São Paulo, domingo, 11 de setembro de 2005

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O historiador Robert Darnton critica a interpretação anacrônica que políticos norte-americanos fazem dos "pais fundadores" e diz que Bush e Dick Cheney distorcem o Iluminismo para legitimar suas políticas

Sermão pelo bom sucesso das armas da razão

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

Passei tanto tempo no século 18 que não posso deixar de me impressionar com a extensão do controle que o homem conquistou sobre seu ambiente nos séculos 19 e 20". O que parece uma visão demasiado otimista sobre o progresso ocidental na verdade transmite o inconformismo de Robert Darnton. Incomodado com leituras que considera distorcidas do Iluminismo, o historiador despiu-se da seriedade acadêmica e resolveu sair em defesa do período a que dedicou boa parte de sua obra.


"Originalis- mo" virou a palavra da moda nos discursos. Trata-se de uma tendência de usar como referência as intenções "originais" dos homens que fizeram a Constituição dos EUA, em 1787


Darnton, 66, hoje professor da Universidade Princeton, é autor de algumas obras básicas sobre o século 18, como "Boemia Literária e a Revolução" (Companhia das Letras, 1987) e "O Grande Massacre de Gatos" (Graal, 1988).
Para o estudioso, os governantes dos EUA hoje estão distorcendo o Iluminismo para legitimar políticas que vão contra os próprios princípios iluministas. Ele faz críticas, por exemplo, ao que passou a ser chamado de "originalismo" pela direita.
Esse conceito estaria sendo usado para justificar decisões atuais de acordo com a interpretação que os fundadores da nação norte- americana teriam feito da realidade caso ainda estivessem vivos. "Isso é uma loucura", diz Darnton. "Estão explorando essas citações e referências para servirem a seus próprios propósitos e legitimarem idéias de direita junto à população, como a de fazer uma guerra para exportar a democracia."
Em "Os Dentes Falsos de George Washington" (Companhia das Letras), Darnton ataca aqueles que insuflaram demais o Iluminismo e assim o tornaram "culpado" pela expansão cultural e política do Ocidente e, por conseqüência, até por algumas formas de totalitarismo do século 20.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que o historiador deu à Folha, por telefone, dos EUA.
 

Folha - O sr. diz que o século 18 nos dá perspectiva histórica para temas atuais. Como?
Robert Darnton -
Escrever um livro de história que se proponha a fornecer perspectivas para questões atuais leva ao problema do anacronismo. E o anacronismo é o pecado original entre os historiadores. É por isso que "Os Dentes Falsos de George Washington" é uma provocação a um certo tipo de historiador que tem como padrão tentar entender o passado em si mesmo.
De cara, eu mesmo admito que sou um deles, pois adoro me imaginar vivendo no século 18. E já adianto, também, que tampouco acredito que a história possa ensinar lições ao presente. Pelo menos não diretamente.
Entretanto noto que, hoje, muitos políticos e intelectuais de tendência moralista têm se voltado ao século 18 para legitimar certas decisões atuais, o que é uma loucura. Foi por isso que resolvi olhar para o século 18 com questões atuais para mostrar como essas pessoas estão erradas.

Folha - Pode exemplificar isso?
Darnton -
Sim. Acabo de voltar aos EUA após um período de seis meses na Alemanha, sem ler jornais norte-americanos. Assim que voltei, dei de cara com uma nova palavra, um novo "ismo", que é "originalismo".
"Originalismo" virou a palavra da moda nos discursos. Trata-se de uma tendência entre políticos conservadores de direita que tentam tomar uma posição, geralmente com relação a temas jurídicos ou constitucionais, usando como referência o que acreditam que seriam as intenções "originais" dos homens que fizeram a Constituição dos EUA, em 1787.
Ou seja, a proposta dos "originalistas" é entrar nas mentes dos fundadores dos Estados Unidos e, a partir dali, decidir, por exemplo, se um candidato deve ou não ser indicado à Corte Suprema. Isso é uma loucura e é um procedimento que está sendo usado de forma desenfreada pelos políticos de direita que comandam Washington.
Pessoas como Dick Cheney e seus seguidores tomam o "originalismo" como a maneira correta de lidar com questões contemporâneas. Não faz nenhum sentido, por duas razões. Primeiro porque não se pode entrar na cabeça de alguém que está morto há mais de 200 anos e tomar uma decisão como se esse alguém estivesse aqui.
Depois, porque o direito constitucional é orgânico e se flexibiliza ao longo do tempo. George Washington [1732-1799], por exemplo, em diversos sentidos, tomou atitudes que não seriam toleradas hoje.

Folha - E por que o sr. acredita que isso esteja acontecendo?
Darnton -
Há um mito nacional muito enraizado nos EUA sobre os fundadores da nação. É algo que comove a todos. Suas palavras têm ainda uma força muito grande sobre os norte-americanos.
Mas o que vejo hoje nos EUA são políticos explorando essas citações e referências para servirem a seus próprios propósitos e legitimarem idéias de direita junto à população, como a de fazer uma guerra para exportar a democracia. Estão distorcendo o Iluminismo a serviço de seus objetivos.

Folha - E há uma maneira certa de "usar" o Iluminismo?
Darnton -
Também não, ou pelo menos não de uma maneira direta. Mas estudá-lo pode fornecer perspectivas. Nos EUA, as pessoas não têm consciência histórica. E isso faz com que a dimensão do seu pensamento seja curta, que seu senso crítico seja limitado. Se os norte-americanos tivessem um conhecimento um pouco mais aprofundado sobre sua própria cultura, e também sobre outras culturas, seriam muito menos seguros a respeito de políticas desse governo e de como elas estão sendo impostas ao resto do mundo.
Essa espécie de certeza estreita que muitos políticos norte-americanos têm reflete uma lacuna de perspectiva histórica.

Folha - E o que nos ensina a dor de dente de George Washington?
Darnton -
Por causa dos dentes, Washington foi um homem que passou boa parte da vida lutando contra a dor. E essa dor nos ajuda a pensar sobre o conceito de progresso de uma maneira diferente. Uma das críticas mais comuns ao Iluminismo vem dessa idéia inocente de que o progresso se torna algo ridículo quando olhamos para o século 20 e para os desastres que ocorreram então.
Com certeza, acreditar que pudesse existir um aparato histórico mecânico que fizesse aumentar a felicidade do homem é uma coisa maluca. Por outro lado, olhar para o progresso a partir de uma análise séria e crítica da história social leva à conclusão de que a vida é, sim, melhor hoje. Por exemplo, com relação às dores de dente. É claro que isso não resolve os grandes problemas históricos, mas provê perspectivas.

Folha - Os pobres de hoje vivem melhor que os pobres do século 18.
Darnton -
Sim, e não estou minimizando a questão da pobreza quando confirmo isso. Mas quando vemos esses programas de assistência governamentais para prover saúde ou alimentação, estamos justamente dando de cara com algo que fazia parte da agenda do Iluminismo, a idéia de espalhar a felicidade.

Folha - No capítulo sobre a felicidade, o sr. diz que "a idéia de felicidade encravou-se tão profundamente na cultura americana que às vezes desaparece de vista". Pode explicar isso melhor?
Darnton -
A menção à felicidade é a frase mais memorável da Declaração de Independência. Quando [Thomas] Jefferson [presidente dos EUA e autor da Declaração de Independência, 1743-1826] reformula o famoso "vida, liberdade e propriedade", que era a fórmula-padrão dos debates políticos dos séculos 17 e 18, e substitui "propriedade" por "busca da felicidade", há um novo tipo de abertura ideológica que aponta para um Estado de Bem-Estar Social.
Não acredito que possamos ler a correspondência de pessoas como Jefferson, Washington e [Benjamin] Franklin [1706-1790] e tentar aplicar diretamente as suas idéias, mas podemos estudar suas idéias para colocar a atual realidade em uma perspectiva maior e perceber, por exemplo, que o compromisso com a diminuição da pobreza e perseguir a felicidade era algo importante.

Folha - O sr. ataca os pós-modernistas. Por que acredita que a visão deles do Iluminismo esteja errada?
Darnton -
Não concordo com eles e com outros que acusam o Iluminismo e sua pretensão universal como uma máscara para a hegemonia ocidental que teria fornecido instrumentos para o imperialismo cultural do Ocidente e para as tiranias do século 20. O filósofo britânico John Gray, por exemplo, ou os alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer distorceram o Iluminismo. Estão errados, pois, em nenhum momento, os iluministas nos disseram que podemos torturar pessoas ou atirá-las a uma prisão sem julgamento.

Folha - Mas o Iluminismo não teria nenhuma influência nos aspectos negativos do Ocidente hoje?
Darnton -
Adorno e Horkheimer não promoveram uma discussão filosófica séria sobre o que escreveram Diderot, Rousseau ou Voltaire. Eles examinam o Iluminismo como uma força progressiva.
Dizem que o Iluminismo, por meio de um processo dialético, que é um modo de pensar muito germânico e hegeliano, expôs a Europa a Hitler. E, para mim, isso é não entender o Iluminismo.
O que me fez escrever esse livro foi uma viagem que fiz à Argentina. Quando conversei com intelectuais argentinos, fiquei espantado com o fato de que todos conheciam alguém que havia desaparecido na ditadura. É claro que eu sabia que isso tinha acontecido, e me sentia culpado por ser "gringo", pois os EUA apoiaram aquele regime tirânico.
Então me perguntei, em que bases filosóficas você pode dizer que a tirania é algo errado? E fui levado de volta aos valores do Iluminismo. Lá está dito que o Estado não tem poder para aprisionar, torturar e matar porque esse direito simplesmente não existe. Para os valores iluministas, as pessoas devem poder viver suas vidas sem ser arbitrariamente presas pelo Estado. São valores que estão no coração do Iluminismo. Ataques a esses valores soam para mim completamente errados.
Meu livro é uma espécie de sermão, para que os intelectuais não desprezem o Iluminismo como um tipo de episódio superficial na história do pensamento. E devem sim tomá-lo como base para se opor à tirania do Estado.

Folha - O governo Bush se relaciona com o Iluminismo?
Darnton -
Bush não respeita os valores do Iluminismo dos Estados Unidos. Não posso imaginar alguém como Jefferson fazendo uma guerra contra o Iraque. O Iluminismo é todo ele construído sobre a autocrítica, sobre o uso crítico da Razão. E é exatamente isso o que está faltando a Washington hoje. Respeitar os valores iluministas seria uma arma para atacar a atual política norte-americana.


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