São Paulo, domingo, 11 de agosto de 2002

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+ sociedade

Desconstrução das suposições implícitas em relação ao "outro" pode anular efeitos do etnocentrismo na pós-modernidade

A distorção objetiva das culturas

Charles Taylor
especial para a Folha

Compreender o "outro" será o maior desafio social do século 21. Foi-se o tempo em que os "ocidentais " podiam considerar sua experiência e sua cultura como norma e outras culturas meramente como estágios anteriores do desenvolvimento do Ocidente. Hoje a maior parte do Ocidente percebe a presunção arrogante que está no centro dessa idéia antiga.
Infelizmente essa nova modéstia, tão necessária para compreender outras culturas e tradições, ameaça se desviar para o relativismo e o questionamento da própria idéia de verdade nas relações humanas. Pois pode parecer impossível combinar objetividade com o reconhecimento de diferenças conceituais fundamentais entre as culturas. Assim, a abertura cultural apresenta o risco de reduzirmos a prevalência de nossos valores. Para enfrentarmos esse dilema, devemos entender o lugar da cultura na vida humana. Cultura, autocompreensão e linguagem são mediadores em tudo o que identificamos como fundamental numa natureza humana comum.
Em toda a história humana, sempre e em qualquer lugar, essas faculdades básicas demonstraram uma inovação extraordinária e infinita.
Ao reconhecer essa variedade, algumas pessoas ancoram nossa compreensão da natureza humana em um nível inferior ao da cultura. A sociobiologia, por exemplo, tenta descobrir a motivação humana nas maneiras como os seres humanos evoluíram. Os defensores dessa teoria afirmam que a variedade cultural é apenas um jogo superficial de aparências. Mas nunca poderemos descobrir leis válidas para toda a espécie, porque nunca podemos operar fora de nossa compreensão, histórica e culturalmente específica, do que é ser humano. Nosso relato do declínio do Império Romano não é e não pode ser igual àquele feito na Inglaterra do século 18 -e será diferente de relatos propostos no Brasil do século 22 ou na China do século 25. Aqui surge a acusação de relativismo. Mas é errado acreditar que, para aceitar as diferenças culturais, seja necessário abandonar a fidelidade à verdade. A grande conquista da revolução científica do século 17 foi desenvolver uma linguagem para a natureza que purgou os termos de propósito e valor adotados por Platão e Aristóteles nas primeiras linguagens científicas, que foram usadas pelas primeiras civilizações.

Compreensões tácitas
Mas a universalidade da linguagem da ciência natural não pode ser aplicada ao estudo dos seres humanos, onde concorre um leque de teorias e abordagens. O motivo disso é que a linguagem das ciências humanas se baseia em nossa compreensão comum do que é o ser humano, viver em sociedade, ter convicções morais, aspirar à felicidade e assim por diante. Não importa o quanto nossas opiniões cotidianas sejam questionadas por uma teoria, de todo modo nos basearemos em nossa compreensão das características básicas da vida humana, que parecem tão óbvias que não necessitam de formulação. São essas compreensões tácitas que tornam difícil entender as pessoas de outro tempo ou lugar.
O etnocentrismo resulta das compreensões inquestionáveis que carregamos conosco inadvertidamente e que não podemos descartar adotando outra atitude. Se nosso sentido tácito da condição humana pode bloquear nossa compreensão dos outros e se é tão fundamental para quem nós somos que não podemos simplesmente afastá-lo, estaremos totalmente aprisionados em nossas próprias perspectivas, incapazes de conhecer outras?
A verdadeira compreensão nas relações humanas exige a paciente identificação e desconstrução das facetas de nossas suposições implícitas que distorcem a realidade do "outro". Isso pode acontecer quando começamos a ver claramente nossas próprias peculiaridades como fatos sobre nós, e não simplesmente como características implícitas à condição humana em geral. Ao mesmo tempo, devemos começar a perceber, sem distorções, características correspondentes nas vidas dos outros.
Nossa compreensão do "outro" será aperfeiçoada por meio dessas correções, mas continuará imperfeita. Se a historiografia do Império Romano na China do século 25 vier a ser diferente da nossa atual, isso não ocorrerá porque os fatos serão considerados diferentes do que nós pensávamos (ou os brasileiros do século 22 pensarão). A diferença será que perguntas diferentes serão feitas, questões diferentes serão levantadas e características diferentes se destacarão como notáveis. É claro que, assim como hoje, alguns relatos serão mais etnocêntricos e distorcidos, outros, mais superficiais. Em suma, alguns serão mais "certos" e se aproximarão mais da verdade do que outros.
Para evitar a distorção é necessário reconhecer que nossa maneira de ser não é a única "natural", que ela simplesmente representa uma dentre várias formas possíveis. Não podemos mais nos relacionar com nossa maneira de fazer ou construir as coisas como se ela fosse óbvia demais para ser explicada. Não pode haver compreensão do "outro" sem uma compreensão modificada de si mesmo, uma mudança de identidade que altere nossa compreensão de nós mesmos, nossos objetivos e nossos valores. É por isso que frequentemente se resiste ao pluriculturalismo. Temos um profundo envolvimento com nossas imagens distorcidas dos outros.
A maioria das pessoas admite que somos enriquecidos pela compreensão de outras possibilidades humanas. Não se pode negar, porém, que o caminho para reconhecer sua existência e seu valor pode ser doloroso. O momento crucial ocorre quando as diferenças do "outro" podem ser percebidas não como erros ou defeitos ou ainda como produto de uma versão menor, subdesenvolvida, do que somos, mas como um desafio colocado por uma alternativa humana viável.
Outras sociedades nos apresentam maneiras diferentes e muitas vezes desconcertantes de ser humano. Nossa tarefa é reconhecer a humanidade dessas "outras" maneiras, enquanto continuamos vivendo as nossas. Isso poderá ser difícil de alcançar; exigirá uma mudança em nossa autocompreensão e portanto em nosso modo de vida -e é o desafio que nossas sociedades deverão enfrentar nos próximos anos.


Charles Taylor é professor de filosofia na Universidade Northwestern (EUA). Este texto tem copyright do Project Syndicate.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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