São Paulo, Domingo, 11 de Julho de 1999 |
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AUTORES Robert Kurz critica o sociólogo alemão Ulrich Beck e a flexibilização do trabalho Descartável e degradado
ROBERT KURZ
Tais idéias lembram um pouco os escritos de juventude de Karl Marx, que, numa passagem famosa, previu para o futuro comunista o fim da opressiva divisão do trabalho: "A divisão do trabalho nos oferece o exemplo de que, enquanto existir a cisão entre o interesse particular e o comum, a própria ação do homem torna-se para ele um poder alheio e adverso, que o subjuga. É que, tão logo o trabalho começa a ser dividido, cada um tem um determinado círculo exclusivo de atividades, do qual não pode sair, ao passo que, no comunismo, a sociedade regula a produção geral e justamente por isso permite-me fazer hoje isso, amanhã aquilo, de manhã caçar, à tarde pescar, à noite pastorear o gado, depois do jantar fazer crítica, com bem me aprouver, sem jamais ter de tornar-me caçador, pescador, pastor ou crítico". A velha imagem romântica do jovem Marx, completando exatos 150 anos de existência, infelizmente não tem mais nada a ver com a nossa nova realidade flexibilizada. Afinal não vivemos mais numa sociedade com veleidades comunistas, que, para além do capitalismo burocrático de Estado, hoje em franco declínio, partiria em busca de novos horizontes de emancipação social. Otimistas da flexibilização como Ulrich Beck ou o filósofo social francês André Gorz tomaram o bonde errado, pois quiseram desenvolver os potenciais de uma nova "soberania do tempo" individual em coexistência pacífica com o modo de produção capitalista. Depois de toda a crítica radical da ordem reinante ter sido abandonada, não existia mais nenhuma possibilidade de utilizar a tendência social imanente para fins emancipatórios. Em razão disso, a luta para dar à flexibilização contornos sociais já estava decidida antes mesmo de começar. As idéias esperançosas de uma suposta determinação autônoma do fluxo temporal em nichos sociais referiam-se, em todo caso, apenas a certas formas de trabalho de jornada parcial, que além do mais, segundo a teoria de Gorz, deveriam ser patrocinadas socialmente pelo Estado, para afiançar uma segura "receita básica" na forma de moeda e possibilitar com isso as atividades paralelas, estas sim de livre escolha. Essa teoria, bem intencionada mas banguela, sempre fez pouco da realidade das pessoas que, sob a pressão do crescente dumping social, são forçadas a trabalhar em dois ou três empregos quase 24 horas por dia. Como hoje, a exemplo de antes, ainda existe aquela "cisão entre o interesse particular e o comum" -leia-se: concorrência cega nos mercados anônimos, que teóricos como Beck e Gorz não põem mais em questão-, o potencial da produtividade incrementada também não pode mais ser utilizado em proveito da "soberania do tempo" dos indivíduos. Em vez disso, o capitalismo neoliberal desembestado impôs ditatorialmente a flexibilização, viabilizando de forma exclusiva sua filosofia econômica da redução de custos a todo preço. Suprimem-se as jornadas de trabalho padronizadas, mas não no interesse dos trabalhadores. Amplia-se o "trabalho à disposição", conforme o volume das encomendas e em turnos variáveis. Exige-se também maior mobilidade espacial da força de trabalho, em prejuízo de seus próprios interesses vitais. Há tempos, centenas de milhões de pessoas são forçadas a migrar para outros países e continentes em busca de trabalho. Latinos saem à cata de emprego nos Estados Unidos, asiáticos, nos emirados do Golfo, europeus do sul e do leste, na Europa central. Na China e no Brasil há enormes migrações internas. Sob o ditado da globalização, reforçou-se essa tendência à mobilidade espacial da força de trabalho, atingindo até mesmo os centros ocidentais. Na Alemanha, por exemplo, as delegacias de trabalho podem exigir de um desempregado que aceite um emprego a 100 km de sua residência e "visite" sua família só nos fins-de-semana. No interesse de sua carreira, empregados laboriosos vêem-se cada vez com mais frequência na obrigação de trocar de cidade, de país ou de continente em que prestam seus serviços. As pessoas transformam-se em nômades do mercado, incapazes de criar raiz social. Da flexibilização também faz parte a constante alternância entre empregos subordinados e "autônomos". As fronteiras entre o trabalho assalariado e a livre iniciativa perdem a nitidez, mas isso também em detrimento dos trabalhadores. Na esteira do "outsourcing" surgem cada vez mais pseudo-autônomos sem organização empresarial própria, sem capital próprio, sem colaboradores e sem a célebre "liberdade empresarial", já que dependem de um único cliente a maioria da vezes sua antiga empresa, que desse modo poupa a contribuição previdenciária e, em lugar do piso salarial, paga somente os "honorários" daquilo que foi estritamente produzido, o que é sempre muito menos do que o antigo salário. Flexibilização, em obediência ao mandamento de transferir o risco aos empregados autônomos e delegar a responsabilidade aos mais fracos, significa: mais produção e mais estresse por menos dinheiro. O liame empresarial se esgarça e os chamados colegas de emprego cindem-se em dois, de um lado os de carteira assinada, espécie em extinção cujos direitos trabalhistas são paulatinamente reduzidos ou cortados de todo, e de outro os colaboradores que convivem na precariedade, chamados por exemplo de "free-lancers" ou "portfolio-workers". Entre os primeiros, por sua vez, cindem-se as repartições em "profit-centers" concorrentes. A cultura da empresa integrada faz parte do passado. Tomando como exemplo o multicartel da IBM, o historiador social americano Richard Sennet, em seu livro "O Homem Flexível" (1998), mostrou essa lógica da infidelidade: "Durante os anos de reestruturação, ao enxugar os gastos, a IBM não dava mais confiança a seus empregados. Foi-lhes comunicado, aos que restaram, que eles não eram mais os filhos da grande empresa". Os indivíduos flexibilizados pelo capitalismo não são pessoas conscientes e universais, mas pessoas universalmente exploradas e solitárias. A nova responsabilidade pelo risco não é algo instigante, se não aterrador, pois o que se arrisca é a própria vida. A desconfiança generalizada corre mundo. Do clima de máfia e paranóia nasce uma cultura empresarial taciturna. Pessoas sem assistência e espoliadas ficam doentes e perdem a motivação. E tornam-se cada vez mais superficiais, dispersas e incompetentes. Isso porque a verdadeira qualificação exige tempo, tempo de que o mercado não dispõe mais. Quanto mais rapidamente mudam as exigências, mais irreal torna-se a qualificação, mais o aprendizado transforma-se num puro consumo de conhecimentos, num mero ossuário de dados. A qualidade fica para as calendas. Afinal, quando sei que tudo o que aprendo à custa de esforço perderá valor no momento seguinte, o fôlego de minha atenção será obviamente mais curto, e isso na exata proporção de meu desalento. Mas empregados manhosos e sem coesão social, que só sabem lograr seus superiores, os clientes e seus demais colegas, tornam-se também contraproducentes para a empresa. Com a total flexibilização o capitalismo não soluciona sua crise, antes a conduz ao absurdo e demonstra que só é capaz de suscitar forças autodestrutivas. Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor, entre outros, de "O Colapso da Modernização" (Ed. Paz e Terra) e "Os Últimos Combates" (Ed. Vozes). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", da Folha. Tradução de José Marcos Macedo. Texto Anterior: Roberto Darnton: MAL do século Próximo Texto: Livros - Carlos Eduardo Lins da Silva: O gosto pela modernidade Índice |
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