São Paulo, domingo, 11 de julho de 2004

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+ cultura

Morto há cem anos, o russo Anton Tchekhov, autor de "Tio Vânia" e "Enfermaria Número Seis", renovou o conto e a dramaturgia ao conciliar ciência e literatura

As vozes múltiplas da compaixão

Moacyr Scliar
Colunista da Folha

Julho assinala o centenário da morte daquele que pode ser considerado o fundador tanto do conto moderno como do moderno teatro, Anton Tchekhov (a grafia de seu sobrenome em português varia amplamente: Chekov, Tchekov, Tchekhovà). Terceiro de seis filhos, ele nasceu (1860) na cidade portuária de Taganrog, junto do mar Negro. Era de família humilde: o pai, Pavel, um merceeiro, o avô, um servo que tinha conseguido comprar a liberdade. Realidade social era coisa que o jovem Tchekhov conheceu por experiência própria. Como também conhecia a opressão: Pavel era um fanático religioso, um déspota que tiranizava os filhos.
A mãe, por outro lado, era grande contadora de histórias; foi ela quem, ensinando o menino Anton a ler e a escrever, despertou nele o gosto pela narrativa. E, ainda na escola, Tchekhov começou a participar de grupos de teatro amador.
A falência do pai mudou a vida da família. Sem dinheiro, Pavel partiu para Moscou em busca de trabalho. A mulher e os filhos menores seguiram-no pouco depois. Por um breve período, Anton viu-se só, em Taganrog, lutando para sobreviver; finalmente, terminou os estudos básicos e seguiu também para a capital, onde o pai tinha arranjado emprego. Em 1879, o jovem Tchekhov conseguiu uma bolsa para estudar medicina na Universidade de Moscou.
Foi como estudante de medicina que Tchekhov começou a escrever contos, que publicava em revistas populares. Tratava-se de vocação literária, mas tratava-se também de necessidade prática: tinha de ajudar no sustento da família. A partir de então trataria de compatibilizar literatura e medicina. Como disse em carta ao amigo Suvórin: "A medicina é minha mulher, a literatura, minha amante. Quando uma me aborrece, passo a noite com outra. Ainda que tal procedimento escape às regras habituais, quebra a monotonia; além disso, nenhuma das duas sai perdendo com minha infidelidade. Se não tivesse minhas atividades médicas, dificilmente poderia consagrar à literatura minha liberdade de espírito e meus devaneios".
Declaração surpreendente e, para muitos, não convincente: Tolstói, por exemplo, via na medicina um obstáculo à carreira de Tchekhov. Mas o escritor era grato à sua formação médica, fonte de aprendizado e de experiências. Negava com veemência a existência das duas culturas, a científica e a literária, da qual falaria o físico e escritor inglês C.P. Snow no seu famoso ensaio de 1959. Nesse sentido, estava mais de acordo com o espírito da Renascença do que com os românticos; baseava-se também no exemplo de Goethe, em quem "ao lado do poeta coexistia perfeitamente o naturalista". É preciso lembrar que Tchekhov viveu a época da revolução científica e que por ela foi influenciado. Assim, era um leitor entusiasmado de Darwin e um defensor do evolucionismo. Também nessa época Pasteur e seus colaboradores estavam transformando o microscópio no instrumento que permitia identificar agentes causadores de doenças, abrindo novas perspectivas no diagnóstico, na prevenção e no tratamento das doenças infecciosas.
Para Tchekhov, a ciência permitia perceber que "um trecho musical e uma árvore têm algo em comum: ambos são regidos por leis igualmente lógicas e simples". Nesse sentido, o médico é privilegiado; pode tanto observar o ser humano em profundidade -a doença faz cair todas as máscaras, todos os disfarces- como pode também enquadrar essa experiência num quadro social mais amplo. Tchekhov não era um militante político, mas as violentas desigualdades e a opressão que eram a regra no império czarista não podiam deixá-lo indiferente.
Médico do serviço público (encarregado de um "zemstvo" -ou distrito), conhecia profundamente os problemas da população e procurava minorá-los, participando de atividades sociais, como a construção de escolas e bibliotecas; não raro comprava os remédios para os doentes de seu próprio bolso. Em 1890, atravessou a gelada Sibéria para estudar a famosa prisão da ilha de Sakalina; o relatório que escreveu a respeito substituiu a tese acadêmica que nunca produziu e consiste em uma vigorosa denúncia do sistema prisional russo. Pagou um preço por essa intensa atividade que às vezes lhe parecia esmagadora: "Enquanto eu for médico de "zemstvo", não me considerem escritor", escreveu a amigos. Mas sabia também como vencer o desânimo: "É preciso trabalhar e ser justo, o resto que vá para o diabo".
A medicina está constantemente presente na obra literária de Tchekhov. Seus personagens médicos impressionam pela autenticidade. Como o autor, procuram compatibilizar ciência e humanidades; é o caso do doutor Raguin, de "A Enfermaria Número Seis", ou do doutor Astrov, em "Tio Vânia".
Tchekhov conheceu a doença por experiência própria; como muitos em sua época, ficou tuberculoso. Diagnóstico que, de início, tentou negar, atribuindo os escarros sanguíneos à ruptura de pequenos vasos na garganta. Mas a enfermidade se agravou, e, em 1904, os médicos o encaminharam para um sanatório em Badenweiler, Alemanha, para onde seguiu com a mulher, Olga, que o acompanhou até os últimos momentos. "Ich sterbe" ("Estou morrendo"), disse para o médico. Olga quis colocar um pouco de gelo sobre seu peito febril, mas ele recusou, dizendo que ali havia somente "um coração vazio".
Declaração amargurada e não verdadeira. Como escritor e médico, Tchekhov amou profundamente a humanidade. Confirmam-no suas palavras: "Tudo que eu pretendi foi dizer honestamente às pessoas: "Olhem para vocês próprios e percebam quão ruim e estéril é a vida que vocês levam". É importante que as pessoas percebam que podem criar uma vida melhor para si próprias. Um dia certamente o farão. Não viverei para vê-lo, mas sei que isso acontecerá, que as coisas serão diferentes". É a voz do escritor Tchekhov, é a voz do humanista Tchekhov e é também a voz do doutor Tchekhov, exercendo a profissão na qual a compaixão é a grande tônica.


Moacyr Scliar é escritor e colunista da Folha. É autor de, entre outros, "A Paixão Transformada - História da Medicina na Literatura" e "Os Leopardos de Kafka" (Companhia das Letras).


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