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+ história
O historiador Robert Darnton critica a interpretação anacrônica que políticos norte-americanos fazem
dos "pais fundadores" e diz que Bush e Dick Cheney distorcem o Iluminismo para legitimar suas políticas
Sermão pelo bom sucesso das armas da razão
SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN
Passei tanto tempo no século
18 que não posso deixar de
me impressionar com a extensão do controle que o homem conquistou sobre seu ambiente nos séculos 19 e 20". O que parece
uma visão demasiado otimista sobre
o progresso ocidental na verdade
transmite o inconformismo de Robert Darnton. Incomodado com leituras que considera distorcidas do
Iluminismo, o historiador despiu-se
da seriedade acadêmica e resolveu
sair em defesa do período a que dedicou boa parte de sua obra.
"Originalis- mo" virou a palavra da moda nos discursos. Trata-se de uma tendência de usar como referência as intenções "originais" dos homens que
fizeram a Constituição dos EUA,
em 1787
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Darnton, 66, hoje professor da
Universidade Princeton, é autor de
algumas obras básicas sobre o século 18, como "Boemia Literária e a Revolução" (Companhia das Letras,
1987) e "O Grande Massacre de Gatos" (Graal, 1988).
Para o estudioso, os governantes
dos EUA hoje estão distorcendo o
Iluminismo para legitimar políticas
que vão contra os próprios princípios iluministas. Ele faz críticas, por
exemplo, ao que passou a ser chamado de "originalismo" pela direita.
Esse conceito estaria sendo usado
para justificar decisões atuais de
acordo com a interpretação que os
fundadores da nação norte- americana teriam feito da realidade caso
ainda estivessem vivos. "Isso é uma
loucura", diz Darnton. "Estão explorando essas citações e referências
para servirem a seus próprios propósitos e legitimarem idéias de direita junto à população, como a de fazer uma guerra para exportar a democracia."
Em "Os Dentes Falsos de George
Washington" (Companhia das Letras), Darnton ataca aqueles que insuflaram demais o Iluminismo e assim o tornaram "culpado" pela expansão cultural e política do Ocidente e, por conseqüência, até por algumas formas de totalitarismo do século 20.
Leia abaixo os principais trechos
da entrevista que o historiador deu à
Folha, por telefone, dos EUA.
Folha - O sr. diz que o século 18 nos
dá perspectiva histórica para temas
atuais. Como?
Robert Darnton - Escrever um livro
de história que se proponha a fornecer perspectivas para questões atuais
leva ao problema do anacronismo. E
o anacronismo é o pecado original
entre os historiadores. É por isso que
"Os Dentes Falsos de George Washington" é uma provocação a um
certo tipo de historiador que tem como padrão tentar entender o passado em si mesmo.
De cara, eu mesmo admito que
sou um deles, pois adoro me imaginar vivendo no século 18. E já adianto, também, que tampouco acredito
que a história possa ensinar lições ao
presente. Pelo menos não diretamente.
Entretanto noto que, hoje, muitos
políticos e intelectuais de tendência
moralista têm se voltado ao século 18
para legitimar certas decisões atuais,
o que é uma loucura. Foi por isso
que resolvi olhar para o século 18
com questões atuais para mostrar
como essas pessoas estão erradas.
Folha - Pode exemplificar isso?
Darnton - Sim. Acabo de voltar aos
EUA após um período de seis meses
na Alemanha, sem ler jornais norte-americanos. Assim que voltei, dei de
cara com uma nova palavra, um novo "ismo", que é "originalismo".
"Originalismo" virou a palavra da
moda nos discursos. Trata-se de
uma tendência entre políticos conservadores de direita que tentam tomar uma posição, geralmente com
relação a temas jurídicos ou constitucionais, usando como referência o
que acreditam que seriam as intenções "originais" dos homens que fizeram a Constituição dos EUA, em
1787.
Ou seja, a proposta dos "originalistas" é entrar nas mentes dos fundadores dos Estados Unidos e, a partir
dali, decidir, por exemplo, se um
candidato deve ou não ser indicado
à Corte Suprema. Isso é uma loucura
e é um procedimento que está sendo
usado de forma desenfreada pelos
políticos de direita que comandam
Washington.
Pessoas como Dick Cheney e seus
seguidores tomam o "originalismo"
como a maneira correta de lidar com
questões contemporâneas. Não faz
nenhum sentido, por duas razões.
Primeiro porque não se pode entrar
na cabeça de alguém que está morto
há mais de 200 anos e tomar uma decisão como se esse alguém estivesse
aqui.
Depois, porque o direito constitucional é orgânico e se flexibiliza ao
longo do tempo. George Washington [1732-1799], por exemplo, em
diversos sentidos, tomou atitudes
que não seriam toleradas hoje.
Folha - E por que o sr. acredita que
isso esteja acontecendo?
Darnton - Há um mito nacional
muito enraizado nos EUA sobre os
fundadores da nação. É algo que comove a todos. Suas palavras têm ainda uma força muito grande sobre os
norte-americanos.
Mas o que vejo hoje nos EUA são
políticos explorando essas citações e
referências para servirem a seus próprios propósitos e legitimarem
idéias de direita junto à população,
como a de fazer uma guerra para exportar a democracia. Estão distorcendo o Iluminismo a serviço de
seus objetivos.
Folha - E há uma maneira certa de
"usar" o Iluminismo?
Darnton - Também não, ou pelo
menos não de uma maneira direta.
Mas estudá-lo pode fornecer perspectivas. Nos EUA, as pessoas não
têm consciência histórica. E isso faz
com que a dimensão do seu pensamento seja curta, que seu senso crítico seja limitado. Se os norte-americanos tivessem um conhecimento
um pouco mais aprofundado sobre
sua própria cultura, e também sobre
outras culturas, seriam muito menos seguros a respeito de políticas
desse governo e de como elas estão
sendo impostas ao resto do mundo.
Essa espécie de certeza estreita que
muitos políticos norte-americanos
têm reflete uma lacuna de perspectiva histórica.
Folha - E o que nos ensina a dor de
dente de George Washington?
Darnton - Por causa dos dentes,
Washington foi um homem que
passou boa parte da vida lutando
contra a dor. E essa dor nos ajuda a
pensar sobre o conceito de progresso de uma maneira diferente. Uma
das críticas mais comuns ao Iluminismo vem dessa idéia inocente de
que o progresso se torna algo ridículo quando olhamos para o século 20
e para os desastres que ocorreram
então.
Com certeza, acreditar que pudesse existir um aparato histórico mecânico que fizesse aumentar a felicidade do homem é uma coisa maluca. Por outro lado, olhar para o progresso a partir de uma análise séria e
crítica da história social leva à conclusão de que a vida é, sim, melhor
hoje. Por exemplo, com relação às
dores de dente. É claro que isso não
resolve os grandes problemas históricos, mas provê perspectivas.
Folha - Os pobres de hoje vivem melhor que os pobres do século 18.
Darnton - Sim, e não estou minimizando a questão da pobreza quando
confirmo isso. Mas quando vemos
esses programas de assistência governamentais para prover saúde ou
alimentação, estamos justamente
dando de cara com algo que fazia
parte da agenda do Iluminismo, a
idéia de espalhar a felicidade.
Folha - No capítulo sobre a felicidade, o sr. diz que "a idéia de felicidade
encravou-se tão profundamente na
cultura americana que às vezes desaparece de vista". Pode explicar isso
melhor?
Darnton - A menção à felicidade é a
frase mais memorável da Declaração de Independência. Quando
[Thomas] Jefferson [presidente dos
EUA e autor da Declaração de Independência, 1743-1826] reformula o
famoso "vida, liberdade e propriedade", que era a fórmula-padrão dos
debates políticos dos séculos 17 e 18,
e substitui "propriedade" por "busca da felicidade", há um novo tipo de
abertura ideológica que aponta para
um Estado de Bem-Estar Social.
Não acredito que possamos ler a
correspondência de pessoas como
Jefferson, Washington e [Benjamin]
Franklin [1706-1790] e tentar aplicar
diretamente as suas idéias, mas podemos estudar suas idéias para colocar a atual realidade em uma perspectiva maior e perceber, por exemplo, que o compromisso com a diminuição da pobreza e perseguir a felicidade era algo importante.
Folha - O sr. ataca os pós-modernistas. Por que acredita que a visão deles
do Iluminismo esteja errada?
Darnton - Não concordo com eles e
com outros que acusam o Iluminismo e sua pretensão universal como
uma máscara para a hegemonia ocidental que teria fornecido instrumentos para o imperialismo cultural
do Ocidente e para as tiranias do século 20. O filósofo britânico John
Gray, por exemplo, ou os alemães
Theodor Adorno e Max Horkheimer distorceram o Iluminismo. Estão errados, pois, em nenhum momento, os iluministas nos disseram
que podemos torturar pessoas ou
atirá-las a uma prisão sem julgamento.
Folha - Mas o Iluminismo não teria
nenhuma influência nos aspectos negativos do Ocidente hoje?
Darnton - Adorno e Horkheimer
não promoveram uma discussão filosófica séria sobre o que escreveram Diderot, Rousseau ou Voltaire.
Eles examinam o Iluminismo como
uma força progressiva.
Dizem que o Iluminismo, por
meio de um processo dialético, que é
um modo de pensar muito germânico e hegeliano, expôs a Europa a Hitler. E, para mim, isso é não entender
o Iluminismo.
O que me fez escrever esse livro foi
uma viagem que fiz à Argentina.
Quando conversei com intelectuais
argentinos, fiquei espantado com o
fato de que todos conheciam alguém
que havia desaparecido na ditadura.
É claro que eu sabia que isso tinha
acontecido, e me sentia culpado por
ser "gringo", pois os EUA apoiaram
aquele regime tirânico.
Então me perguntei, em que bases
filosóficas você pode dizer que a tirania é algo errado? E fui levado de volta aos valores do Iluminismo. Lá está
dito que o Estado não tem poder para aprisionar, torturar e matar porque esse direito simplesmente não
existe. Para os valores iluministas, as
pessoas devem poder viver suas vidas sem ser arbitrariamente presas
pelo Estado. São valores que estão
no coração do Iluminismo. Ataques
a esses valores soam para mim completamente errados.
Meu livro é uma espécie de sermão, para que os intelectuais não
desprezem o Iluminismo como um
tipo de episódio superficial na história do pensamento. E devem sim tomá-lo como base para se opor à tirania do Estado.
Folha - O governo Bush se relaciona
com o Iluminismo?
Darnton - Bush não respeita os valores do Iluminismo dos Estados
Unidos. Não posso imaginar alguém
como Jefferson fazendo uma guerra
contra o Iraque. O Iluminismo é todo ele construído sobre a autocrítica,
sobre o uso crítico da Razão. E é exatamente isso o que está faltando a
Washington hoje. Respeitar os valores iluministas seria uma arma para
atacar a atual política norte-americana.
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