São Paulo, domingo, 11 de agosto de 2002

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DO PATÉTICO AO TRAGICÔMICO

Gilberto Marques/Folha Imagem
Cerca de 700 pares de sapatos de pessoas que foram assassinadas são espalhados no Anhangabaú, no centro de SP, durante ato para marcar o Dia Internacional pelo Desarmamento, em julho passado



Herdeiras de regimes ditatoriais, democracias do Brasil, Argentina e México carecem de cultura cívica e respeito ao direito do outro, o que torna pouco eficientes as tentativas de combate à pobreza e à violência


por José Murilo de Carvalho
Suponho haver consenso em torno da afirmação de que o problema central dos países incluídos no todo chamado América Latina seja o de conciliar democracia política com democracia social, o de construir uma política democrática dentro de uma sociedade democrática ou vice-versa. Digamos, então, que ser América Latina é ser um país que não conseguiu conciliar política democrática com sociedade democrática. Digamos, ainda, que política democrática consiste na vigência de um sistema de governo baseado em ampla representação e exercido em ambiente de liberdade; e que sociedade democrática é aquela em que as desigualdades sociais são reduzidas e em que há uma ampla mobilidade social. Aceitas essas definições, podemos afirmar que o México ainda é América Latina; o Brasil sempre foi América Latina; a Argentina já é América Latina. Desdobro o argumento. O Brasil começou a construir uma política democrática nos anos 40, ao final do Estado Novo, e retomou o processo nos anos 80, ao final dos governos militares. Hoje, pelos padrões geralmente aceitos, possui uma política democrática. Mas está longe de ter construído, pela ditadura ou pela democracia, uma sociedade democrática. O país ainda exibe os altos índices de desigualdade que sempre o caracterizaram. Mais ainda, não se pode prever quando, como ou se deixará de ser América Latina, pois não se pode vislumbrar, promessas eleitorais demagógicas à parte, como resolverá o problema da incorporação de suas multidões de pobres. O Brasil foi e é América Latina. O México chegou muito mais tarde que o Brasil à política democrática, mas, afinal, chegou com a eleição, em 2000, do presidente Vicente Fox, marco da derrota final do Partido Revolucionário Institucional (PRI). Quanto ao resto, os dois países apresentam muitas similaridades sociais e culturais. Acima de tudo, como o Brasil, o México ainda não foi capaz de construir uma sociedade democrática, apesar da mitologia revolucionária. Exibe, como o Brasil, altos índices de desigualdade social e tem metade da população abaixo do nível de pobreza. Os 10% mais ricos possuem 55% da riqueza nacional.

O amigo americano
No entanto sua incorporação ao Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) desde 1994 deu-lhe oportunidade única, abriu-lhe a porta de saída da América Latina. Os EUA, querendo ou não, têm absorvido milhões de imigrantes mexicanos e investem maciçamente no país em busca de mão-de-obra barata, gerando empregos. As duas coisas podem contribuir para uma substancial redução da pobreza e da desigualdade.
A proximidade com os EUA pode, afinal, não ser, junto com o distanciamento de Deus, a causa das desgraças do país. O PIB do México já superou o do Brasil. Mas o México ainda é América Latina.
A Argentina tem pouco a ver com Brasil e México. Tornou-se sociedade democrática nas primeiras décadas do século 20, impulsionada pelo boom nas exportações e pela maciça imigração européia. Os argentinos com razão se vangloriavam, com um toque de narcisismo e arrogância, de sua prosperidade e não se viam como participantes da miséria comum latino-americana.
No entanto, e surpreendentemente, a Argentina não tinha conseguido até recentemente colar à sua sociedade democrática uma política democrática. Quando a última se estabeleceu, ao final dos governos militares, coincidiu, ironicamente, com a deterioração social, o aumento da desigualdade, a redução da mobilidade, isto é, com o fim da sociedade democrática. Como disse em entrevista [a crítica argentina" Beatriz Sarlo, o país que antes se orgulhava de ser Europa na América descobriu, chocado, que se tornara América Latina. E a Argentina já é América Latina.
O Brasil faz história em estilo patético. Foi sempre otimista, sempre sonhou com grandeza, sempre acreditou que chegará ao paraíso, ao desenvolvimento com democracia, sem lá nunca chegar. O país olha para o futuro, mas tem-se mostrado incapaz, ou excessivamente lento, em se livrar da herança do passado.
O México faz história em estilo tragicômico. Olhou sempre para o passado, criou a mitologia das raízes astecas e da mística revolucionária, mas está chegando ao paraíso, embora sem se dar conta.
Preocupa-se com o passado enquanto caminha rápido, e de costas, para o futuro.
A Argentina faz história em estilo trágico. Chegou às portas do paraíso e se viu atirada de volta aos infernos. Sua crise atual é psicologicamente mais penosa pelo fato de já ter provado as delícias de uma sociedade afluente. O presente, que sempre dominou sua preocupação, de súbito se tornou pesadelo. Seu passado virou saudade, e o futuro é pura incerteza. Em simplificação quase grosseira, pode-se dizer que o problema da eliminação da pobreza e da desigualdade ou sua redução a níveis toleráveis foi resolvido historicamente de duas maneiras. Uma, sob a hegemonia política burguesa e pela sociedade de mercado, combinando democracia política e social. Outra, sob a hegemonia política proletária, via revolução socialista, sacrificando a democracia política em favor da social. A América Latina, Cuba à parte, não seguiu nenhum dos dois caminhos. Suas ditaduras não foram feitas para reduzir desigualdades. Sua tardia democracia política encontrou pela frente um enorme passivo social que não tem conseguido eliminar.

Oligarquia, populismo, ditadura
Brasil, México e Argentina, apesar das diferenças, são todos partes desse drama. Os três passaram por ditaduras mais ou menos violentas que, ao final, apesar de retórica em contrário, do Estado Novo no Brasil, do PRI no México, do peronismo na Argentina, não eliminaram -ou não evitaram, no caso da Argentina- a desigualdade. Depois de passar por regimes oligárquicos, populistas e ditatoriais, os três vivem hoje democracias políticas dissociadas de democracias sociais.
Parte da explicação para o fato pode derivar de semelhanças que, para além das diferenças, possuem no campo da cultura política. [Os escritores] Héctor Camín e Marcos Aguinis concordam, para México e Argentina, e creio que os analistas brasileiros diriam o mesmo de seu país, em que a democracia política nos três países não vem acompanhada de uma cultura cívica democrática.
A sociedade argentina foi democrática no campo econômico, não no cultural. Brasil e México nunca tiveram cultura política democrática. Nos três países inexiste cultura cívica, espírito público, virtude republicana, respeito à lei e ao direito do outro. Nesse contexto cultural, as instituições democráticas carecem de base sólida e se mostram pouco eficientes em enfrentar os problemas da desigualdade, isto é, da democracia social.

Nota
Este texto retoma comentários feitos em mesa-redonda organizada pelo Instituto Moreira Salles e a editora Bei, em 18 de junho de 2002, de que participaram os ministros Pedro Malan [da Fazenda], Celso Lafer [das Relações Exteriores], José Mindlin [bibliófilo], Héctor Camín, Marcos Aguinis, Eduardo Giannetti da Fonseca [economista], além do próprio autor.

José Murilo de Carvalho é professor titular do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de "Cidadania no Brasil" (ed. Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C." do Mais!.


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