São Paulo, domingo, 11 de agosto de 2002

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Em "São Paulo pela Lente da Higiene", socióloga faz um perfil biográfico do sanitarista Paula Souza

A deusa limpeza na paulicéia


Tendo morado nos EUA, o médico sanitarista contraiu o hábito turístico de andar com uma máquina fotográfica a tiracolo, a fim de, com uma câmera na mão, captar as imagens sob o olhar do cientista


Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha

Lembrei-me do xará de Apipucus, Gilberto Freyre, que sabia fazer com primor e requinte a sociologia da medicina: progresso é higiene. Sob o ângulo da educação sanitária e de sua infra-estrutura material é que deveria ser avaliado o índice de desenvolvimento da sociedade, principalmente nas regiões tropicais, em que a exuberância de vida é fonte propícia ao crescimento dos microorganismos e de doenças infecciosas. Varíola. Sarampo. Malária. Febre amarela. Prefaciando o médico Silva Mello, Gilberto Freyre dizia que a sociologia no Brasil, sem uma base de história da medicina e da higiene, era um saber lacunoso e talhado ao abstrato. É por isso, entre outros motivos, que a tese de Cristina de Campos, agora publicada em livro, merece ser lida com todo o interesse, porque focaliza a batalha pela higiene travada no núcleo urbano de São Paulo, tecendo um perfil biográfico do médico e higienista Geraldo Horácio de Paula Souza (1889-1951) entre os anos de 1925 e 1945, que tantos serviços prestou à saúde e aos problemas urbanos de São Paulo, principalmente com a criação dos centros de saúde. Eis o que escreve a autora: "Nos centros de saúde, a população receberia assistência médica e instrução sobre higiene. Além disso, atuaria como uma unidade centralizadora de informações sobre irregularidades físicas, focos de doença e outras afrontas à higiene que ocorressem na região sob sua responsabilidade. Essas unidades, além da capital paulista, seriam distribuídas pelo interior, onde eram conhecidas como postos permanentes de saúde (mais tarde chamados centros de saúde). Nesses postos, os engenheiros sanitários davam as orientações necessárias para a construção de habitação salubre, com boa luz e ventilação, além de ensinarem a fazer ligações das redes de água e esgotos, dentre outras informações sanitárias". O sociólogo Roger Bastide, quando esteve lecionando na USP, também apontou que o grande lance do desenvolvimento do país deveria estar assentado em dois pilares: no médico sanitarista e na professora primária. O doutor Paula Souza colocou a criança no alvo central de sua educação sanitária, conforme mostra Cristina de Campos ao analisar as fotografias tiradas por ele da São Paulo entre o período de saneamento e a implantação das vias de circulação.

Uma câmera na mão
Tendo estudado nos Estados Unidos, país de que se tornou fã, bancado pela fundação Rockefeller, o doutor Geraldo Horácio de Paula Souza contraiu o hábito do turista de andar com uma máquina de fotografia a tiracolo, a fim de, digamos assim, com uma câmera na mão, captar as imagens sob o olhar do sanitarista, isto é, "atrás de tudo aquilo que pudesse atentar contra a saúde da cidade".
O livro traz belas fotos que focalizam vários pontos e aspectos urbanísticos da cidade de São Paulo, preparando-se para ser a megalópole industrial do país. Os hotéis. As fábricas. O mercado. Os tipos de residência: a burguesa avenida Paulista e as vilas operárias, assim como os cortiços com o seu pátio central. O curioso é que, ao olhar essas fotos, é impossível o leitor não cotejar o passado com a situação atual da cidade de São Paulo, cujo enorme crescimento viário não correspondeu à expansão da higiene e do sistema sanitário, tal qual aliás aconteceu a outras grandes cidades brasileiras em situação calamitosa do ponto de vista higiênico. Em alguns aspectos arquitetônicos e urbanísticos, ingressamos no pós-modernismo -porém, em relação ao progresso sanitário, estamos longe de alcançar a modernidade com a subabitação e a pobreza.
É conhecida a frase tão citada pelo historiador da medicina João Amilcar Salgado: "O Brasil se sifilizou antes de se civilizar". Destarte, é uma pena que a estudiosa Cristina de Campos, ao escrever esse indispensável livro, não tenha tomado conhecimento dos textos e ensinamentos do médico João Amilcar Salgado, um dos maiores conhecedores mundiais da relação entre as infecções e a história das sociedades.
Um dado alarmante é que a infectologia conhece hoje um misterioso agente infeccioso chamado "prion", o qual não faz distinção entre pobres e ricos, de modo que a peste já não tem mais limites de classe social. O slogan que sintetiza a realidade atual é o seguinte: doença para todos. Olha aí a vaca louca. Olha aí a gripe do frango chinês.
Entre nós, medram a cólera, a dengue e a tuberculose. Estamos menos para laptop do que para leptospirose. A verdade é que a igualdade sanitária nestas plagas é um escândalo. Dir-se-ia que houve nas últimas décadas uma democratização das infecções. O profissional da saúde ou o infectólogo, diante das periferias, das valas negras e favelas, fica deveras apavorado, assim como o olfato do homem comum é capaz de acusar uma espécie de dilúvio fecal andando pelas ruas das principais cidades brasileiras.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "Biomassa" (ed. Senac), entre outros.


São Paulo pela
Lente da Higiene
272 págs., R$ 30,00 Cristina de Campos. Ed. Rima (r. Conselheiro João Alfredo, 175, CEP 13561-110, São Carlos, SP, tel. 0/xx/16/272-5269).



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