreender como podem ainda suscitar prazer estético e, em certa medida, serem consideradas como norma e modelos inimitáveis" ("Introdução à Crítica da Economia Política") (4). Se Baudelaire fosse bom só porque foi politicamente consciente, sua consciência estaria agora ultrapassada, e só o leríamos como documento histórico. Mas, felizmente, ele continua a ser lido. Para ficarmos só no Brasil: uma recente edição das "Flores do Mal" pela Nova Fronteira esgotou-se rapidamente (5). O que faz com que Baudelaire continue a ser lido é a qualidade estética de seus poemas e, nestes, uma temática de duração histórica mais longa do que a temática política de seu século: a mulher, o erotismo, a viagem, o sonho, a cidade, os paraísos artificiais, a crise da subjetividade, a inquietação religiosa etc. Os poetas não necessitam de atestado de bem pensar ou de boa conduta. Basta terem escrito algo como "Les Fleurs du Mal". O papel revolucionário de Baudelaire, hoje, é o de ser um antídoto contra o lixo literário da sociedade de consumo, é o de ser valor-poesia numa sociedade sem valores.

Notas:
1. Dolf Oehler, "Quadros Parisienses" (Cia. das Letras, R$ 28,50, 320 págs).
2. Mais!, 20/4/1997.
3. In "Socialist Thought: A Documentary History", Ed. Albert Fried & Ronald Sanders, Toronto, Anchor Books, 1964, pág. 325.
4. Marx e Engels, "Sobre Literatura e Arte", Lisboa, Editorial Estampa, 1974, pág. 62.
5. A edição vendeu 40 mil exemplares, segundo a Nova Fronteira, e está esgotada; uma nova tiragem será lançada este mês (nota da Redação)


Leyla Perrone-Moisés é professora titular de literatura francesa da USP e autora, entre outros, de "Flores da Escrivaninha" (Companhia das Letras).



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