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Morto há cem anos, o russo Anton Tchekhov, autor de "Tio Vânia" e "Enfermaria
Número Seis", renovou o conto e a dramaturgia ao conciliar ciência e literatura
As vozes múltiplas da compaixão
Moacyr Scliar
Colunista da Folha
Julho assinala o centenário da morte
daquele que pode ser considerado o
fundador tanto do conto moderno como do moderno teatro, Anton Tchekhov (a grafia de seu sobrenome em português varia amplamente: Chekov, Tchekov,
Tchekhovà). Terceiro de seis filhos, ele
nasceu (1860) na cidade portuária de Taganrog, junto do mar Negro. Era de família
humilde: o pai, Pavel, um merceeiro, o avô,
um servo que tinha conseguido comprar a
liberdade. Realidade social era coisa que o
jovem Tchekhov conheceu por experiência própria. Como também conhecia a
opressão: Pavel era um fanático religioso,
um déspota que tiranizava os filhos.
A mãe, por outro lado, era grande contadora de histórias; foi ela quem, ensinando
o menino Anton a ler e a escrever, despertou nele o gosto pela narrativa. E, ainda na
escola, Tchekhov começou a participar de
grupos de teatro amador.
A falência do pai mudou a vida da família. Sem dinheiro, Pavel partiu para Moscou em busca de trabalho. A mulher e os filhos menores seguiram-no pouco depois.
Por um breve período, Anton viu-se só, em
Taganrog, lutando para sobreviver; finalmente, terminou os estudos básicos e seguiu também para a capital, onde o pai tinha arranjado emprego. Em 1879, o jovem
Tchekhov conseguiu uma bolsa para estudar medicina na Universidade de Moscou.
Foi como estudante de medicina que
Tchekhov começou a escrever contos, que
publicava em revistas populares. Tratava-se de vocação literária, mas tratava-se também de necessidade prática: tinha de ajudar no sustento da família. A partir de então trataria de compatibilizar literatura e
medicina. Como disse em carta ao amigo
Suvórin: "A medicina é minha mulher, a literatura, minha amante. Quando uma me
aborrece, passo a noite com outra. Ainda
que tal procedimento escape às regras habituais, quebra a monotonia; além disso,
nenhuma das duas sai perdendo com minha infidelidade. Se não tivesse minhas atividades médicas, dificilmente poderia consagrar à literatura minha liberdade de espírito e meus devaneios".
Declaração surpreendente e, para muitos, não convincente: Tolstói, por exemplo,
via na medicina um obstáculo à carreira de
Tchekhov. Mas o escritor era grato à sua
formação médica, fonte de aprendizado e
de experiências. Negava com veemência a
existência das duas culturas, a científica e a
literária, da qual falaria o físico e escritor
inglês C.P. Snow no seu famoso ensaio de
1959. Nesse sentido, estava mais de acordo
com o espírito da Renascença do que com
os românticos; baseava-se também no
exemplo de Goethe, em quem "ao lado do
poeta coexistia perfeitamente o naturalista". É preciso lembrar que Tchekhov viveu
a época da revolução científica e que por
ela foi influenciado. Assim, era um leitor
entusiasmado de Darwin e um defensor do
evolucionismo. Também nessa época Pasteur e seus colaboradores estavam transformando o microscópio no instrumento
que permitia identificar agentes causadores de doenças, abrindo novas perspectivas
no diagnóstico, na prevenção e no tratamento das doenças infecciosas.
Para Tchekhov, a ciência permitia perceber que "um trecho musical e uma árvore
têm algo em comum: ambos são regidos
por leis igualmente lógicas e simples". Nesse sentido, o médico é privilegiado; pode
tanto observar o ser humano em profundidade -a doença faz cair todas as máscaras, todos os disfarces- como pode também enquadrar essa experiência num quadro social mais amplo. Tchekhov não era
um militante político, mas as violentas desigualdades e a opressão que eram a regra
no império czarista não podiam deixá-lo
indiferente.
Médico do serviço público (encarregado
de um "zemstvo" -ou distrito), conhecia
profundamente os problemas da população e procurava minorá-los, participando
de atividades sociais, como a construção de
escolas e bibliotecas; não raro comprava os
remédios para os doentes de seu próprio
bolso. Em 1890, atravessou a gelada Sibéria
para estudar a famosa prisão da ilha de Sakalina; o relatório que escreveu a respeito
substituiu a tese acadêmica que nunca produziu e consiste em uma vigorosa denúncia do sistema prisional russo. Pagou um
preço por essa intensa atividade que às vezes lhe parecia esmagadora: "Enquanto eu
for médico de "zemstvo", não me considerem escritor", escreveu a amigos. Mas sabia também como vencer o desânimo: "É
preciso trabalhar e ser justo, o resto que vá
para o diabo".
A medicina está constantemente presente na obra literária de Tchekhov. Seus personagens médicos impressionam pela autenticidade. Como o autor, procuram
compatibilizar ciência e humanidades; é o
caso do doutor Raguin, de "A Enfermaria
Número Seis", ou do doutor Astrov, em
"Tio Vânia".
Tchekhov conheceu a doença por experiência própria; como muitos em sua época, ficou tuberculoso. Diagnóstico que, de
início, tentou negar, atribuindo os escarros
sanguíneos à ruptura de pequenos vasos
na garganta. Mas a enfermidade se agravou, e, em 1904, os médicos o encaminharam para um sanatório em Badenweiler,
Alemanha, para onde seguiu com a mulher, Olga, que o acompanhou até os últimos momentos. "Ich sterbe" ("Estou morrendo"), disse para o médico. Olga quis colocar um pouco de gelo sobre seu peito febril, mas ele recusou, dizendo que ali havia
somente "um coração vazio".
Declaração amargurada e não verdadeira. Como escritor e médico, Tchekhov
amou profundamente a humanidade.
Confirmam-no suas palavras: "Tudo que
eu pretendi foi dizer honestamente às pessoas: "Olhem para vocês próprios e percebam quão ruim e estéril é a vida que vocês
levam". É importante que as pessoas percebam que podem criar uma vida melhor para si próprias. Um dia certamente o farão.
Não viverei para vê-lo, mas sei que isso
acontecerá, que as coisas serão diferentes".
É a voz do escritor Tchekhov, é a voz do
humanista Tchekhov e é também a voz do
doutor Tchekhov, exercendo a profissão
na qual a compaixão é a grande tônica.
Moacyr Scliar é escritor e colunista da Folha. É autor de, entre outros, "A Paixão Transformada - História da Medicina na Literatura" e "Os Leopardos de
Kafka" (Companhia das Letras).
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